Na literatura brasileira, não são numerosos os prosadores que conquistaram um grande público leitor. Desse punhado de best-sellers, nenhum foi tão popular como Jorge Amado. E isso se deve a vários aspectos. O escritor baiano não se preocupou em criar uma linguagem inovadora, nem mesmo em estruturar ou organizar a narrativa com ousadia, como fez Osman Lins em Avalovara, Nove, Novena e A rainha dos cárceres da Grécia. No entanto, se a obra de Amado é carente de forma e de rigor na linguagem, é rica no universo ficcional. Em seus primeiros romances, ele se aproximou de um regionalismo empenhado em registrar a vida da gente pobre da Bahia urbana e rural.
A partir da década de 1950, sua obra dá uma guinada: a denúncia social passa a ser vista por outro ângulo e a ser trabalhada por outro viés, subtraindo ou atenuando a intenção ideológica para encontrar no exotismo, no humor, na sensualidade e no autoritarismo da sociedade baiana as forças de sua nova ficção. Em romances como Gabriela, cravo e canela e Dona Flor e seus dois maridos, o lugar dos personagens sofridos de Capitães de areia e dos pobres-diabos que se amontoam no cortiço de Suor torna-se mais restrito. O novo romance de Amado é povoado de prostitutas, rufiões, malandros, vagabundos, funcionários públicos, poetas, jogadores, marinheiros, cafetões, coronéis e proprietários poderosos e inescrupulosos.
A facilidade com que Amado escrevia, seu jeito bonachão, sua alegre e despretensiosa obsessão de apenas narrar boas histórias, tudo isso gerou comentários implicantes e irritadiços de alguns críticos e até mesmo escritores. Mas nada disso diminuiu seu público leitor, pois em todos os continentes a obra de Amado ainda é a mais lida, conhecida e traduzida da literatura brasileira. Quanto aos críticos e escritores, não se deve omitir os comentários relevantes e certeiros de Graciliano Ramos, Antonio Candido, Alfredo Bosi, José Paulo Paes, Ferreira Gullar e Vinicius de Moraes, entre outros. Isso sem contar a produção de críticos mais jovens, que têm publicado dezenas de teses e ensaios sobre a obra de Amado. Sem dúvida, algumas restrições são legítimas. Por exemplo: o narrador idealiza com freqüência os pobres e humildes da Bahia; um exotismo exagerado pode transmitir a muitos leitores um sentimento de exaltação dos valores e da cultura africana e baiana, que, afinal, fazem parte da cultura brasileira. Uma mudança de tom e dicção separa o narrador culto das personagens populares, e essa disparidade pode ser um problema. Apesar das falhas, a obra de Jorge Amado se impôs. Ele soube traduzir sua experiência cultural e lingüís tica numa prosa que parece não ter excluído nenhum estrato social da imensa pirâmide humana presente em seus romances. Nesse sentido, ele lembra um romancista prolífico da Europa do século XIX e anterior a Flaubert. Ou seja, um prosador despreocupado em erigir um monumento estético, mas com a vantagem de possuir a verve e a imaginação de um narrador oral do Norte da África.
Aos que nunca leram um livro de Amado, sugiro começar por uma novela: A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. Nesse breve relato, além de ter encontrado o tom e o tamanho apropriados ao gênero, não há o desenho irregular de alguns romances excessivamente longos. A novela, mais próxima da concisão e da intensidade do conto, evita digressões, descrições e diálogos excessivos. Também nesse aspecto, A morte e a morte de Quincas Berro Dágua é uma narrativa bem realizada. Como diz o título, a novela refere-se a duas mortes do mesmo personagem. Há ainda uma terceira, que é a morte moral da família depois que o protagonista abandona o lar. Antes de ser o “cachaceiro-mor de Salvador”, o “rei dos vagabundos da Bahia”, jogador, marinheiro e farrista, Quincas foi Joaquim Soares da Cunha: o pacato e correto pai de família e funcionário público.
Morto, os familiares tentam recuperar a dignidade do outro, quando vivo. A novela trabalha com esses dois registros: a vida exemplar e a vida vagabunda. A primeira refere-se ao tedioso cotidiano de uma família de classe média de Salvador: a mulher rabugenta de Joaquim, sua filha não menos ranzinza, seu genro e seu irmão. Dois personagens na mesma pessoa, e dois passados de vidas opostas, no mesmo morto. Mas trata-se realmente de um morto? Durante o velório no quartinho de um cortiço na ladeira do Taboão, o defunto dirige a sua filha “um sorriso cínico, imoral, de quem se divertia”; xinga a tia Marocas com um apelido nada edificante e faz com o polegar um gesto de deboche. Quando os amigos chegam ao velório, não acreditam que Quincas está morto.
É notável o diálogo entre o “defunto” e os amigos. E não menos notável a andança dos vivos com o morto pelas ruas de Salvador até o cais, onde Quincas, velho marinheiro, embarca num saveiro para uma viagem ao fundo do mar. Durante uma tempestade, Quincas Berro Dágua se deixa envolver por sua própria vontade “num lençol de ondas e espuma”. Essa reviravolta do destino – o morto que se revela vivo e escolhe a hora e a maneira de morrer – é típica da novela enquanto gênero.
Mas algo nos diz que ele realmente está morto. Essa ambigüidade, que a narrativa explora o tempo todo, é um dos grandes feitos da novela. A farsa que Joaquim, ainda vivo, arma para a família, arma de novo enquanto defunto. Para o leitor, esse jeito farsante de morrer permanece em suspenso, como a reiteração de uma dúvida anunciada na abertura dessa novela de fato extraordinária, como poucas na literatura brasileira.
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Sobre o autor:
Milton Hatoum é escritor, autor de Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte, com o qual conquistou os prêmios Jabuti, como o livro do ano na categoria ficção, e Portugal Telecom, em primeiro lugar
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Fonte:
Entrelivros. edição 16. agosto 2006. Duetto Editorial.
http://www2.uol.com.br/entrelivros/artigos/
A partir da década de 1950, sua obra dá uma guinada: a denúncia social passa a ser vista por outro ângulo e a ser trabalhada por outro viés, subtraindo ou atenuando a intenção ideológica para encontrar no exotismo, no humor, na sensualidade e no autoritarismo da sociedade baiana as forças de sua nova ficção. Em romances como Gabriela, cravo e canela e Dona Flor e seus dois maridos, o lugar dos personagens sofridos de Capitães de areia e dos pobres-diabos que se amontoam no cortiço de Suor torna-se mais restrito. O novo romance de Amado é povoado de prostitutas, rufiões, malandros, vagabundos, funcionários públicos, poetas, jogadores, marinheiros, cafetões, coronéis e proprietários poderosos e inescrupulosos.
A facilidade com que Amado escrevia, seu jeito bonachão, sua alegre e despretensiosa obsessão de apenas narrar boas histórias, tudo isso gerou comentários implicantes e irritadiços de alguns críticos e até mesmo escritores. Mas nada disso diminuiu seu público leitor, pois em todos os continentes a obra de Amado ainda é a mais lida, conhecida e traduzida da literatura brasileira. Quanto aos críticos e escritores, não se deve omitir os comentários relevantes e certeiros de Graciliano Ramos, Antonio Candido, Alfredo Bosi, José Paulo Paes, Ferreira Gullar e Vinicius de Moraes, entre outros. Isso sem contar a produção de críticos mais jovens, que têm publicado dezenas de teses e ensaios sobre a obra de Amado. Sem dúvida, algumas restrições são legítimas. Por exemplo: o narrador idealiza com freqüência os pobres e humildes da Bahia; um exotismo exagerado pode transmitir a muitos leitores um sentimento de exaltação dos valores e da cultura africana e baiana, que, afinal, fazem parte da cultura brasileira. Uma mudança de tom e dicção separa o narrador culto das personagens populares, e essa disparidade pode ser um problema. Apesar das falhas, a obra de Jorge Amado se impôs. Ele soube traduzir sua experiência cultural e lingüís tica numa prosa que parece não ter excluído nenhum estrato social da imensa pirâmide humana presente em seus romances. Nesse sentido, ele lembra um romancista prolífico da Europa do século XIX e anterior a Flaubert. Ou seja, um prosador despreocupado em erigir um monumento estético, mas com a vantagem de possuir a verve e a imaginação de um narrador oral do Norte da África.
Aos que nunca leram um livro de Amado, sugiro começar por uma novela: A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. Nesse breve relato, além de ter encontrado o tom e o tamanho apropriados ao gênero, não há o desenho irregular de alguns romances excessivamente longos. A novela, mais próxima da concisão e da intensidade do conto, evita digressões, descrições e diálogos excessivos. Também nesse aspecto, A morte e a morte de Quincas Berro Dágua é uma narrativa bem realizada. Como diz o título, a novela refere-se a duas mortes do mesmo personagem. Há ainda uma terceira, que é a morte moral da família depois que o protagonista abandona o lar. Antes de ser o “cachaceiro-mor de Salvador”, o “rei dos vagabundos da Bahia”, jogador, marinheiro e farrista, Quincas foi Joaquim Soares da Cunha: o pacato e correto pai de família e funcionário público.
Morto, os familiares tentam recuperar a dignidade do outro, quando vivo. A novela trabalha com esses dois registros: a vida exemplar e a vida vagabunda. A primeira refere-se ao tedioso cotidiano de uma família de classe média de Salvador: a mulher rabugenta de Joaquim, sua filha não menos ranzinza, seu genro e seu irmão. Dois personagens na mesma pessoa, e dois passados de vidas opostas, no mesmo morto. Mas trata-se realmente de um morto? Durante o velório no quartinho de um cortiço na ladeira do Taboão, o defunto dirige a sua filha “um sorriso cínico, imoral, de quem se divertia”; xinga a tia Marocas com um apelido nada edificante e faz com o polegar um gesto de deboche. Quando os amigos chegam ao velório, não acreditam que Quincas está morto.
É notável o diálogo entre o “defunto” e os amigos. E não menos notável a andança dos vivos com o morto pelas ruas de Salvador até o cais, onde Quincas, velho marinheiro, embarca num saveiro para uma viagem ao fundo do mar. Durante uma tempestade, Quincas Berro Dágua se deixa envolver por sua própria vontade “num lençol de ondas e espuma”. Essa reviravolta do destino – o morto que se revela vivo e escolhe a hora e a maneira de morrer – é típica da novela enquanto gênero.
Mas algo nos diz que ele realmente está morto. Essa ambigüidade, que a narrativa explora o tempo todo, é um dos grandes feitos da novela. A farsa que Joaquim, ainda vivo, arma para a família, arma de novo enquanto defunto. Para o leitor, esse jeito farsante de morrer permanece em suspenso, como a reiteração de uma dúvida anunciada na abertura dessa novela de fato extraordinária, como poucas na literatura brasileira.
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Sobre o autor:
Milton Hatoum é escritor, autor de Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte, com o qual conquistou os prêmios Jabuti, como o livro do ano na categoria ficção, e Portugal Telecom, em primeiro lugar
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Fonte:
Entrelivros. edição 16. agosto 2006. Duetto Editorial.
http://www2.uol.com.br/entrelivros/artigos/
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