Japonezinho mirrado, já velho, enrugado, banguela. Vigiava carros num estacionamento. Em troca recebia minguadas moedas. Quando a fome apertava, corria ao vendedor de pastéis. Esmigalhava com os dedos a iguaria e enchia a boca de farelos de carne moída e trigo assado. Pedia caldo de cana e sorria. Os moleques o chamavam de “japa”. Ele se zangava, cuspia farelos e pingos de caldo.
Deitado no catre imundo, Hiroito recordava a Grande Guerra. Dores, mortes, destruição. E a fuga para o Brasil. Dormia, cansado, e sonhava horrores. Milhões de pulgas a roê-lo vivo. Baratas e ratos fardados, enormes, violentos. Prendiam-no, arrastavam-no, molestavam-no.
Mal amanhecia, pulava do gramado e, tonto, buscava a aurora. Fechava os olhinhos sujos e enfiava as mãos na água da bacia. A fome de novo. Imaginava pastéis macios. Esquecia os inimigos, a guerra, os insetos. Corria para pegar o ônibus. Precisava chegar cedo ao estacionamento. E disputar com os moleques o direito de receber moedas dos donos dos carros. Moedas e insultos. “Vai trabalhar, vagabundo!”
Um dia lhe disseram que no Japão havia muita riqueza. Indústrias e mais indústrias. Como em nenhum outro país. O povo vivia farto e feliz. Nem parecia aquele povo destruído em 45. Riu. Não acreditou naquilo. E, se fosse verdade, mesmo assim preferia viver no Brasil, onde não havia guerra.
Noutro dia houve tiroteio entre policias e ladrões de carro. O estacionamento virou campo de batalha. Tiros a torto e a direito. Correria e gritaria. Um pandemônio. Assustado, o velho japonês correu. Talvez alcançasse a barraca dos pastéis. Quando aquilo acabasse, mataria a fome. Porém, antes de alcançar refúgio, uma bala se incrustou em seu peito. Atirado ao chão, rolou para debaixo de um carro. Se sentia dor, não sabia. Na verdade, tudo parecia grandioso aos seus olhos semi-abertos. Aviões devastavam céus. Tanques rolavam sobre os inimigos, que viravam pastéis. As tropas japonesas invadiam Ásias e Américas. E ele, Hirohito, imperador do Japão, comandava a vitória. O poderoso exército do Império do Sol Nascente. Quando a guerra terminasse, o Japão seria dono do mundo. E ele, Hirohito, o homem mais poderoso da Terra.
E expirou.
Fontes:
MACIEL, Nilto. Pescoço de girafa na poeira. Brasília: Bárbara Bela, 1999. p.71-72.
Deitado no catre imundo, Hiroito recordava a Grande Guerra. Dores, mortes, destruição. E a fuga para o Brasil. Dormia, cansado, e sonhava horrores. Milhões de pulgas a roê-lo vivo. Baratas e ratos fardados, enormes, violentos. Prendiam-no, arrastavam-no, molestavam-no.
Mal amanhecia, pulava do gramado e, tonto, buscava a aurora. Fechava os olhinhos sujos e enfiava as mãos na água da bacia. A fome de novo. Imaginava pastéis macios. Esquecia os inimigos, a guerra, os insetos. Corria para pegar o ônibus. Precisava chegar cedo ao estacionamento. E disputar com os moleques o direito de receber moedas dos donos dos carros. Moedas e insultos. “Vai trabalhar, vagabundo!”
Um dia lhe disseram que no Japão havia muita riqueza. Indústrias e mais indústrias. Como em nenhum outro país. O povo vivia farto e feliz. Nem parecia aquele povo destruído em 45. Riu. Não acreditou naquilo. E, se fosse verdade, mesmo assim preferia viver no Brasil, onde não havia guerra.
Noutro dia houve tiroteio entre policias e ladrões de carro. O estacionamento virou campo de batalha. Tiros a torto e a direito. Correria e gritaria. Um pandemônio. Assustado, o velho japonês correu. Talvez alcançasse a barraca dos pastéis. Quando aquilo acabasse, mataria a fome. Porém, antes de alcançar refúgio, uma bala se incrustou em seu peito. Atirado ao chão, rolou para debaixo de um carro. Se sentia dor, não sabia. Na verdade, tudo parecia grandioso aos seus olhos semi-abertos. Aviões devastavam céus. Tanques rolavam sobre os inimigos, que viravam pastéis. As tropas japonesas invadiam Ásias e Américas. E ele, Hirohito, imperador do Japão, comandava a vitória. O poderoso exército do Império do Sol Nascente. Quando a guerra terminasse, o Japão seria dono do mundo. E ele, Hirohito, o homem mais poderoso da Terra.
E expirou.
Fontes:
MACIEL, Nilto. Pescoço de girafa na poeira. Brasília: Bárbara Bela, 1999. p.71-72.
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