sexta-feira, 16 de maio de 2008

Graça Maria Fragoso (Biblioteca na Escola)

São muitas, mas invariavelmente distorcidas, as visões que se costuma ter de uma biblioteca. Ora é lugar sagrado, onde se guardam objetos também sagrado, para desfrute de alguns eleitos. Ora, sob uma ótica menos romântica, é apenas uma instituição burocratizada, que serve para consulta e pesquisa, assim como para armazenar bolor, cupins e traças. Para muito poucos, aqueles que a freqüentam assiduamente, ela constitui o local do encontro com o prazer de ler, conhecer, informar-se.

O fato é que, quando se trata de Brasil, a maioria das pessoas desconhece o verdadeiro papel de uma biblioteca em suas vidas e, portanto, na vida da comunidade. E esta afirmação se aplica tanto aos usuários potenciais quanto àqueles que de um modo ou outro têm responsabilidade pelo seu funcionamento. Como, por exemplo, as escolas. Por inúmeras razões, as bibliotecas escolares brasileiras estão ainda longe de cumprir sua importantíssima função no sistema educacional. Poucas instituições dispõem dos recursos e da visão necessários (duas condições que nem sempre andam juntas...) para manter uma biblioteca digna desse nome. E raros são os profissionais empenhados em prestar serviços que realmente dêem suporte ao aprendizado e à vida cultural da escola.

ZELO e RABUGICE

Neste século, as mudanças têm sido profundas e muito mais velozes, em relação ao ritmo de desenvolvimento da vida humana na Terra até cem anos atrás. Os meios de comunicação se aperfeiçoaram e continuam a se transformar numa progressão cada vez mais vertiginosa, já que, em matéria de tecnologia, o novo torna-se obsoleto praticamente a toda hora. No terreno da leitura, os CD-ROM - ou "livros audiovisuais", se assim se pode defini-los - parecem ameaçar o futuro do livro convencional.

No Brasil - como, de resto, em todo o chamado "Terceiro Mundo" - a questão não é apenas o quê se lê atualmente, mas quantos estão lendo. A pouca leitura pode ser efeito da concorrência com outros meios de comunicação, porém, entre nós, ela é principalmente o reflexo de um sistema educacional que há várias décadas vem se deteriorando. Por isso costumamos dizer que a invenção da imprensa gerou um número quase ilimitado de leitores: sem planos e ações educacionais solidamente estruturados, ainda que se façam grandes esforços para reduzir o analfabetismo - e, no caso brasileiro, com resultado -, ainda assim não se cria uma população leitora. E nem, é óbvio, cidadãos conscientes e atuantes.

Conseqüência direta ou indireta desse quadro, na grande maioria das escolas brasileiras, quando há bibliotecas, prevalece um sistema arcaico de utilização e aproveitamento do acervo e não apenas por indigência material.

Mesmo aquelas que podem se dar o luxo de algum aparato tecnológico e de práticas mais modernas relutam em investir nos recursos humanos, deixando que alguns velhos cacoetes culturais perdurem. Por exemplo, o de improvisar um guardião que terá como missão, de fato, guardar o geralmente precário material bibliográfico. E o fará, geralmente também, com um zelo e uma rabugice de burocrata. Os leitores da assim chamada biblioteca - crianças e adolescentes, em sua maioria - irão freqüentá-la com igual despreparo e desinteresse, subutilizando sempre os possíveis recursos. E o contato prazeroso com a leitura - já de si tão problemático nestes tempos de cultura visual -, este sim, passa por metamorfose definitiva: ler se torna mais um entre os deveres escolares.

DE NORTE A SUL

A situação da biblioteca escolar no Brasil é reflexo do contexto em que ela tem existência, qual seja, o da educação. Portanto, não é grande surpresa a dificuldade em se obterem dados atualizados sobre essa situação - quantas escolas possuem bibliotecas, o porte de seus acervos, quais têm profissionais especializados em seu comando e daí por diante. Assim, para se ter uma visão panorâmica do quadro, vamos recorrer aqui a informações de 1987, reunidas numa ampla reportagem da revista Escola.

"De norte a sul do País", constata o artigo, "as escolas enfrentam inúmeras dificuldades para organizar uma biblioteca, manter - mesmo precariamente - as que existem ou ainda para tentar integrá-las no processo educacional.”.

Com isso, os 25 milhões de alunos do 1º grau (à época, 18 % da população brasileira) ficavam privados de material de pesquisa, leitura e de outras fontes de informação além do próprio professor e do material didático. Em última análise, então como agora, os estudantes sem acesso a uma biblioteca em sua própria escola correm mais o risco de ficar à margem de um ensino democratizado.

Como não existe um órgão nacional que cuide especificamente de bibliotecas escolares, as questões relativas a elas têm que ser administradas pelas secretarias estaduais e municipais de educação. E mesmo estas não dispõem, em sua maioria, de dados precisos e atuais sobre a situação das bibliotecas escolares.

AS DUAS FUNÇÕES

Embora tão marginalizada de nosso sistema educacional, a biblioteca escolar, tem funções fundamentais a desempenhar e que podem ser agrupadas em duas categorias - a educativa e a cultural.

Na função educativa, ela representa um reforço à ação do aluno e do professor. Quanto ao primeiro, desenvolvendo habilidades de estudo independente, agindo como instrumento de auto-educação, motivando a uma busca do conhecimento, incrementando o gosto pela leitura e ainda auxiliando na formação de hábitos e atitudes de manuseio, consulta e utilização do livro, da biblioteca e da informação. Quanto à atuação do educador e da instituição, a biblioteca complementa as informações básicas e oferece seus recursos e serviços à comunidade escolar de maneira a atender as necessidades do planejamento curricular.

Em sua função cultural, a biblioteca de uma escola torna-se complemento da educação formal, ao oferecer múltiplas possibilidades de leitura e, com isso, levar os alunos a ampliar seus conhecimentos e suas idéias acerca do mundo. Pode contribuir para a formação de uma atitude positiva, prazerosa frente à leitura e, em certa medida, participar das ações da comunidade escolar, servindo-lhes de suporte.

Nessas funções, por assim dizer, "ideais" de uma biblioteca escolar, estariam implícitos seus objetivos como instituição, que relacionamos a seguir:

- cooperar com o currículo da escola no atendimento às necessidades dos alunos, dos professores e dos demais elementos da comunidade escolar;

- estimular e orientar a comunidade escolar em suas consultas e leituras, favorecendo o desenvolvimento da capacidade de selecionar e avaliar;

- incentivar os educandos a pensar de forma crítica, reflexiva, analítica e criadora, orientados por equipes inter-relacionadas (educadores + bibliotecários);

- proporcionar aos leitores materiais diversos e serviços bibliotecários adequados ao seu aperfeiçoamento e desenvolvimento individual e coletivo;

- promover a interação professor-bibliotecário-aluno, facilitando o processo ensino-aprendizagem;

- oferecer um mecanismo para a democratização da educação, permitindo o acesso de um maior número de crianças e jovens a materiais educativos e, através disso, dar oportunidade ao desenvolvimento de cada aluno a partir de suas atitudes individuais;

- contribuir para que o educador amplie sua percepção dos problemas educacionais, oferecendo-lhe informações que o ajudem a tomar decisões no sentido de solucioná-los, tendo como ponto de partida valores éticos e cidadãos.

DE GUARDIÃO A MEDIADOR

De nada serviria uma bela biblioteca escolar, com espaço físico e acervo suficientes às necessidades do estabelecimento de ensino se, para exercer as funções e cumprir seus objetivos, não estiver em seu comando um profissional consciente, com sensibilidade e habilitações básicas para manter esse espaço de cultura e informação bem azeitado e atraente.

Entre as habilitações se incluem, claro, aqueles conhecimentos técnicos essenciais de organização do acervo, bem como dos mecanismos cotidianos para utilizá-lo - empréstimos e devoluções, dentre outros. É verdade que a maior parte das bibliotecas escolares brasileiras não conta com o bibliotecário a sua frente. Uma série de motivos podem ser apontados como causas desta situação.

Para atuar como bibliotecário escolar, o profissional deve ter noções mínimas de seu papel. Deve saber, por exemplo, que lhe compete oferecer oportunidades, materiais e atividades específicas, visando despertar o interesse da comunidade escolar pela biblioteca para, a partir daí, poder trabalhar no desenvolvimento da leitura.

A promoção de certas atividades - só requer um pouco de inventividade e gosto por parte do bibliotecário. Um exemplo: ao narrar histórias para crianças das primeiras séries, ele poderá abrir caminho à aquisição do hábito de ler. Neste ponto, é oportuna uma observação: quando falamos em hábito de ler, não nos referimos a uma atitude mecânica e obrigatória como, por exemplo, escovar dentes; estamos falando, sim, daquela "compulsão" de procurar e saborear determinado livro ou texto, daquela necessidade tão natural que se pode compará-la à de um gourmet que habitualmente antegoza e depois frui um belo prato.

Ler poemas, para despertar emoções e sentidos; realizar exposições, entrevistas; promover a leitura de textos teatrais; oferecer atividades em diversos campos da arte, como a mímica, a dramatização, a pintura; eis algumas das ações que bibliotecários escolares podem e devem empreender no recinto da biblioteca ou fora dela, mas sempre em consonância com o currículo e coadjuvando o trabalho do corpo docente.

Em síntese, sua grande tarefa é tornar a biblioteca da escola um lugar agradável, dinâmico, onde prevaleça um clima de harmonia entre ele e o público, seja qual for a faixa etária ou a posição deste na hierarquia da escola. No Brasil, a principal barreira a ser vencida nesse convívio parece ser a que tacitamente se ergue entre o educador e o bibliotecário. Este, por nem sempre estar bem entrosado com os problemas educacionais, costuma fechar-se em seus "domínios", tornando-se apenas mero entregador de livros.

O professor, por não saber desenvolver, na maioria dos casos, outro tipo de aula que não o discursivo, acha que prescinde do bibliotecário e não o procura. E assim se têm perdido ótimas oportunidades de um trabalho entrosado que propiciaria a aprendizagem baseada na indagação e na busca de conhecimentos mais amplos.

Apresentamos, a título de resumo, um rol das principais funções e atribuições que deveriam fazer parte do cotidiano do bibliotecário escolar:

- participar ativamente do processo educacional, planejando junto ao quadro pedagógico as atividades curriculares. E isso deve ser feito para todas as disciplinas, acompanhando o desenvolvimento do programa, colocando à disposição das comunidades escolar materiais que complementem a informação transmitida em classe;

- fazer da biblioteca um local prazeroso, descontraído, de modo a que os se sintam atraídos por ela;

- estimular os alunos, através de atividades simples, desde o maternal, a desenvolverem o "gostar de ler";

- proporcionar informações básicas que permitam ao aluno formular juízos inteligentes na vida cotidiana;

- oferecer elementos que promovam a apreciação literária, a avaliação estética e ética, tanto quanto o conhecimento dos fatos;

- favorecer o contato entre alunos de idades diversas.

O que se pretende, com tal comportamento profissional, é fazer com que a biblioteca escolar seja o agente de transformação do ensino, na medida em que provoque mudanças pedagógicas na escola. Isso, certamente, enquanto nossas instituições de ensino não atingem aquela sonhada maturidade, em que transformar seja apenas sinônimo de progredir e elas possam simplesmente exercer sua função primordial de formar.

Fonte:
Publicado em 1999.
http://www.bibvirt.futuro.usp.br/

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