domingo, 18 de maio de 2008

Gabriel Perissé (Mais da metade dos professores não têm o hábito de ler)

Gabriel Perissé, 42 anos, é professor universitário, formou-se em Letras pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 1985, ano em que foi morar em São Paulo, onde obteve o grau de mestre em Literatura Brasileira (1989) pela USP, estudando a obra do poeta Carlos Nejar. Escritor e palestrante, doutor em Filosofia da Educação pela USP, possui vários livros publicados. Conforme informações do site que mantém na internet (www.perisse.com.br), desde 1983 ministra palestras e cursos em escolas, faculdades, empresas, ONGs, livrarias, bibliotecas e editoras, sobre temas relacionados à arte de ler, pensar, escrever e ensinar.

Perissé defende a leitura como terapia e afirma na entrevista que as escolas e os professores deixam muito a desejar à leitura, pois "mais da metade dos professores não têm o hábito de leitura", destaca. Assim, ninguém passa aos outros o que não tem.

Folha da Região - Vivemos numa sociedade de consumo, utilitarista, tudo precisa ter uma serventia. Como fica a arte, e a literatura sendo uma, neste contexto?

Gabriel Perissé - O artista (e o escritor em particular) sente-se obrigado a transformar sua obra numa "coisa" a ser consumida. A editora precisa das vendas. O escritor precisar criar um "produto" assimilável, útil. No entanto, nesse contexto aparentemente cruel, há um detalhe a ser destacado. Cada um de nós, seres humanos, precisamos consumir... mas também precisando consumar... Isto é, precisamos levar nossos desejos à consumação, às suas últimas conseqüências. A literatura cumpre um papel que nenhum bem de consumo pode cumprir. E chega uma hora em que só comprando um livro de filosofia, de contos, de reflexão histórica é que a pessoa consegue satisfazer essa sua necessidade mais profunda.

Folha da Região - Então, o ser humano não vive sem a arte?

Perissé - Não vive. Baudelaire dizia que podia passar oito dias sem comer, mas não podia passar um dia sem poesia. Sem arte, que é o homem, mais do que um animal saudável, mas incapaz de transcender sua situação?

Folha da Região - Sei que você dá curso para formação de escritor. O estado brasileiro com literatura mais forte, que é o Rio Grande do Sul, também se preocupa com a formação do escritor, há escolas por lá. Entre a tribo dos escritores em Araçatuba, há quem despreze essa iniciativa, dizendo que isso não se ensina, é vocação, o talento é inato. Como se resolve isso?

Perissé - Todos temos talentos escondidos. Todos temos algum talento para escrever, para expressar-nos. Mas são talentos seminais. Ou seja, estão em forma de semente. Precisam ser cultivados. Nós nos subutilizamos. Morreremos sem explorar 90% dos nossos talentos... Muitos de nós poderíamos escrever melhor do que autores que se dizem escritores? Acredito nisso.

Folha da Região - Há muito, no Brasil, se o escritor não estiver no eixo São Paulo-Rio, é classificado como regionalista. Gaúchos e mineiros tentam romper o cerco. Imagine como se sente o escritor do interiorzão mesmo, como os de Araçatuba, no oeste do estado. Como fica a literatura local no contexto atual da globalização?

Perissé - Pensemos no neologismo "glocalização", reunindo as palavras globalização e localização. Glocalização é rejeitar a idéia de homogeneização cultural, resistir ao lugar-comum de um caminho único. Glocalização é fazer questão de falar ao nosso modo o nosso próprio idioma. Glocalização é localizar o global mas jamais deslocalizar o que temos de original. Glocalização é saber localizar o universal e o nacional no regional. Em Araçatuba haverá originalidades que só em Araçatuba existem, e que cabe ao escritor local traduzir para o universal!

Folha da Região - Por que no Brasil é difícil o escritor viver de seu ofício?

Perissé - Não penso que seja somente no Brasil e somente em nosso tempo. Sempre foi difícil viver exclusivamente do ofício de escrever, entendendo escrever no sentido estrito, de escrever poesia, por exemplo. Os escritores sempre tiveram de fazer outros trabalhos para sobreviver: escrever em jornais, traduzir, dar aulas, trabalhar na propaganda, ou exercer funções burocráticas. Fernando Pessoa, Kafka, Drummond, Mario de Andrade...

Folha da Região - Você é um sacerdote da leitura, prega a sua necessidade nos seus livros. Sempre surge a idéia de o governo incluir o livro na cesta básica. Seria uma solução?

Perissé - O começo de uma solução. Ler alimenta!

Folha da Região - O teórico francês Jean Focambert, discípulo de Paulo Freire, afirma que não adianta dar livro para quem nunca tem o costume de buscar nele a solução de seus problemas. Você como defensor da leitura e amante do livro concorda com ele?

Perissé - Gosto da idéia da "livroterapia". Embora eu não tenha a desvairada ambição de sugerir para cada pessoa uma possível obra literária salvadora, sou movido pela mesma crença que anima hoje psiquiatras, médicos e conselheiros leigos ou espirituais a recomendarem determinadas leituras a pessoas com problemas familiares, dependentes de drogas, adolescentes em conflito, presidiários, pessoas que ficaram inválidas depois de um acidente, pessoas que sobreviveram a algum tipo de violência, pessoas que perderam um ente querido... Enfim, trata-se de uma prática que, associada a outros meios, permite a essas "vítimas" encontrarem forças para superar uma situação problemática, e o pior de todos os riscos: o vitimismo.

Folha da Região - Durante a campanha presidencial de 2000, o presidente Lula da Silva foi apedrejado por seus opositores por não ter diploma universitário. Você, pelo que parece, não vê o saber sem o livro. A sabedoria só vem dos livros mesmo?

Perissé - A sabedoria está na fala do povo, nas obras de arte em geral, na conduta de pessoas sábias, e está nos livros. Os livros têm a vantagem de compendiar essa sabedoria. Mas também precisamos de sabedoria para escolher os livros realmente sábios...

Folha da Região - Como anda a escola na questão da leitura? Ajuda ou atrapalha?

Perissé - A escola está em dívida com a leitura. E os professores estamos em dívida também! Muitos professores, mais da metade dos docentes em nosso país, não possuem o hábito de ler. Ora, "nemo dat quod non habet", ninguém dá aquilo que não tem. Como poderemos criar leitores criativos se não estivermos cativados pela leitura?

Folha da Região - O livro desaparecerá com a evolução da informática?

Perissé - Não. Como a pintura não desapareceu com a fotografia. Como o cinema não desapareceu com a TV. O livro cai e não quebra. Não precisa de energia elétrica. Podemos levá-lo para onde formos com facilidade. O livro é uma invenção tecnológica e tanto!

Folha da Região - Você virá a Araçatuba a convite da Academia Araçatubense de Letras, que é bastante inclusiva, bem diferente das outras esparramadas pelo Brasil, que são bastane elitistas, incluindo a ABL (Academia Brasileira de Letras). O que você acha dessas organizações?

Perissé - Os escritores devem se organizar. O único receio, sempre, é que deixemos de nos dedicar ao que faz de uma academia de letras uma academia de letras: as letras!

Folha da Região - Araçatuba tem o concurso nacional de contos chamado "Cidade de Araçatuba". Em 2004, houve a participação de mais de 500 contistas de todo o Brasil. A Academia Araçatubense de Letras pretende organizar como culminância do concurso, para entrega dos prêmios, o Congresso Nacional do Conto em 2005, como aconteceu com a poesia em Bento Gonçalves. Concursos, congressos... Esses eventos são válidos?

Perissé - São válidos, sempre. Para mexer com a água parada. Mas lembrando que os concursos não podem premiar a todos... Isto é, ninguém deve desistir de escrever se não consegue uma boa classificação num concurso. Há outros caminhos para o escritor inédito, para o jovem escritor. Há a internet. Há as oficinas literárias. Há os saraus. Há a produção independente.

Folha da Região - A sua palestra será sobre a criação literária na sexta-feira. Que você tem a dizer àquele jovem que descobriu em si a vontade de escrever, a escrita é a linguagem por onde se manifestará a sua subjetividade?

Perissé - Nós somos aquilo que escrevemos, e escrevemos aquilo que somos. Escrever, portanto, é um ato livre, ontológico, carregado de conotações existenciais!

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/

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