segunda-feira, 26 de maio de 2008

Nathaniel Hawthorne (O Paladino Grisalho)

Houve outrora um tempo em que a Nova Inglaterra gemia sob uma opressão realenga de injustiças ainda mais pesadas que a ameaça das que ensejaram a Revolução. Jaime II, o fanático sucessor de Carlos, o Voluptuoso, anulara as cartas constitucionais de todas as colônias, e enviara um rude soldado sem princípios para roubar as nossas liberdades e pôr em perigo a nossa religião. À administração de Sir Edmund Andros quase não faltava uma só característica da tirania: governador e Conselho nomeados pelo rei, inteiramente independentes do país; leis decretadas e impostos elevados sem o concurso do povo interessado ou de seus representantes; os direitos dos cidadãos particulares eram violados e os títulos das propriedades com base na terra, declarados nulos; havia queixas abafadas mercê de restrições à imprensa; e, finalmente, a dissidência intimidada pelo primeiro bando de tropas mercenárias que nunca, até aquela data, havia marchado em nosso livre chão. Por dois anos os nossos ascendentes foram mantidos numa taciturna submissão, graças àquele amor filial que invariavelmente era o penhor da sua lealdade à pátria de origem, fosse esta governada por um parlamento, um protetor ou um monarca papista. No entanto, até aquela época infeliz, uma tal lealdade fora apenas nominal, pois os colonos governavam-se a si próprios, gozando de uma liberdade ainda maior do que aquela que é o privilégio dos súditos nativos da Grã-Bretanha.

Finalmente correu um boato em nossas praias: o príncipe de Orange arriscara-se a uma empresa, cujo sucesso seria o triunfo dos direitos civis e religiosos e a salvação da Nova Inglaterra. O boato era suspeito: podia ser falso, ou a tentativa podia falhar; em qualquer caso, o homem que se rebelasse contra o rei Jaime perderia a cabeça. Todavia o boato produziu notável efeito. Pessoas sorriam misteriosamente nas ruas, lançando olhares atrevidos a seus opressores; enquanto por toda parte se espalhava uma agitação contida e silenciosa, como se ao menor sinal toda a terra se levantasse do seu letárgico desânimo. Cônscios do perigo, os governantes resolveram evitá-lo mediante a exibição de uma imponente demonstração de força, e talvez confirmar o seu despotismo com medidas ainda mais ásperas. Certa tarde de abril de 1689, Sir Edmund Andros e seus conselheiros favoritos, depois que o vinho lhes havia subido à cabeça, reuniram os fardas-vermelhas da guarda do governador e fizeram sua aparição nas ruas de Boston. O sol se punha quando a marcha começou.

O rolar do tambor naquela crise inquietante parecia varar as ruas, não tanto como a música marcial da soldadesca, mas como um chamado de reunir aos próprios cidadãos. O povo, provindo de várias avenidas, aglomerou-se na King Street, destinada a ser o cenário, quase um século depois, de outro encontro entre as tropas da Grã-Bretanha e um povo que lutava contra a sua tirania. Embora se tivessem escoado mais de sessenta anos após a chegada dos peregrinos, a multidão de seus descendentes ainda revelava as fortes e sombrias feições de seus ancestrais, talvez ainda mais impressionantes nessa grave emergência do que em ocasiões mais felizes. Via-se ali o austero garbo, a geral severidade de fisionomia, a sombria mas intimorata expressão, as formas bíblicas do discurso e a confiança na benção do céu sobre uma causa justa, que marcaram o bando de puritanos originais, quando algum perito os ameaçava na região inculta. Com efeito, ainda não era tempo de extinguir-se o espírito primitivo; de vez que naquele dia havia homens na rua que homens na rua que celebraram o seu culto sob as árvores, antes de se erigir uma casa ao Deus por cuja causa se tornaram exilados. Também ali se achavam velhos soldados do
Parlamento, sorrindo sombriamente à idéia de que seus velhos braços ainda podiam golpear uma segunda vez a Casa de Stuart. Estavam também os veteranos da guerra do rei Filipe, que tinham queimado aldeias e matado jovens e velhos com uma piedosa ferocidade, enquanto as santas almas do país os ajudavam com orações. Muitos eram os ministros espalhados pela multidão, a qual, ao contrário de outras multidões, olhava-os com uma tal reverência, que era como se de sua própria vestimenta a santidade se exalasse. Esses santos exerciam a sua influência para acalmar o povo, não para dispersá-lo. Entrementes, o propósito do governador, perturbando a paz da cidade em um período em que a mais insignificante tropelia poderia lançar o país em convulsão, era quase o assunto universal de indagação, de várias formas explicado.

— Satã dará agora o seu golpe de mestre — exclamavam alguns —, pois ele sabe que seu tempo é curto. Todos os nossos santos pastores vão ser arrastados para a prisão! Vê-los-emos num fogo de Smithefield, King Street!

Ao que o povo de cada paróquia se aglomerava em torno de seu ministro, o qual voltava calmamente o olhar para cima e assumia uma dignidade mais apostólica, assim como convinha a um candidato à mais alta honra da sua profissão: a coroa do martírio. Realmente se fantasiava naquela época, que a Nova Inglaterra bem podia ter o seu próprio John Rogers para substituir aquele grande homem no livro de orações.

— O papa de Roma ordenou uma nova São Bartolomeu! — outros exclamavam. — Vamos ser massacrados... homens, mulheres e crianças!

Esse boato não foi de todo desmentido, conquanto a classe mais esclarecida acreditasse que o objetivo do governo fosse menos atroz. Sabia-se que o seu predecessor, quando ainda vigorava a Carta dos Direitos, um tal Bradstreet, venerando companheiro dos primeiros povoadores, estava presente na cidade. Havia motivo para conjeturar que Sir Edmund Andros pretendia de imediato aterrorizar, mercê de um desfile de força militar, e confundir a facção adversária, apossando-se ele próprio de seu chefe.

Ficai firmes ao lado do governador da velha Carta! — gritava a multidão, apossando-se da idéia. — O velho e bom governador Bradstreet!

Quando esse grito atingiu o auge, o povo viu-se surpreendido com a presença do próprio governador Bradstreet, um patriarca de quase noventa anos, que surgiu nos altos degraus de uma porta e, com uma brandura característica, concitou-os a submeter-se às autoridades constituídas.

— Meus filhos — concluiu o venerando velho —, não façais coisa alguma atropeladamente. Não griteis, mas rezai pela prosperidade da Nova Inglaterra, e esperai pacientemente o que o Senhor fará quanto a isso.

O evento em breve se decidiria. Todo esse tempo o rolar do tambor vinha se aproximando através do Cornhill, cada vez mais alto e mais profundo, até que, ecoando de casa em casa, e acompanhado do tropel marcial da soldadesca, irrompeu na rua. Uma dupla fila de soldados apareceu nessa ocasião, ocupando a passagem em toda a sua largura, com arcabuzes de mecha sobre o ombro e morrões acesos — verdadeiro renque de fogos ardendo no crepúsculo. A firmeza de sua marcha lembrava a marcha de uma máquina, que irresistivelmente tudo esmagaria em seu caminho. Em seguida, movimentando-se lentamente com um chocalhar de cascos no calçamento, vinha um grupo de cavaleiros montados, sendo sua figura central o próprio Sir Edmund Andros, velho mas ereto e de aspecto militar. Os que o cercavam eram os seus conselheiros favoritos, e os mais ferrenhos inimigos da Nova Inglaterra. À sua direita cavalgava Edward Randolph, nosso arquiinimigo, aquele “maldito excomungado”, como lhe chamava Cotton Mather, que levou a cabo a queda do nosso antigo governador, seguida por uma maldição que o acompanhou por toda a vida e até o túmulo. De outro lado vinha Bullivant, espalhando pilhérias e zombarias enquanto avançava. Dudley vinha atrás, com um ar desanimado, temendo, como devia, o olhar indignado do povo, que nele via o seu único patrício de nascença bandeado para os opressores da terra natal. O capitão de uma fragata fundeada no porto e dois ou três oficiais civis sob a coroa também faziam parte da comitiva. Mas a figura que mais atraía o olhar público, e despertava o mais profundo sentimento, era o clérigo episcopal da Capela Real, em seus trajes sacerdotais, cavalgando altaneiro entre os magistrados, representante condigno da prelazia e da perseguição, união da Igreja e do Estado, e todas as demais abominações que tinham impelido os puritanos para aquela região inóspita. Fechava a retaguarda um grupo de soldados em fila dupla.

A cena toda era um retrato da condição da Nova Inglaterra, e o seu moral, a deformidade de qualquer governo que não provenha da natureza das coisas e da índole do povo. De um lado, a multidão religiosa, com seus rostos tristonhos e trajes escuros; do outro, o grupo de governantes despóticos, tendo no meio o clérigo da Igreja Alta, o crucifixo no peito, todos magnificamente vestidos, congestionados de vinho, orgulhosos da sua injusta autoridade, escarnecendo do gemido universal. E os soldados mercenários, só esperando a ordem para inundar de sangue as ruas, mostravam o único meio pelo qual se podia garantir a obediência.

— Ó Deus dos Exércitos! — exclamou uma voz entre a multidão —, suscita um paladino para o teu povo!

A exclamação foi proferida em voz alta e serviu como o grito de um arauto para apresentar uma notável personagem. A multidão recuara e agora se aglomerava, maciça, quase no fim da rua, enquanto os soldados ainda não tinham avançado mais que um terço do seu comprimento. O espaço intermediário estava vazio — verdadeiro deserto de chão calçado entre altos edifícios que lançavam quase um crepúsculo de sombra sobre ele. Repentinamente, viu-se a figura de um ancião, que se diria ter surgido dentre o povo, caminhar sozinho pelo meio da rua a fim de defrontar-se com o bando armado. Vestia ele o antigo traje puritano, capa negra e chapéu de copa pontuda, que se usara cinqüenta anos antes, e levava uma pesada espada dependurada no flanco, além de um cajado na mão para assistir-lhe o passo vacilante da velhice.

A alguma distância da multidão o velho fez uma volta vagarosa exibindo um rosto de antiga majestade, tornado duplamente venerando pela comprida barba que lhe descia sobre o peito. Fez um gesto a um tempo de encorajamento e advertência, depois tornou a virar-se e reencetou o caminho.

— Quem é esse patriarca encanecido? — perguntaram os jovens a seus pais.

— Quem é esse venerando irmão? — perguntaram entre si os anciãos.

Mas ninguém soube responder. Os pais do povo, aqueles que tinham quatro vintenas de anos ou mais, ficaram perturbados, achando estranho terem eles próprios esquecido alguém dotado de uma autoridade tão evidente, alguém que deviam ter conhecido anos atrás, sem dúvida um sócio de Winthrop e de todos os antigos conselheiros que decretaram leis, fizeram orações e os conduziram contra o selvagem. Os anciãos deviam ter lembrança dele, com suas madeixas tão grisalhas naquele tempo, exatamente como as deles eram agora. E os jovens! Como podiam tê-lo esquecido tão completamente — aquele idoso cavalheiro, relíquia de tempos idos, cuja bênção terrível fora, sem dúvida, concedida sobre suas infantis cabeças descobertas?

— De onde teria vindo? Qual a sua intenção? Quem poderá ser? — sussurrava a multidão, presa de espanto.

Entrementes, o venerando estranho, com o cajado na mão, prosseguia em sua caminhada solitária pelo meio da rua. Ao se aproximar dos soldados em marcha, e enquanto o rolar do tambor lhe entrava em cheio nos ouvidos, o velho ergueu-se numa atitude mais ereta, enquanto a decrepitude pareceu tombar-lhe dos ombros, deixando-lhe um velhice indisfarçável, porém cheia de dignidade. Agora, marchava para a frente com um passo de guerreiro, mantendo o compasso da música militar. Assim avançou o ancião de um lado, e os soldados e os magistrados do outro, até que, não restando mais que umas vinte jardas entre eles, o ancião agarrou seu cajado pelo meio, e ergueu-o à sua frente como o bastão de comando de um líder.

— Alto! — exclamou ele.

Os olhos, o rosto e a atitude de comando; a solene mas beligerante vibração daquela voz, apta a dirigir uma hoste na batalha ou a erguer-se em oração a Deus, era irresistível. À palavra do ancião, que estendera o braço, o rolar do tambo imediatamente se calou e a linha em avanço estacou. Um trêmulo entusiasmo empolgou a multidão. Aquele vulto majestoso, que combinava o líder e o santo, mas de tal modo encanecido e quase invisível em roupagem tão antiga, só podia pertencer a algum velho paladino da causa justa, que o tambor do tirano tivesse invocado do túmulo. Elevou-se da multidão um grito de pavor de exultação, na expectativa da libertação da Nova Inglaterra.

O governador e os cavalheiros do seu grupo, percebendo que tinham sido levados a uma posição inesperada, avançaram depressa, como se impelissem seus cavalos resfolegantes e assustados para cima da velha aparição. Esta, porém, não recuou um só passo, mas passando o olhar severo pelo grupo, que quase o cercava totalmente, finalmente o fixou severamente em Sir Edmund Andros. Alguém poderia pensar que o ancião de preto era ali o próprio governador, e que o governador e seu Conselho, com soldados a respaldá-los, representantes que eram de todo o poder e a autoridade da coroa, não tinham outra alternativa senão obedecer-lhe.

— Que faz aqui este velho? — gritou Edward Randolph num tom de ferocidade. — Avante, Sir Edmund! Que os soldados avancem e dêem a esse velho caduco a mesma opção que damos a todos os seus compatriotas: sair do caminho ou ser pisado!

— Não, não, mostremos nosso respeito ao bom ancião — disse Bullivant, abrindo uma risada. — Não vê que ele é um dos dignatários dos cabeças-redondas que dormiu estes últimos trinta anos e nada sabe da mudança dos tempos? Pensa sem dúvida que nos poderá derrotar mediante uma proclamação em nome do Velho Noll!

— Está louco, velho? — perguntou Sir Edmund Andros num tom áspero e estridente. — Como se atreve a interromper a marcha do governador do rei Jaime?

— Já interrompi a marcha do próprio rei — respondeu o grisalho vulto com austera compostura. — Aqui estou, senhor governador, porque o clamor de um povo oprimido me perturbou no meu esconderijo; e implorando sofregamente esse favor ao Senhor, foi-me concedido tornar a aparecer na Terra pela boa causa de seus santos. E que dizeis de Jaime? Já não há um tirano papista sobre o trono da Inglaterra, e amanhã ao meio-dia o seu nome será uma senha nesta mesma rua onde fizestes dele uma palavra de terror. Para trás, vós, que fostes governador: para trás! Com esta noite se acaba o vosso poder — e, amanhã, a prisão! Para trás, antes que eu vos vaticine o cadafalso!

O povo ia-se aproximando cada vez mais, e bebia as palavras do seu paladino, que falava em acentos agora desusados, como alguém desabituado de conversar exceto com pessoas há muito tempo mortas. Mas a sua voz comovia-lhes a alma. E o povo enfrentou a soldadesca, não inteiramente desarmado, pronto a converter as pedras da rua em armas mortíferas. Sir Edmund Andros fitou o ancião; depois lançou o seu duro e cruel olhar sobre a multidão, e viu-a ardendo naquela ira lúrida, tão difícil de atear ou de apagar; em seguida tornou a fixar o olhar no vulto envelhecido, que, obscuro, se erguia no espaço aberto onde nem amigo nem inimigo ainda se precipitara. Quaisquer que fossem os seus pensamentos, nenhuma palavra pronunciou que os relevasse. Ou fosse porque o opressor ficasse temeroso diante do olhar do Paladino Grisalho, ou porque percebesse o perigo na atitude ameaçadora do povo, o certo é que recuou e ordenou a seus soldados que dessem início a uma lenta e cautelosa retirada. Antes do novo pôr-do-sol, o governador e todos os que tão orgulhosamente cavalgavam a seu lado foram feitos prisioneiros, e muito antes que o rei Jaime abdicasse, o nome do rei Guilherme foi proclamado por toda a Nova Inglaterra.

Mas onde estava o Paladino Grisalho? Disseram alguns que, ao se retirarem as tropas da King Street e ao se reunir o povo tumultuosamente em sua retaguarda, Bradstreet, o velho governador, foi visto abraçando um vulto ainda mais velho do que ele. Outros discretamente afirmavam que, enquanto se maravilhavam diante da veneranda grandeza do seu aspecto, o velho desaparecera de vista, confundindo-se lentamente com os matizes do crepúsculo, até deixar um lugar vazio no ponto onde estivera. Todos, porém, concordavam em que o vulto encanecido derretera-se. Os homens daquela geração ficaram, dia e noite, esperando pelo seu retorno, porém nunca mais o viram, nem souberam quando se deu o seu enterro, nem onde o seu túmulo ficava.

E quem era o Paladino Grisalho? Talvez o seu nome pudesse ser encontrado nos registros daquele austero tribunal de justiça que passou uma sentença demasiado forte para a época, mas gloriosa por todos os tempos, pela humilhação infligida a um monarca e o alto exemplo dado ao súdito. Ouvi dizer que, quando quer que os puritanos precisem mostrar o espírito de seus ancestrais, o ancião torna a aparecer. Após oitenta anos, ele tornou a palmilhar a King Street. Cinco anos depois, na penumbra de uma madrugada de abril, surgiu no relvado, diante da casa de oração, em Lexington, onde agora o obelisco de granito, com uma ardósia incrustada, comemora os que primeiro tombaram pela Revolução. E quando nossos pais lutavam nos parapeitos de Bunker Hill, a noite toda o velho guerreiro ali fez a sua ronda. Que muito tempo se escoe, antes que ele torne a voltar! A sua hora é uma hora de treva, adversidade e perigo. Mas se a tirania doméstica oprimir-nos, ou o pé do invasor poluir nosso solo, possa ainda o Paladino Grisalho aparecer, pois ele encarna o espírito hereditário da Nova Inglaterra; e sua marcha sombria, na véspera do perigo, será o voto perpétuo de que os filhos da Nova Inglaterra saberão vingar os seus ancestrais.
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Fonte:
Os melhores contos de Nathaniel Hawthorne. Seleção e tradução de Olívia Krähenbühl. São Paulo: Círculo do Livro SA. Disponível em
http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/mestr112.htm

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