terça-feira, 27 de maio de 2008

Prosper Mérimée (A partida de gamão)

As velas pendiam, imóveis, coladas aos mastros; o mar estava liso como gelo; o calor era sufocante, desesperadora a calmaria.

Numa viagem por mar, os recursos em matéria de divertimento, que os anfitriões do navio possam oferecer, bem depressa se esgotam. Conhecemo-nos bem demais, ai de nós! depois de passarmos juntos quatro meses numa casa de madeira com o comprimento de cento e vinte pés. Quando o primeiro-tenente se aproxima já sabemos que, em primeiro lugar, ele falará do Rio de Janeiro, de onde procede; depois da famosa ponte de Essling, construída pelos marinheiros da guarda, de que fazia parte. Ao cabo de quinze dias conhecemos até suas expressões prediletas, até a maneira como pontua as frases e as diferentes entonações de voz. Nunca, desde que pela primeira vez contou suas narrativas esta palavra o imperador... ele deixou de interromper-se com tristeza e invariavelmente acrescentar: “Se o senhor o tivesse visto naquela ocasião!!! (três pontos de exclamação). E o episódio do cavalo do clarim e da bala de artilharia que ricocheteara, levando-lhe uma cartucheira onde tinha sete mil e quinhentos francos em ouro e jóias, etc., etc.! O segundo tenente gosta muito de política; comenta todos os dias o último numero do Constitutionnel, que trouxe de Brest; ou, se deixa as alturas da política para descer a literatura, é para regalar-nos com a análise da última comédia musicada que assistiu.

Os oficiais a bordo do navio em que eu embarcara eram as melhores pessoas do mundo, ótimos sujeitos, que se estimavam uns aos outros como irmãos, mas podia-se apostar qual seria o mais enfadonho. O capitão era o mais pacato dos homens, nada intrigante (o que constitui uma raridade). Era sempre a contragosto que impunha a sua autoridade ditatorial. Com tudo isso, como a viagem me pareceu longa! Sobretudo aquela calmaria que nos surpreendeu apenas alguns dias antes de avistarmos a terra!...

Um dia depois do jantar, que a inação nos fizera prolongar o máximo possível, estávamos reunidos no convés, aguardando o espetáculo monótono, mas sempre majestoso, do pôr-do-sol nas águas. Alguns fumavam, outros reliam pela vigésima vez um dos trinta volumes de nossa minguada biblioteca: todos bocejavam a ponto de chorar. Um oficial sentado a meu lado divertia-se com a gravidade digna de uma ocupação mais séria, como deixar cair nas tábuas da coberta, a ponta voltada para baixo, o punhal que os oficiais de marinha costumam usar com o uniforme. Era um divertimento como outro qualquer, e exige habilidade para conseguir que a ponta se enterre perpendicularmente na madeira. Como desejasse imitar o oficial e não dispusesse de punhal, experimentei pedir emprestado o do capitão, que me recusou. Explicou-me que se apegara singularmente à sua arma, e não gostaria de vê-la utilizada em tão fútil entretenimento. Aquele punhal pertencera a um bravo oficial infortunadamente morto na ultima guerra. Adivinhei a aproximação de uma história e não me enganava. O capitão iniciou-a, sem se fazer de rogado; quanto aos oficiais que nos rodeavam, já conheciam de cor e salteado os infortúnios do tenente Roger, e imediatamente operaram uma retirada discreta. A narrativa do capitão é a seguinte, mais ou menos:

“Quando conheci Roger, mais velho do que eu três anos, ele era tenente; eu, guarda-marinha. Asseguro-lhe que era um dos melhores oficias do nosso corpo; aliás, um excelente coração, inteligência, cultura, dotes artísticos, tudo possuía ele: em sua, um homem encantador. Um pouco orgulhoso e suscetível, infelizmente, o que derivava, suponho, do fato de ser filho natural; temia que seu nascimento lhe fizesse perder a consideração social. Porém, para dizer a verdade, o maior de seus defeitos era o desejo intenso e persistente de ser o primeiro em tudo. Seu pai, a quem nunca vira, dava-lhe uma pensão que teria sido mais do que suficiente para as suas necessidades se Roger não encarnasse a própria generosidade. Tudo que possuía pertencia aos amigos. Mal acabava de receber o seu trimestre, era bastante que alguém o procurasse com o rosto sério e preocupado, para indagar:

- Que é isso, colega, que tens? Pelo teu aspecto, teus bolsos não farão barulho se os sacudirmos; vamos, aqui está a minha carteira, tira o que precisares e vem jantar comigo.

“Chegou a Brest uma jovem atriz muito bonita, chamada Gabriela, e não tardou a conquistar marinheiros e oficiais da guarnição. Não se poderia dizer que fosse uma beleza clássica, mas tinha estatura, belos olhos, pés pequenos, expressão passavelmente descarada; tudo isso nos agrada muito quando estamos na altura dos 25 anos. Ainda por cima, diziam-na a mais caprichosa das criaturas do seu sexo, e a sua maneira de representar não desmentia tal reputação. Ora desempenhava maravilhosamente bem o seu papel, dir-se-ia uma atriz de primeira ordem; no dia seguinte, na mesma peça, mostrava-se fria, insensível; recitava a sua parte como uma criança recita o catecismo. Um caso, que lhe atribuíam, sobretudo, interessou os jovens oficias. Ao que parece fora, em Paris, mantida com muito luxo por um senador que fazia, como dizem, loucuras por causa dela. Um dia, estando ele em casa de Gabriela, pôs o chapéu na cabeça; ela lhe pediu que o tirasse, e chegou a queixar-se de que aquilo era falta de respeito. O senador pôs-se a rir, ergueu os ombros e disse, afundando-se numa poltrona: “Então não posso ficar à vontade na casa de uma rapariga paga por mim!” Uma bofetada de carregador, aplicada pela mão branca de Gabriela, foi o que sua resposta mereceu na hora, fazendo com que o chapéu do cavalheiro fosse parar no outro canto do quarto.

“Depois de vê-la e de inteirar-se dessa história, Roger achou que ela lhe convinha, e com a franqueza um pouco rude que censuram em nós, marinheiros, procedeu da seguinte forma para demonstrar a Gabriela que seus encantos o tinham impressionado. Comprou as mais belas e raras flores que conseguiu encontrar em Brest, fez um ramo que amarrou com uma bonita fita cor-de-rosa, e no laço prendeu de maneira artística um rolo de 25 napoleões; era tudo que possuía no momento. Lembro-me de que o acompanhei aos bastidores durante um intervalo. Dirigiu a Gabriela um cumprimento muito curto sobre a graça como usava suas roupas, ofereceu-lhe o ramo de flores e pediu licença para visitá-la. Tudo isso expresso em três palavras.
Enquanto Gabriela só viu as flores e o belo rapaz que as oferecia, sorriu-lhe, acompanhando o sorriso com uma reverência das mais graciosas; porém, quando o buquê passou as suas mãos ela sentiu o peso do ouro e sua fisionomia mudou mais rapidamente do que a superfície do mar tumultuado por um furacão dos trópicos; e, de certo modo, não se mostrou menos violenta, pois lançou com todas as suas forças o ramo de flores e os napoleões à cabeça do meu amigo, cujo rosto ficou marcado por oito dias. A campainha do regente soou, Gabriela voltou a cena e representou pessimamente.

Tendo apanhado o buquê e o rolo de dinheiro com um jeito muito vexado, Roger foi para o café e ofereceu o ramalhete (sem o dinheiro) à moça do balcão, e experimentou, bebendo ponche, esquecer a cruel dama. Não conseguiu; apesar do despeito nascido do fato de não poder mostrar-se com o olho contundido, apaixonou-se loucamente pela irascível Gabriela. Escrevia-lhe vinte cartas por dia, e que cartas! submissas, ternas, respeitosas, tais como se fossem endereçadas a uma princesa. As primeiras foram devolvidas sem terem sido abertas; as outras não obtiveram resposta. E Roger alimentava alguma esperança, quando descobrimos que a vendedoras de laranjas do teatro enrolava suas laranjas nas cartas de amor de Roger que, por um requinte de crueldade, Gabriela lhe entregava. Foi um golpe terrível para a altivez do nosso amigo. Contudo, nem por isso a sua paixão definhou. Falava em pedir a atriz em casamento e, como lhe diziam que o Ministro da Marinha nunca daria o necessário consentimento, protestava, afirmando que nesse caso estouraria os miolos.

Entrementes, aconteceu que os oficiais de um regimento de linha, aquartelado em Brest, quiseram obrigar Gabriela a repetir uma copla de vaudeville e, por capricho, ela se recusou. Ambos teimaram, os oficiais e a atriz, a ponto de os primeiros fazerem baixar o pano com seus assobios e a segunda desmaiar. O senhor sabe o que é a platéia de uma cidade de aquartelamento. Ficou combinado entre os oficiais que no dia seguinte e nos subseqüentes, a culpada seria vaiada sem remissão, não lhe sendo permitido representar um único papel, sem que antes de desculpasse. Roger não assistira ao espetáculo; porém na mesma noite inteirara-se do escândalo que pusera o teatro em rebordosa, e também dos projetos de vingança tramados para o dia seguinte. Não perdeu tempo em tomar uma decisão.

No dia imediato, quando Gabriela apareceu no palco, vaias e assobios de romper os tímpanos partiram do bando de oficiais. Roger, que se colocara propositadamente entre os desordeiros, levantou-se e interpelou os mais turbulentos em termos tão ofensivos que a fúria desses imediatamente se voltou para a sua pessoa. Então, com grande sangue-frio, puxou um caderninho do bolso e nele escreveu os nomes que lhe eram atirados de todos os lados; teria marcado duelo com o regimento inteiro se, por espírito de solidariedade, não surgisse uma boa quantidade de oficiais da marinha, que provocaram a maioria dos adversários de Roger. Foi realmente um pandemônio.

A guarnição inteira foi detida por vários dias; porém, ao serem os oficiais postos em liberdade, houve um tremendo ajuste de contas. Cerca de sessenta deles se encontraram no campo de honra. Roger, sozinho, bateu-se contra três; matou um e feriu gravemente outros dois, sem receber nenhum arranhão. Fui menos feliz: um maldito tenente, que fora mestre de esgrima, deu-me uma profunda estocada no peito, e esta quase me matou. Asseguro-lhe que foi um belo espetáculo aquele duelo, ou melhor, aquela batalha. A marinha obteve todas as vantagens e o regimento foi obrigado a deixar Brest.

Bem imagina que nossos oficiais superiores não esqueceram o responsável pelo tumulto. Durante 15 dias esteve de sentinela à porta.

Quando saí do hospital a sua penalidade já tinha sido suspensa, e resolvi visitá-lo. Qual não foi minha surpresa, ao entrar, defrontando com ambos, ele e Gabriela, que almoçavam juntos!
Davam a impressão de estar há muito tempo em ótimas relações. Já se tuteavam e bebiam no mesmo copo. Roger apresentou-me à amante como sendo seu melhor amigo e contou-lhe que eu fora ferido na escaramuça de que ela constituíra a única causa. Isso me valeu um beijo da bela criatura. Tinha inclinações bastante marciais.

Viveram juntos três meses inteiramente felizes, não se largando um só momento. Gabriela parecia amá-lo com paixão e Roger confessava que antes de conhecê-la não sabia o que era o amor.

Uma fragata holandesa fundeou no porto. Os oficiais ofereceram-nos um jantar. Bebemos copiosamente toda espécie de vinhos; e, retirada a toalha, não sabendo mais o que fazer, pois aqueles senhores falavam muito mal o francês, começamos a jogar. Os holandeses pareciam muito endinheirados; sobretudo o primeiro-tenente fazia questão de jogar tão caro que nenhum de nos o aceitava para parceiro. Roger, que não costumava jogar, achou que naquelas circunstancias seria necessário defender a honra da sua pátria. Jogou, pois, e acompanhou as paradas do tenente holandês. Primeiro ganhou, em seguida perdeu. Depois de algumas alternativas entre lucros e perdas, separaram-se sem prejuízo. Retribuímos o jantar dos holandeses. Tornamos a jogar. Roger e o tenente reiniciaram a luta. Em suma, durante dias, ambos se encontraram, fosse no café, fosse a bordo, e experimentaram jogos de todo o tipo, voltando ao gamão, e sempre aumentando as apostas, a ponto de jogarem partidas de 25 napoleões. Representava uma enorme quantia para oficiais como nós; mais de dois meses de soldo. Ao cabo de 1 semana Roger perdera todo o dinheiro que possuía, e mais três ou quatro mil francos que pedira emprestado aqui e ali.

Já terão desconfiado, sem dúvida, que Roger e Gabriela haviam acabado por fazer vida comum e bolsa comum: isto é, Roger, que não havia muito recebera uma quantia avultada, contribuía para as despesas do casal numa proporção 10 ou 20 vezes maior que a atriz. Porém, considerava o acervo como pertencendo principalmente à amante e só reservara cinqüenta napoleões para as suas despesas particulares. mas fora obrigado a recorrer àquela reserva para continuar a jogar. Gabriela não fizera a menor observação.

O dinheiro das despesas do casal tomou o caminho já seguido pelo dinheiro dos gastos particulares. Chegou o momento em que Roger se viu obrigado a arriscar seus últimos 25 napoleões. Aplicou-se tremendamente no jogo; e, assim sendo, a partida foi longa e disputada. Em dado momento, só restou a Roger, que empunhava o copo de dados, uma última oportunidade para ganhar: creio que lhe seriam precisos 6 e 4. A noite avançara. O holandês parecia fadigado e entorpecido; além disso, bebera muito ponche. Roger era o único que se conservava alerta e presa do mais violento desespero. Tremia ao lançar os dados. Atirou-os com tanta força que com a sacudidela uma vela caiu no chão. O holandês primeiro voltou a cabeça na direção da vela, que acabara de salpicar de cera a sua calça nova, e depois olhou para os dados: marcavam 6 e 4. Roger, pálido como a morte, recebeu os 25 napoleões. Continuaram a jogar. A sorte voltou-se para meu amigo que, contudo, cometia descuidos sobre descuidos, como se quisesse perder. O tenente holandês obstinou-se, dobrou, decuplou as paradas; continuava a perder. Creio vê-lo ainda: era louro, alto, fleumático, e seu rosto parecia de cera. Finalmente se levantou, depois de ter perdido 40 mil francos; pagou-os sem que sua fisionomia deixasse transparecer a mínima emoção.

Roger disse-lhe

- O nosso jogo desta noite fica sem efeito; o senhor estava dormindo, não quero seu dinheiro.
Respondeu-lhe o fleumático holandês:

- O senhor está gracejando: joguei muito bem, mas as cartas estavam contra mim. Tenho a certeza de que ainda ganharei, obrigando-o a restituir tudo quanto obteve hoje. Boa noite!

E retirou-se.

No dia seguinte soubemos que, desesperado com o prejuízo sofrido, depois de ter bebido uma tigela de ponche, ele estourara os miolos, no quarto.

Os 40 mil francos ganhos por Roger estavam espalhados sobre a mesa e Gabriela contemplava-os com um sorriso satisfeito:

- Estamos muito ricos. Que faremos com todo este dinheiro?

Roger nada respondeu; ficara como que estonteado depois da morte do holandês.

- Precisamos fazer uma porção de loucuras; - continuou Gabriela – dinheiro ganho tão facilmente, também deve ser gasto facilmente. Compremos uma caleça e façamos pouco do Prefeito Marítimo e sua mulher. Quero diamantes, casimira. Pede licença e vamos a Paris; aqui nunca conseguiremos gastar tanto dinheiro!

Deteve-se para observar Roger que, olhos cravados no soalho, cabeça apoiada à mão, não a ouvira, e parecia revolver na mente sinistros pensamentos.

- Que tens Roger? – indagou ela, apoiando a mão no ombro do rapaz. – Acho que estás amuado comigo; não consigo arrancar-te uma única palavra.

- Sinto-me muito infeliz – disse ele afinal, soltando um suspiro abafado.

- Infeliz! Deus me perdoe, estarias com remorsos por teres depenado aquele mynheer?

Ele ergueu a cabeça e fitou-a com olhos esgazeados.

- Que importa!... – prosseguiu ela – que importa que ele tenha levado a coisa ao trágico e estourasse os miolos? Não lamento os jogadores que perdem: e com toda certeza o dinheiro está bem melhor entre nossas mãos do que nas suas; ele o teria gasto bebendo e fumando enquanto que nós vamos fazer um milhão de extravagâncias, cada uma mais alinhada que a outra.
Roger passeava pelo quarto, a cabeça inclinada sobre o peito, os olhos rasos de lágrimas. Se o sr o visse, ter-se-ia apiedado dele.

Gabriela observou:

- Sabes que se não fosse conhecida tua sensibilidade, muita gente poderia acreditar que trapaceaste?

- E se fosse verdade? – indagou ele com voz surda.

- Ora! – respondeu ela, sorrindo – não és bastante inteligente para trapaceares no jogo.

- Sim, trapaceei; trapaceei como um canalha que sou.

Ela compreendeu que Roger falava a verdade, por causa da emoção com que se expressava. Sentou-se num canapé e permaneceu algum tempo em silêncio.

- Preferiria – disse finalmente – que a trapacear no jogo tivesses matado dez homens.

Houve um silêncio mortal, que durou meia hora. Estavam ambos sentados no sofá e não se olharam uma única vez. Roger foi o primeiro a levantar-se e deu boa noite à amante com voz bastante calma.

- Boa noite! – respondeu ela em tom seco e frio.

Roger disse-me mais tarde que se teria matado no mesmo dia, caso não receasse que seus companheiros adivinhassem a causa daquele suicídio. Não queria desonrar a própria memória.
No dia seguinte, Gabriela mostrou-se alegre como de costume; dir-se-ia que tivesse esquecido a confidência da véspera. Quanto a Roger, tornara-se sombrio, ríspido, mal saía do quarto, evitava os amigos e muitas vezes passava dias inteiros sem dirigir a palavra à amante. Eu atribuía sua tristeza a uma sensibilidade louvável, mas excessiva, e tentei por várias vezes consolá-lo; mas ele me desconcertava, afetando uma grande indiferença pelo seu infeliz parceiro. Certo dia, chegou mesmo a atacar violentamente a nação holandesa e sustentou que não havia na Holanda um único homem honesto. Entretanto, secretamente, se informava sobre a família do tenente holandês; mas ninguém conseguia dar-lhe qualquer notícia a respeito.

Seis semanas depois da infortunada partida de gamão, Roger encontrou em casa de Gabriela um bilhete escrito por um guarda-marinha no qual este parecia agradecer-lhe gentilezas recebidas. Gabriela era a própria desordem, e o bilhete em questão fora deixado sobre a lareira. Não sei se fora infiel, mas Roger acreditou-o, e teve um terrível acesso de cólera. Cobriu de injúrias a orgulhosa atriz; e, violento como era, não sei como não lhe bateu. Disse-lhe:

- Sem dúvida esse peralvilho te deu muito dinheiro? É a única coisa que amas e concederias teus favores ao mais sujo dos nossos marinheiros caso ele tivesse com que os pagar.

- Por que não? – respondeu a atriz. – Sim, eu permitiria que um marinho me pagasse, mas... não o roubaria.

Roger soltou um grito de raiva. Puxou o punhal, trêmulo e por um momento fitou Gabriela com olhos desvairados; depois, reunindo as suas forças, atirou a arma aos pés da moça e fugiu do apartamento para não ceder à tentação que o assaltara.

Era bem tarde, quando nessa mesma noite, passei pelo seu alojamento e, vendo a luz acesa, entrei para pedir-lhe um livro emprestado. Encontrei-o muito entretido em escrever. Não se moveu e mal pareceu perceber minha presença. Sentei-me junto à secretária e fitei-o: seus traços estavam de tal forma alterados que qualquer outra pessoa, a não ser eu, dificilmente o reconheceria. De repente, avistei sobre a escrivaninha uma carta já lacrada, e que me era dirigida. Apressei-me em abri-la. Roger comunicava-me que ia pôr fim aos seus dias, e delegava-me diversos encargos. Enquanto eu lia, ele continuava a escrever sem se preocupar comigo: era a Gabriela que dava adeus... Bem imagina qual foi a minha surpresa e tudo quanto devo ter-lhe dito, perturbado como me deixara a sua decisão.

- Será possível? Queres matar-te, tu que és tão feliz?

- Meu amigo – disse-me ele, lacrando a carta – de nada sabes. Não me conheces, sou um velhaco; sou tão desprezível que uma mulher da vida me insulta; e tão bem sinto minha baixeza que não me atrevo a bater-lhe.

Então me contou a história da partida de gamão, e o resto o senhor já sabe. Ouvindo-o, senti-me pelo menos tão emocionado quanto ele; não sabia o que lhe dizer; tinha lágrimas nos olhos, mas não conseguia falar. Enfim, ocorreu-me a idéia de fazer-lhe ver que não devia censurar-se por haver voluntariamente causado a ruína do holandês, a quem, afinal, com a sua... trapaça... só fizera perder 25 napoleões.

- Ora! – exclamou ele com amarga ironia – sou um pequeno ladrão, e não um grande. Eu que era tão ambicioso! Não passar de um pequeno velhaco!

E soltou uma gargalhada.

Desmanchei-me em lágrimas.

De repente, abriu-se a porta. Uma mulher entrou e precipitou-se nos seus braços: era Gabriela.

- Perdoa-me – disse-lhe, cingindo-o estreitamente – perdoa-me. Amo unicamente a ti, bem o sinto. Amo-te mais agora. Se quiseres, roubarei, já roubei... Sim, já roubei, roubei um relógio de ouro... Que poderia fazer de pior?

Roger meneou a cabeça com incredulidade; mas seu rosto como que se aclarou.

- Não, minha pobre menina – respondeu – é absolutamente necessário que me mate. Sofro demais, não posso suportar a dor que me punge.

- Bem, se queres morrer, morrerei contigo! Sem ti, que me importa a vida! Sou corajosa, já atirei com espingardas; matar-me-ei tão bem quanto outra qualquer. Além disso, já representei tragédias, estou acostumada.

Tinha lagrimas dos olhos ao falar, mas aquela última idéia fê-la sorrir, e o próprio Roger deixou escapar um sorriso.

- Estás rindo, meu oficial! – exclamou ela, batendo as mãos e beijando-o – não te matarás!

Continuava a beijá-lo, ora chorando, ora rindo-se, ora praguejando. Entretanto, apossara-se das pistolas e do punhal de Roger. Disse-lhe:

- Meu querido, tens uma amante que um amigo que te querem. Acredita-me, podes ainda desfrutar alguma felicidade neste mundo.

Saí, depois de abraçá-lo, e deixei-o com Gabriela.

Creio que só teríamos conseguido protelar seu funesto projeto, caso não tivesse recebido do Ministro ordens para partir, como primeiro-tenente, a bordo de uma fragata destinada a cruzar o oceano Índico, depois de ter passado através da esquadra inglesa que bloqueava o porto. Era uma expedição arriscada. Fiz compreender ao meu amigo que seria preferível morrer gloriosamente, vitimado por uma bala inglesa, a pôr fim aos seus dias com suas próprias mãos, sem nobreza e sem proveito para a pátria. Ele prometeu viver. Distribuiu a metade dos 40 mil francos pelos marinheiros estropiados ou pelas viúvas e filhos de marinheiros. Entregou o restante a Gabriela, que jurou que só os gastaria em boas obras. Pretendia cumprir a palavra,pobre moça! Mas seus impulsos eram de curta duração. Soube mais tarde que deu aos pobres alguns milhares de francos. Comprou trapos com o resto.

Vagamos lentamente rumo aos mares da Índia, embaraçados por ventos contrários e por manobras infelizes do nosso capitão, cuja imperícia multiplicava os perigos da empresa. Ora tocados por forças superiores, ora perseguindo navios mercantes, não passávamos um único dia sem uma nova aventura. Mas nem a vida arriscada que levávamos, nem as fadigas do serviço conseguiram distrair Roger dos tristes pensamentos que o perseguiam. Ele, que já fora considerado o oficial mais ativo e mais brilhante do nosso porto, agora de limitava apenas a cumprir sua obrigação. Logo após terminar o serviço, fechava-se no quarto, sem livros, sem papel; o infeliz passava horas inteiras deitado no catre, sem nem mesmo conseguir dormir.

Certo dia, observando-lhe o abatimento, achei acertado adverti-lo.

- Com os diabos! Meu caro, afliges-te por pouco. Escamoteaste 25 napoleões a um holandês obeso, bem! – sentes remorsos por um milhão. Ora, quando eras amante da esposa do prefeito de... não sentias remorsos? Entretanto, ela valia mais do que 25 napoleões.

Voltou-se ao colchão, sem me responder. Prossegui:

- Afinal, teu crime, já que insistes em dizer que é um crime, tinha um motivo honroso, e vinha de uma alma elevada.

Ele virou a cabeça e fitou-me com irritação.

- É verdade – continuei – pois se tivesses perdido, que aconteceria a Gabriela? Pobre moça, teria vendido a última camisa para ajudar-te. Se perdesses, ficarias na miséria... Foi por ela, foi por amor a ela que trapaceaste. Há pessoas que matam por amor... ou se matam... Tu, meu querido Roger, fizeste mais. Para um homem da nossa fibra, há mais coragem em... roubar, para falar claro, do que matar-se.

- Talvez – disse o capitão, interrompendo a narrativa – agora eu lhe pareça ridículo. Asseguro-lhe, porém, que a minha amizade por Roger conferia-me naquele momento uma eloqüência de que não disponho; e que, o diabo me leve, ao assim lhe falar, fazia-o de boa-fé e acreditava em tudo o que dizia. Ah! naquele tempo eu era jovem!

Roger permaneceu algum tempo calado; depois me estendeu a mão, e parecendo fazer um grande esforço para dominar a emoção, disse-me:

- Meu amigo, julgas-me melhor do que sou. Sou um ladrão, covarde. Quando trapaceei com aquele holandês, só pensava em ganhar 25 napoleões, mais nada. Não pensava em Gabriela e aí está por que me desprezo... Eu, avaliar minha honra em menos de 25 napoleões!... Que baixeza! Sim, seria feliz se pudesse dizer a mim mesmo: “Roubei para tirar Gabriela da miséria... Não!... Não pensava nela... naquele momento não me sentia apaixonado... Era um jogador... era um ladrão... Roubei dinheiro para ficar com ele... e de tal maneira essa ação me embruteceu, me aviltou, que agora não sinto mais coragem nem amor... vivo e não penso mais em Gabriela... sou um homem acabado.

Parecia-me tão infeliz que se me tivesse pedido minhas pistolas para matar-se, creio que as teria entregue.

Uma determinada sexta-feira, dia de mau augúrio, divisamos uma grande fragata inglesa, Alceste, que começou a perseguir-nos. Possuía 58 canhões e nós só 38. Demos todo o pano para fugir; mas tinha maior velocidade e aproximava-se de momento a momento. Era evidente que antes da noite seríamos obrigados a entrar numa luta desigual. Nosso capitão chamou Roger ao seu camarote, onde ficaram deliberando um bom quarto de hora. Roger tornou a subir à coberta, tomou-me pelo braço e levou-me à parte. Então me disse:

- Daqui a 2 horas, o caso estará resolvido. Esse pobre homem que se agita no castelo de popa, perdeu a cabeça. Só tinha dois partidos a tomar: o primeiro, mais honroso, seria deixar o inimigo aproximar-se, depois abordá-lo energicamente, lançando a bordo uma centena de rapazes resolutos; o outro partido, que não seria mau, apenas um tanto covarde, seria aliviar-nos, atirando ao mar uma parte dos nossos canhões. Então poderíamos contornar de muito perto as costas da África, que divisamos ao longe, a bombordo. O inglês, receoso de encalhar, seria obrigado a permitir que fugíssemos. Nosso... capitão, porém, não é nem covarde, nem herói; vai deixar que sejamos destruídos de longe, a tiros de canhão e, depois de algumas horas de combate, sem dúvida baixará honrosamente o pavilhão. Tanto pior para ti; esperam-te os pontões de Portsmouth. Quanto a mim, não pretendo vê-los.

- Talvez nossos primeiros tiros de canhão, acertando no alvo, causem ao inimigo avarias sérias para obrigá-lo a interromper a caça.

- Escuta, não quero ser feito prisioneiro, prefiro que me matem, estou em tempo de acabar comigo. Se por desgraça apenas ficar ferido, dá-me tua palavra de honra que me atirarás ao mar.
É o leito onde deve morrer um bom marinheiro como sou.

- Que loucura! – exclamei. – E que incumbência me dás!

- Cumprirás um dever de bom amigo. Bem sabes que é preciso que eu morra. Só na esperança de ser morto é que consenti em não me matar. Promete-me, vamos; se recusares, vou pedir ao contramestre que me preste esse serviço, e garanto que não se negará a fazê-lo.

Disse-lhe, depois de ter refletido:

- Dou minha palavra que farei o que desejas, conquanto sejas mortalmente ferido, sem esperanças de cura. Nesse caso, consinto em poupar-te sofrimentos.

- Serei mortalmente ferido, ou então morto.

Estendeu-me a mão que apertei calorosamente. Daí por diante mostrou-se mais calmo, e uma certa alegria marcial chegou mesmo a iluminar-lhe o rosto.

Eram cerca de 3 horas da tarde quando os canhões de caça do inimigo começaram a atingir nossos massames. Então ferramos uma parte de nossas velas; apresentávamos o costado ao Alceste, e sustentamos um prolongado tiroteio contra os ingleses, que responderam vigorosamente. Depois de uma hora de luta, nosso capitão que não tomava uma decisão acertada, quis tentar a abordagem. Já tínhamos muitos mortos e feridos, e o restante da tripulação perdera o entusiasmo. No momento em que abríamos as velas para aproximar-nos do inglês, o mastro principal que mal se agüentava, caiu com um tremendo estrépito. O Alceste aproveitou a confusão do acidente. Passou junto a nossa popa, ponto um lado inteiro da nossa fragata ao alcance dos canos da sua artilharia, que a varou de proa a popa; só podíamos opor-lhe dois pequenos canhões. Encontrava-me junto a Roger, ocupado em mandar cortar as cordas que retinham o mastro derrubado. De súbito, sinto que me aperta o braço com força; volto-me e vejo-o caído no convés, todo coberto de sangue. Acabava de receber um tiro de metralha no ventre.

O capitão correu para ele:

- Que devo fazer, tenente? – indagou.

- Deve fixar o pavilhão neste toco de mastro e deixar-nos afundar.

Imediatamente o capitão se afastou, pouco satisfeito com o conselho.

Então Roger falou:

- Não te esqueças da tua promessa.

- Não é nada, podes sarar.

- Atira-me por cima da amurada! – exclamou, praguejando horrivelmente, e puxando a aba do meu casaco – bem vês que não escaparei; atira-me ao mar, não quero vê-los levar a nossa bandeira.

Dois marinheiros aproximaram-se a fim de carregá-lo para o fundo do porão.

- Voltem para os canhões, patifes! – ordenou – Disparem a metralhadora, apontem para a coberta, e tu, se faltares à tua palavra, eu te amaldiçoarei e te considerarei o mais covarde e vil dos homens!

O ferimento que recebera era evidentemente mortal. Vi o capitão chamar um aspirante e dar-lhe ordens para trazer a nossa bandeira.

- Dá-me um aperto de mão – disse Roger.

No próprio momento em que trouxeram a nossa bandeira...

- Capitão, uma baleia a bombordo! – interrompeu um guarda-marinha, correndo ao nosso encontro.
- Uma baleia! – exclamou o capitão, cheio de alegria e cortando a narrativa. – Depressa, chalupas ao mar! O iole ao mar! Todas as chalupas ao mar! Arpões,cordas! Etc., etc.

Não consegui saber como morreu o pobre tenente Roger.

Fonte:
http://victorian.fortunecity.com/postmodern/135/

Nenhum comentário: