sábado, 16 de agosto de 2008

Gonçalo Júnior (Livros de "fantasia" fascinam britânicos e o mundo )

Ao ser questionado sobre o fascínio dos britânicos pelo que se chama genericamente de livros de fantasia, o escritor inglês Terry Pratchett brinca quando busca uma explicação. O clima no Reino Unido, diz ele, é tão ruim que se faz necessário criar novos mundos para fugir da realidade. Depois, fala sério e explica que a causa pode estar no fato de que os britânicos têm um folclore muito rico graças à maneira curiosa com que o país absorveu a mitologia de outros povos ao longo dos séculos. "Temos elementos dos franceses, dos nórdicos, dos romanos, dos galeses e até dos alemães, nós simplesmente colocamos tudo junto e isso está espalhado por toda parte", observa ele, em entrevista a este jornal. O escritor lembra que, por exemplo, que é comum afirmar que todas as grandes cavernas no Reino Unido pertenceram ao mago Merlin ou a algum poderoso bruxo. "Então, você cresce pensando as coisas de uma certa maneira".

Os romances de fantasia são uma instituição secular no Reino Unido. Dirigidos a princípio a crianças e adolescentes, são vorazmente consumidos por jovens e adultos de todas as idades. Thomas A. Shippey, biógrafo e estudioso da obra de Tolkien, explica que a tradição começou talvez com William Morris, no final de 1880. Existiram, porém, outros autores de fantasia antes de Tolkein, na primeira metade do século XX, como Lord Dunsany, E. R. Eddison e Lewis Carroll, criador dos livros de "Alice". Shippey lembra também o gênero migrou para outros países, como os Estados Unidos, onde destacam-se como principais nomes Robert E. Howard (criador de "Conan, O Bárbaro"), Fritz Leiber e Lion Sprague De Camp.

Tanto Shippey quanto Pratchett lamentam que a crítica continue a subestimar a tradição consagrada por "O Senhor dos Anéis". "Eu acho que os críticos não gostam do gênero e suspeito que é porque eles não têm controle sobre isso. Mas não importa o que eles pensam, os leitores decidem por eles mesmos", avalia Pratchett. Ele observa que todos os autores de fantasia que se lembra foram bons vendedores muito antes de qualquer crítico ter sido "incomodado" com alguma notícia sobre eles. Os críticos, acrescenta Shippey, não apenas subestimam o gênero como também são incapazes de considerá-lo dentro da literatura. Em geral, afirma, eles lidam com isso dizendo que isso "não é literatura". "Se você não pode entender alguma coisa, negue a sua existência...", ironiza.

Shippey vê como positivo para combater esse preconceito o sucesso editorial dos romances de "Harry Potter". Ele os define como de boa qualidade e sinalizadores de abertura de um mercado que se acreditava limitado ou mesmo inexistente. "Tanta aceitação de Harry Potter mostra que crianças estão preparadas para ler ou escutar livros muito longos, desde que elas tenham uma história empolgante para ler". E acrescenta: "Contar história é outra coisa que os críticos não se sentem muito contentes a respeito". Pratchett concorda com ressalvas. Na sua opinião, os livros de Rowling são bons, mas "massivamente falados e insensados". Agora, acrescenta, essa onda está seguindo seu próprio curso. "Os romances de Potter não trazem muita coisa nova, vejo-os como uma receita diferente na qual se usa basicamente os mesmos ingredientes. Mas não há nada errado com isso. Afinal, o mesmo pode ser dito da maioria dos outros gêneros literários".

Para Pratchett, os britânicos realmente gostam de escrever livros de fantasia, mas não tem certeza se gostam de lê-los mais outros povos. E também cutuca a crítica: como os livros de fantasia são muito populares, existe uma "imensa esnobação" contra o gênero por parte dos críticos literários. Ele recomenda cautela ao tentar definir o termo fantasia. "Deixando de lado lendas como a do Rei Arthur, nós não temos uma grande tradição de fantasia heróica. Temos tradicionalmente escrito o que eu chamo de 'doorway fantasies', onde uma porta, uma caverna, um buraco no chão ou mesmo um guarda-roupa são uma porta secreta para um outro mundo o qual possui ecos do nosso próprio". Esse foi o tipo de livro escrito por nomes consagrados como Lewis Carroll, E. Nesbit, John Masefield e Clive Staples Lewis (C.S.) Lewis - considerado um dos influentes autores pela série de sete livros "As Crônicas de Nardia", todos lançados no Brasil pela Martins Fontes. O que é pouco usual sobre o Senhor dos Anéis, acrescenta Pratchett, é que a Terra Média é completamente idealizada e separada do Mundo, não há uma ponte para ela, as pessoas não vão para lá ter aventuras e voltar para casa. É algo dentro dele mesmo.

Terry Pratchett é um fenômeno literário na Inglaterra desde a década de 1980, quando lançou o primeiro dos 26 livros da série "Discworld", com quase 30 milhões de exemplares vendidos somente em seu país. Agora, o leitor brasileiro que curte as aventuras de "Harry Potter" e "O Senhor dos Anéis" tem a oportunidade de conhecer seus livros. A Conrad Editora acaba de publicar o primeiro título, "A Cor da Magia" (232 páginas, R$ 25), e promete lançar mais dois livros até maio. O projeto da editora é ousado pela respeitável tiragem inicial de 25 mil exemplares. A confiança, claro, tem a ver com os 800 mil exemplares de "Harry Potter" comercializados até agora pela Rocco no Brasil.

Os primeiros livros de Diskworld, chamaram a atenção porque, inicialmente, colocaram humor no mundo de fantasia heróica nos anos de 1980. "Sou mais interessado em pessoas do que em dragões". A série de Pratchett já foi publicada em 27 línguas. Uma das peculiaridades da obra está na criação de seu ambiente de fantasia. Pode parecer estranho, mas a intenção é ser engraçado: um mundo em forma de disco - Discworld - com alguns milhares de quilômetros de extensão, suspenso no espaço por quatro elefantes, posicionados sobre uma tartaruga de tamanho descomunal. Seus habitantes são deuses, magos, guerreiros mercenários, duendes e caixas mágicas, mas está longe de ser algo parecido ao universo de Tolken ou Harry Potter. Sobre suas influências, o autor afirma que foram muitos poucos dentro da fantasia. Com exceção, "possivelmente", de G.K. Cheston. "Estilisticamente, eu sou provavelmente influenciado por autores como Mark Twain e Jerome K. Joreme".

De olho no filão, pelo menos mais quatro editoras confirmam lançamentos no gênero nas próximas semanas, com aventuras que têm crianças e adolescentes como protagonistas. A Record investe no potencial do propagado "Artemis Fowl - o menino prodígio do crime", de Eoin Colfer (288 págs, R$ 25,00). Amparado num forte marketing internacional, o livro de Colfer - autor de livros infantis, com seis obras publicadas - também tem um garoto diferente como protagonista e tem tudo para seguir os passos de "Harry Potter". Enquanto escreve o segundo volume, o autor - de origem irlandesa - comemora a estréia promissora da série. Pode parecer pouco, mas "Artemis Fowl" já circula em 25 países e acumula vendas de 350 mil exemplares.

A receita do personagem se concentra no fato de que o herói mirim não se encaixa no perfil dos personagens infanto-juvenis convencionais. Fowl é um pessimista e mal humorado que é um gênio do crime. Suas aventuras bem moderninhas combinam ação, Internet e magia - sim, isso é possível. Ele é o herdeiro do clã dos Fowl, uma lendária família de personagens do submundo, célebres na arte da trapaça. Para tentar recuperar a fortuna de sua família, após o desaparecimento misterioso de seu pai, ele bola um plano mirabolante que pode levar seu planeta a guerra entre espécies. Para colocá-lo em prática, chantageia e rouba com o propósito de desvendar os segredos do Povo das Fadas e descobrir onde esse povo guarda uma enorme reserva de ouro. Os direitos do livro, claro, já foram vendidos para a Miramax, que já confirmou até Cameron Diaz no papel da fada Holly.

A Geração Editorial aposta em "Os Mundos de Crestomanci", da veterana Diana Wynne Jones (253 págs, R$ 18,90). Não é preciso ir além de duas páginas de "Os Mundos de Crestomanci" para perceber o quanto o livro de Diana Wynne Jones lembra "Harry Potter". Com uma diferença: foi publicado quase 20 anos antes, em 1977. A estória começa com o naufrágio de um navio, do qual poucos escapam. Entre estes, o garoto Gato Chant e sua irmã mais velha, Gwendolen, com poderes de bruxaria. Órfãos, os dois sensibilizam os governantes de Wolvercote, que pagam uma bruxa para educá-los. A menina doa as cartas trocadas entre seu pai e o misterioso Crestomanci por aulas de bruxaria. Jones escreve com simplicidade envolvente e é indicado para quem gosta ou odeia "Harry Potter".

A coleção de Jones é composta de cinco títulos. O volume de estréia já vendeu mais de um milhão de exemplares em mais de uma dezena de países. Somente do ano passado para cá, somente na Inglaterra e nos Estados Unidos a tiragem passou de 700 mil cópias.

A Objetiva finaliza em janeiro a publicação em português da elogiada trilogia de Philip Pullman, "Fronteiras do Universo" - formada pelos livros "A Bússola Dourada", "A Faca Sutil" e "A Luneta de Ambar" (número de páginas e preço não definidos). Consagrados pela crítica especializada inglesa como uma das melhores obras da fantasia atual, os dois primeiros volumes lamentavelmente não decolaram no Brasil e ficaram longe de corresponder às expectativas do editor. Cada livro não passou da primeira tiragem (esgotada) de 2 mil exemplares. Mesmo assim, a Objetiva promete para janeiro o terceiro volume e estuda a possibilidade de relançar os dois primeiros livros com novas capas - talvez o principal problema das duas edições brasileiras.

Os dois primeiros livros foram traduzidos para 18 línguas e já são considerados um clássico da literatura. "A Bússola Dourada" recebeu a medalha Carnegie, o Prêmio de Ficção do Guardian e foi eleito o Livro do Ano na Grã-Bretanha em 1996. "A Faca Sutil" recebeu o Prêmio de Melhor Seqüência - 1997 Cuffies, da Publisher's Weekly. A trilogia de Pullman também foi citada como a obra mais inventiva desde "O Senhor dos Anéis". Seus livros conquistaram leitores e a crítica especializada de vários países e ele chegou a ser comparado ao impacto de autores como Lewis Carroll, E. Nesbit, C.S. Lewis e Tolkien. Pullman mistura em suas aventuras infanto-juvenis religião, criação, evolução, morte, física cósmica, pecado, autoridade e liberdade a serviço da imaginação, da educação e da literatura de qualidade A série conta a história de Will, um garoto de 12 anos que, após assassinar um homem, sai à procura da verdade sobre o desaparecimento de seu pai. Num passe de mágica, ele passa por um portal que o leva a um mundo habitado por espectros letais, devoradores de almas e outras criaturas aterradoras que disputam com todas as forças um talismã capaz de cortar o nada e abrir passagens para outros universos: a faca sutil. Nesse mundo, conhece Lyra, com quem enfrenta mil perigos.

E quanto a Harry Potter? Vai bem, obrigado. Tanto que, a Rocco acaba de mandar para as livrarias dois aparentes caça níqueis, escritos por J. K. Howling, a autora de "Harry Potter": "Animais Fantásticos & Onde Habitam", de Newt Scamander (64 págs, R$ 12) e "Quadribol através dos séculos", de Kennilworthy Whisp (64 págs, R$ 12). Os dois títulos foram escritos supostamente para atender ao apelo de seus fãs. No primeiro, Rowling escreveu um histórico completo sobre o esporte típico dos bruxos, o "Quadribol". "Animais Fantásticos & Onde Habitam" é outra citação frequente em seus romances - trata-se de livro fictício adotado pelos professores da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.

Em entrevista distribuída pela assessoria de imprensa da editora brasileira, Rowlling conta que os livretos nasceram de um pedido do fundador da ONG Comic Relief, Richard Curtis. A escritora já colaborava com a entidade e decidiu participar do projeto. As vendas no Reino Unido - mais de 80% do valor da capa - foram para a instituição que desenvolve projetos humanitários na África. O percentual só foi possível graças à participação de livreiros, fornecedores de papel e cessão de direitos autorais. A venda internacional das duas publicações será doado para ajudar crianças pobres de todo o mundo.

Os livretos têm um apelo irresistível para os fãs de Harry Potter. Primeiro, porque poderá consultar informações recorrentes em todos os romances, mas não detalhadas. Depois, trazem rabiscos escolares de Harry e Rony - feitos pela própria autora na edição original inglesa. O livro sobre quadribol traz até pesquisa histórica. O jogo teria surgido no século XI, como um esporte rústico, jogado com vassouras caseiras. Nos dois séculos seguintes, os bruxos acrescentaram mais bolas e ficaram com o formato como é conhecido hoje. Vale pela causa.

Fontes:
InvestNews/ Gazeta Mercantil Sexta, 30 de novembro de 2001
http://www.terra.com.br/diversao/2001/11/30/012.htm
Foto: Ilustração do Livro Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis

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