terça-feira, 10 de junho de 2008

Milton Hatoum (Machado para o Jovem Leitor)

O texto inaugural desta coluna na EntreLivros intitula-se “A parasita azul e um professor cassado”. Nessa crônica, escrevi: “Dois acasos foram decisivos na minha juventude: o primeiro me conduziu à obra de Machado de Assis; o segundo, a uma biblioteca vasta e sombria, escondida numa sala subterrânea”.

Mais de dois anos depois, volto aos contos de Machado para dialogar com os professores.

Uma das questões sobre o ensino de literatura brasileira para jovens estudantes (da primeira à terceira série) diz respeito aos critérios da seleção bibliográfica. Infelizmente, prevalece a idéia de que os alunos não têm condições de ler textos complexos. Um texto complexo não é necessariamente pesado, chato, algo que se lê com extrema dificuldade. Para um jovem do nosso tempo, não deve ser fácil nem prazeroso ler um romance de Coelho Neto ou A bagaceira, de José Américo de Almeida. Esses, sim, são textos pesados, que carregam na ênfase e no vocabulário precioso. Confesso que, na minha juventude, penei para ler esses autores. E quando li dois romances extraordinários de prosadores nordestinos – O quinze, de Rachel de Queiroz, e Vidas secas, de Graciliano Ramos – o romance de José Américo tornou-se, por contraste, ainda mais enfadonho.

Mesmo Os sertões e O Ateneu – livros fundamentais da nossa literatura – são difíceis de ser assimilados por um jovem do ensino médio.

Passei por essa provação como se fosse uma penitência. De fato, minha leitura de trechos da obra-prima de Euclides da Cunha foi conseqüência de uma punição coletiva, um castigo imposto por um professor que não descobriu o culpado de uma infração grave, cometida no colégio onde eu estudava. Nessa mesma época, ganhei as obras completas de Machado de Assis e li o conto “A parasita azul”. Depois li os outros contos do volume Histórias da meia-noite. Gostava desse título, que me remetia a histórias de suspense, horror e mistério. Havia algum mistério e suspense nos contos, mas não da maneira que eu esperava. Lembro que os li com prazer, e me perguntei por que um dos professores de português nos obrigava a ler Coelho Neto e José de Alencar e não Machado de Assis. Por que Iracema e não Dom Casmurro? E, nesse caso, por que não ler ambos?

II
Havia – como ainda há – imposições curriculares, mas penso que isso é um equívoco, pois o leitor jovem e inexperiente pode odiar para sempre a literatura brasileira, pode pensar que só existem textos ásperos, cuja leitura é sinônimo de suplício. É inadmissível que tantos jovens desperdicem a oportunidade de ler “A causa secreta”, “O enfermeiro”, “Missa do galo”, “O espelho”, “Uns braços”, “Um homem célebre”, “Terpsícore”, “A cartomante”, “Evolução” e outros contos do Bruxo, um verdadeiro mestre da narrativa breve, que se situa no mesmo patamar de excelência de seus contemporâneos europeus.

É muito provável que esses contos sejam lidos e comentados sem enfado. Porque uma leitura enfadonha e arrastada é, para o leitor jovem – e talvez para todo leitor –, um ato de flagelação do espírito. Claro que há textos intricados e nada tediosos, que são imprescindíveis para quem gosta de literatura. Quem não se deleita com a leitura dos romances Grande sertão: veredas e O século das luzes? São livros para quem já passou por uma experiência de leitura e não se sente inibido diante de obras cuja linguagem enfatiza um notável trabalho de estilização. Mas um iniciante certamente encontrará dificuldade para ler esses romances.

Nos contos de Machado ocorre algo diferente. Com um estilo muito elaborado, mas pouco ou quase nada rebuscado, o narrador machadiano explora em poucas páginas a complexidade das relações humanas. Sua linguagem é densa sem ser retórica, e os contos são exemplos perfeitos de complexidade concentrada num texto conciso e exato.

Um exemplo é “A causa secreta”, publicado em 1885 na Gazeta de Notícias e incluído em Várias histórias (1895). Eis aí uma aula sobre o conto enquanto gênero literário. Logo no primeiro parágrafo, depois de apresentar as três principais personagens numa cena que poderia ser filmada, o narrador escreve: “Tempo é de contar essa história sem rebuço”. Ou seja, é tempo de ir diretamente ao miolo da questão. E a questão é, na verdade, um feixe de questões machadianas: o adultério, as relações sociais, a violência, a loucura, o amor, a dor moral. Em menos de 15 páginas, o narrador constrói uma das personagens mais terríveis da nossa literatura: um homem (Fortunato) que se ocupava “nas horas vagas em envenenar e rasgar gatos e cães”.

Fortunato revela o lado mais obscuro e violento do ser humano. Já é clássica a cena em que ele mutila e queima um rato “com um sorriso único” no rosto, “uma serenidade radiosa da fisionomia” ou “um vasto prazer, quieto e profundo”. No fim, a dor física dos animais é substituída pela dor moral de Garcia, quando este tentar beijar pela segunda vez Maria Luísa, já morta. Fortunato, o esposo e agora viúvo, “saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral, que foi longa, muito longa, deliciosamente longa”.

III
Os professores que comentam esse conto em sala de aula sabem que os estudantes se interessam pelo texto. A leitura no cabresto é inconseqüente, pois o maior estímulo para um jovem reside no prazer da leitura. Há, sem dúvida, outros grandes autores cuja obra é estimulante. Os contos de Insônia e Laços de família são apenas dois exemplos, entre muitos da literatura brasileira. Mas os de Machado não podem ser esquecidos, porque estão no centro da nossa modernidade e irradiam uma das visões mais críticas e inteligentes sobre o ser humano e a sociedade brasileira.
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Sobre o Autor
Milton Hatoum é escritor, autor de Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte, com o qual conquistou os prêmios Jabuti, como o livro do ano na categoria ficção, e Portugal Telecom, em primeiro lugar
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Fonte:
Revista Entrelivros - edição 30 - Outubro 2007
http://www2.uol.com.br/entrelivros/

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