quinta-feira, 12 de junho de 2008

Derotheu Gonçalves da Silva (Padre Zico)

I.

Era dia de festa em Bororó. Festa grande. Depois de quatro longos anos, chegava o novo padre. Pouco se sabia a seu respeito. O bispo fora breve na notícia. Era o seu jeito de lidar com Bororó. Breve nas notícias e demorado nas decisões. Aquela sempre fora uma paróquia problemática. Sua primeira e última visita ao local foi marcante. Ocorrera havia mais de dez anos mas continuava inesquecível. Por mais que tentasse se livrar das impressões daquele dia, não conseguia. Todo o povo de branco na estação ferroviária. No lugar das habituais bandinhas municipais, o inédito som dos atabaques. Em vez de hinos religiosos ou cívicos, apenas os famosos “pontos de umbanda”. E regidos por uma senhora de pele escura e idade muito avançada. Lá atrás, muito atrás, o tímido padre Bento, com seus oitenta e tantos anos, ao lado do prefeito.. Batina batida pelo uso diário e noturno, sorriso infantil – talvez até meio divertido. Podia jurar que até ele estava cantarolando “...chegou o Pai Ubá, Nosso Pai Ubá chegou...”. Pai Ubá ! Tanto na Itália, como burocrata no Vaticano, quanto nesta terra abençoada, primeiro como sacerdote de uma capital e agora como bispo daquele fim de mundo, já recebera vários títulos, honoríficos ou não. Mas “Pai Ubá” nunca havia imaginado. Com aquela inédita recepção, procurou rapidamente apressar a volta para o refúgio de seu confortável palácio episcopal. Mas os horários do trem, apenas a cada dois dias, estavam acima de seu poder temporal. E foram dois longos, longos dias... Talvez por isso, com a morte, havia mais de três anos, de padre Bento, apenas agora decidira pela nomeação de padre Zico para aquele recanto, onde o tratamento de Sua Excelência fora reduzido a um simples “PAI UBÁ”.
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II.
Quando o trem chegou conduzindo padre Zico, a cidade parou de novo. A curiosidade era geral. Quem o grande Pai Ubá teria enviado para substituir o querido padre Bento ?

Os atabaques, como sempre, se puseram a trabalhar. Mãe Lena logo fez os últimos reparos na comitiva de recepção. Essa parte também era com ela. Na frente as crianças, depois os jovens e por último a ala dos velhos. Todos de branco e, bem ensaiados, mostrando seus cânticos antigos, herdados dos antepassados escravos.

Padre Zico era jovem. E inexperiente. Recém-saído do seminário, aquela seria sua primeira paróquia. No vagão, ao lado de poucos passageiros, procurava relembrar todos os rituais de etiqueta e convívio social que aprendera. Cumprimentar primeiro o prefeito, os vereadores, depois as damas. Manter sempre um sorriso de poucos dentes e semblante sereno e de poder. Sabia pouco de seu novo rebanho. O bispo fora muito vago nas informações. Cidade pequena, antiga colônia de escravos libertos. Enfim, almas boas. Dissera ainda alguma coisa sobre um pequeno sincretismo religioso que imperava no local. Quando quis saber mais a respeito, não obteve resposta. Ficou com a impressão de que Sua Excelência demonstrara certa pressa, talvez até mesmo um pequeno nervosismo. Atribuiu à sua própria inexperiência de jovem, demonstrando insegurança ante a primeira paróquia. Enfim, achou normal. Enquanto relembrava esse rápido encontro, pareceu-lhe ouvir o som intermitente de atabaques. Talvez algum músico da banda municipal, um pouco mais empolgado, afinando seu instrumento de percussão. Olhou pela janela enquanto o trem lentamente parava e viu... foi quando percebeu que fora nomeado não para uma paróquia, mas para um grande centro de umbanda.
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III.
A manhã fora longa. Primeiro o discurso de Mãe Lena. É bem verdade que ele não acompanhou o significado de palavras como “zurungudun e zurungunde”, mas pareceram-lhe palavras elogiosas à sua pessoa. Também não entendeu muito bem tanta referência ao grande “Pai Ubá”. Com certeza, reminiscências de alguma distante língua tribal. Uma coisa, contudo, ficou clara: Mãe Lena era a autoridade maior na cidade. Depois dela falou o prefeito, que lhe pareceu estar levemente embriagado. Ficar em pé sob o sol escaldante foi a prova mais difícil. Quando finalmente chegou sua vez, padre Zico falou pouco para uma platéia que reagia conforme ditava o corpo volumoso de Mãe Lena. Quando ela começou com alguns bocejos, sabiamente percebeu que era hora de interromper sua fala. No início da tarde, finalmente conseguiu ficar só para conhecer a nova morada. Igrejinha antiga, construída em pedras, com um pequeno quarto e cozinha num anexo. Quando entrou ali no final da manhã, conduzido por aquela improvisada procissão ainda ao ritmo dos atabaques, não conseguiu ver muita coisa. Agora fazia o reconhecimento. Nos fundos minúsculo quintal com uma horta bem cuidada. O quarto, com pequeno guarda-roupa, não era muito diferente de sua antiga cela no seminário. Foi quando desfazia a única mala que o viu pela primeira vez. Não precisou muito para sentir que ele era o dono do quarto. Com miados firmes, parecia acariciar as paredes, roçando aquele bolo de pêlos nelas. Imaginando tratar-se de um gato comum, enxotou-o batendo com os pés no chão. Em vão. Miando com certo desdém, de um salto empoleirou-se na antiga escrivaninha. Era seu velho dilema, sentia que os animais gostavam dele, embora o sentimento não fosse recíproco. Aliás, sempre se perguntava por que virara franciscano, já que nunca simpatizara muito com os amigos prediletos de São Francisco. Quando foi inspecionar melhor o interior da igreja, fez de conta que não o viu seguir na sua frente. O altar estava em perfeitas condições, toda a indumentária sagrada nos devidos lugares. Enquanto examinava uma estola corroída pelo tempo, foi surpreendido por um sonoro “- ‘tarde’, seu padre”.
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IV.
Surpreso, viu aquela figura retornando de um sono profundo no último banco. Barba de cinco anos e chinelão nos pés, idade de ancião, que logo lhe trouxeram à mente a figura de Antônio Conselheiro, por sinal filho daquela região. O gato logo pulou no mesmo banco, demonstrando tratar-se de amizade antiga.

- O povo daqui estava rezando muito pela sua chegada.
- Sei, sei – mas é melhor que nos apresentemos primeiro. Sou o padre Zico e estes bancos parece-me que foram feitos para os fiéis rezarem.
- Ah ! seu padre. Não leve a mal não, é que eu moro aqui. Fiquei cuidando da casa de Deus depois da partida do padre Bento. Mas pode ficar tranqüilo que nunca dormi naquela cama lá dentro. Faz mal para a minha coluna. Colchão muito macio. Sabe como são estas coisas. Prefiro dormir por aqui mesmo.
- Disse que mora aqui !? Na igreja ?
- É. O padre Bento deixava e Deus também nunca reclamou.
- Respeito com as coisas sagradas, por favor.
- Não falo por mal, seu padre, mas dizem que é a casa Dele, não é ?
- Tá bom, tá bom... Mas vamos dizer que agora Ele mudou de idéia. Não quer mais você nem o gato morando por aqui.
- Vai dar não, seu padre. Eu o Mialzão aqui somos do tempo do padre...
- Já sei, já sei. Do bondoso padre Bento.... Mas agora precisamos reorganizar as coisas. Além de ser alérgico a gatos, não gostaria de ter também o senhor morando em tempo integral em minha igreja.
- Sua não, seu padre. De Deus...
- Pois é. Mesmo assim, aqui é lugar para oração e não moradia.
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V.
Mialzão e Profeta – este era o nome do morador clandestino – eram daqueles que não tinham muita paciência para discutir sobre as propriedades de Deus na terra. Antes de terminar a conversa, um voltou a dormir, agora acompanhado pelo outro, no mesmo banco. Padre Zico, vendo que não tinha jeito, ignorou suas presenças e passou parte da tarde conferindo cada detalhe da bela igrejinha. Chamou sua atenção o fato de estar tudo estranhamente muito limpo e arrumado. Notou que até os canteiros da horta estavam bem cuidados, com várias hortaliças plantadas. Exausto, tinha decidido que sua primeira missa ali seria no dia seguinte, por ser domingo. Um forte cheiro de comida, vindo da pequena cozinha, lembrou-lhe que ainda não tinha pensado a respeito de sua logística doméstica. Qual foi sua surpresa quando deparou com o “morador” trajando enorme avental, com várias panelas já no fogão.

- Vejo que o senhor também se apossou de minha cozinha.
- Sua não, padre. De Deus. E estou cozinhando para o Mialzão. Às vezes ele permite que eu também coma com ele. Talvez hoje ele abra esta exceção para nós dois... vamos esperar para ver o seu humor.
- Sei. A propósito, quem vem cuidando tão bem das coisas por aqui ? Tudo tão limpo, tão organizado. E também tenho curiosidade em saber sobre a despensa, de onde vêm os mantimentos.
- Quem cuida das coisas de Deus por aqui sou eu, padre. E os gêneros alimentícios para as refeições de Mialzão vêm da prefeitura e da nossa pequena horta. Por falar nisso, amanhã preciso visitar o prefeito de novo. O azeite e toucinho de que o Mialzão tanto gosta estão pelo final.
- É, agora ele vai ter um convidado a mais diariamente, não é verdade ?
- Não sei, padre. Como disse, vai depender dele. Com essa conversa da tarde sobre isto ser de Deus, aquilo dos fiéis, aquilo outro do padre... Não sei não. Acho que ele deve ter ficado meio ofendido.
- Por falar nisso, não estou vendo o felpudo folgado por aqui. Será que ele levou minha recomendação a sério e já se mudou ?
- Fique tranqüilo, padre. Ele só aparece quando a mesa já está servida. É impaciente. Não gosta de esperar no pé do fogão como os outros gatos.
- Tá, tá. Já vi que minha alergia vai ter uma séria recaída para o futuro. Mas, apenas por curiosidade, qual é o cardápio do... como é mesmo o nome dele?
- Mialzão.
- É, qual o cardápio do Mialzão para hoje ?
- Rosbife, acompanhado de uma salada com legumes frescos e algumas gotinhas de vinho.
- Bom gourmet esse Mialzão. Vinho também via contrabando da prefeitura ?
- Não, padre. Vinho de Deus. Daquele bom mesmo. Ainda do estoque do falecido padre Bento. Mas, como o Mialzão anda bebendo um pouquinho a mais ultimamente, acho que nosso estoque vai durar pouco... Ainda mais agora, com um convidado a mais diariamente.

Quando o último talher foi posto na mesa, Mialzão materializou-se janela adentro. Rosnou para Profeta, miou com indiferença para o padre e foi direto para sua tigela de suculento rosbife, ao lado do fogão. Padre Zico não se conteve e começou a rir sozinho daqueles dois personagens. Verdade seja dita, o cozinheiro do gato conhecia bem de culinária.
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VI.
Enquanto jantavam, Mialzão, já saciado com duas pequenas tigelas cheias de rosbife, fazia a digestão dormindo embaixo da mesa. Padre Zico começou a observar então que Profeta tinha uma inquestionável sofisticação. Sabia lidar com destreza com os talheres, apanhava o guardanapo pela ponta correta, e – quando não estava satirizando – era eloqüente e com uma erudição que procurava ocultar. Mas não falou nada de sua vida pregressa. Apenas morava ali, era também o sacristão e responsável pelo convites para as missas. “Convite para as missas ?”. “É, padre, aqui é assim. As pessoas só vêm à igreja quando são convidadas. Têm outra fé, entende ?” “Não, e nunca tinha visto isso ! Quer dizer que amanhã cedo eles não virão à missa dominical ?”. “Só se forem convidados”. E foi o que aconteceu. Ou melhor, não aconteceu. A primeira missa de padre Zico ali foi celebrada apenas com a presença de Profeta, que atuou como sacristão. Mialzão postou-se em seu banco predileto e ali dormiu para não incomodar ninguém... nem ser incomodado. Mas outro fato intrigou o padre. A forma como Profeta atuava como sacristão. Era como se fosse alguém escondendo um grande treinamento com a prática litúrgica geral. Sabia cada movimento da ritualística. Vez ou outra parecia captar até as mínimas falhas cometidas pela inexperiência do celebrante. O problema da freqüência à missa logo se resolveu. Profeta encarregou-se de ser o embaixador junto a Mãe Lena, dizendo que aquele convite era permanente. Missas três vezes por semana e domingo cedo e à noite. Uma visita ao Terreiro foi cobrada de padre Zico, que ele sempre negou ter feito, mas que Profeta com sua sabedoria fez chegar ao conhecimento do mundo profano como tendo ocorrido. E os anos foram passando...
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VII.
Mialzão não abria mão de seus direitos. Não houve vassoura forte o suficiente para expulsá-lo dos pés da cama. Padre Zico, quando viu que não tinha jeito, cedeu. Não era como demonstração de amizade felina não. Apenas uma questão de direito adquirido. Sempre dormira ali, desde os tempos do padre Bento e não era agora que iria sair. Simples assim. E acabou sendo bom, pois com isso padre Zico descobriu que nunca tivera alergia a pêlos coisa nenhuma. Aliás, apegou-se tanto a Mialzão que, contava Profeta, chegava a sair pelas proximidades da igreja, à sua procura, nas noites em que ele não aparecia para o jantar. Profeta, embora muito a contragosto, acabou cedendo aos apelos do padre e passou a dormir num pequeno retirado, construído ao lado da cozinha. Mas nunca falava a seu respeito. Sempre respondia a essas perguntas com evasivas. Até que um dia foi surpreendido lendo um livro em latim enquanto cozinhava. Dizem que então, em confissão, afirmou se tratar de um bispo que encabeçara um cisma na igreja católica da França e, proscrito de sua pátria e do clero, exilara-se naquele local isolado de nosso país, onde fora recebido fraternalmente pelo bondoso padre Bento. Depois dessa revelação, Profeta viveu pouco tempo. Tempos depois, quando foi transferido de Bororó, padre Zico entrou no trem levando sua única mala e um gato muito velho embaixo do braço. Mialzão, apesar de desconfortável na coleira de pano improvisada por Mãe Lena, parecia feliz por não ser abandonado pelo amigo que cativara. E naquele dia os atabaques voltaram a tocar...

Fonte:
Academia de Letras de Maringá
http://www.afacci.com.br/

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