quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Herberto Sales (Pareceres do Tempo)

Herberto Sales (Andaraí, Ba., 1917-) surge no panorama literário brasileiro, em 1944, com o seu primeiro romance, Cascalho, a nos apresentar os crimes e lutas inerentes aos garimpos, num contexto de violência e aventura, numa moderna retomada da temática de Lindolfo Rocha, regionalista do princípio do século XX. Quarenta anos depois de Cascalho, precedidos pela publicação de contos e outros romances do autor, surgem Os Pareceres do Tempo, “romance de duas velhas famílias que se enredam em episódios vividos por uns tantos membros dela: os Golfões e os Rumecões, na antiga região denominada Cuia d’Água.” O cenário principal de Os Pareceres do Tempo é a Bahia do final do século XVIII.

O romance tem como ponto de partida a vinda para o Brasil do português Antônio José Pedro Policarpo Golfão – “mais crescido nos prenomes, que no sobrenome” (LIVRO I, p. 11) – que recebe uma sesmaria no município de Cachoeira, como reconhecimento do rei de Portugal por seu pai, um fidalgo, cujo nome não nos é dado a conhecer, ter morrido ainda no mar, indo para a Índia, em missão portuguesa. Ou numa

outra versão da morte do fidalgo: a que ele, entre os da família do tão célebre apelido Golfão, o mais antigo ancestral na tradição referido, encontrou a morte, não no mar, mas na batalha de Alcácer-Quibir, batendo-se contra o gentio, no elevado propósito de no incréu incutir a Fé, com a ajuda eficaz da Espada; isso, sob o comando superior e piedoso de El-Rei D. Sebastião, que ali, desgraçadamente, também pereceu”.

Este é, pois, fato cuja veracidade é incerta:

Conquanto não haja documentos que indiquem, sob a grave proteção dos arquivos, haver existido em qualquer tempo esse fidalgo, não ousamos pôr em dúvida tão respeitável versão, que até nos chegou sem discrepância, robustecida por mais de dois séculos de tradição local”. (LIVRO I, p.11)

E, como está nos REGISTROS FINAIS (p. 409), segundo o narrador:

Estes registros fizemo-los depois de visitarmos em Cuia d’Água a antiga fazenda do capitão Policarpo, já praticamente em ruínas. Braulino José foi o nosso principal informante. Levou-nos até ao cemitério da fazenda, em parte já invadido pelo mato”.

O enredo de Os Pareceres do Tempo é construído com base na tradição oral interna da obra, através do depoimento do filho de Policarpo – Braulino José, aos 132 anos de idade – dado ao narrador; depoimento este aliado à dinâmica do panorama da Bahia dos anos de setecentos. Mas

a dualidade de versões do óbito infortunado fidalgo e – já agora, por que não dizer? – também possível guerreiro, de quem em linha direta descendia Policarpo Golfão, não alterou o desfecho do reconhecimento póstumo que por justiça a pátria lhe tributou, aquinhoando, como de fato aquinhoou, o seu filho único e legítimo com a já competentemente citada sesmaria no alto serão da Bahia, então sede do governo colonial do Brasil”. (LIVRO I, p. 13)

Eram, portanto, as terras do Brasil de quem aqui chegasse munido de documento de doação concedido pelo rei de Portugal.

Desde Cascalho, verificamos esse gosto do autor pela oralidade popular:

Nos barulho do Coxó
Briga até as lagartixa
- Os calango de combléia
E elas de manulicha...”
(p. 47).

Viva Santa Rita,
Que é Santa mulher,
No céu e na terra,
Ela faz o que quer
!” (p.78).

Em Os Pareceres do Tempo, a construção da vida de Policarpo, refletida no seu estado de espírito, nos vai sendo apresentada pela ótica popular, em pequenos versos:

Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
”. (LIVRO XVII, p. 94)

Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
Com Liberata no coração
”. (LIVRO XLIX, p. 350)

Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
De volta da sua vingança
Com Liberata na lembrança
(LIVRO LII, p. 372)

Lá vai Policarpo Golfão
No seu cavalo alazão
Levando com devoção
A sua igreja no coração
”. (LIVRO LIV, p. 398)

Conta-nos o narrador – tão ironicamente distanciado do autor no prefácio – como as três raças que compõem a mestiçagem brasileira conviviam, mas não se misturavam, procurando conservar suas características sociais e culturais.

E foram todos, depois, para a mesa, com o Fidalgo sentado à cabeceira, e Policarpo a seu lado. O padre Gumercindo e o padre Salgado, e mais o Quincas Alçada, ocuparam os outros lugares. Isto no corpo principal da mesa; porque, continuando-a, no seu desdobramento festivo, democraticamente franqueado aos principais auxiliares de Policarpo na fundação da fazenda e na edificação da casa-grande, outros lugares havia, reservados ao mestre-de-obras Dinis e a seu filho Serafim, e ao capitão-do-mato José do Vale e ao seu auxiliar Bertoldo. E abriram-se garrafas de vinho, e com generosidade o serviram, as garrafas transitando na mesa e esvaziando-se no degustado e comovido suceder dos goles, que o vinho, a todos apetecendo, também lhes lembrava, no enlevo de seus vapores, o tão distante quanto amado Portugal. (...)
(...) Os escravos e os índios comiam à parte, servindo-se duns fumegantes caldeirões comandados pelo índio Nicodemus (ex-Sinimu), disso encarregado por Quincas Alçada. (...)
” (LIVRO XXIII, p. 134-5)

Ainda neste almoço, os escravos cantaram e dançaram:

Taratatara kundê / Ogum de lê / Oyá jamba / Maion gangê / Kawô / Kawô / Oyá ajô

E comenta o narrador:

Ninguém entendia o que diziam, o que cantavam eles; mas as palavras, os sons da cantoria deles impressionavam pela tristeza profunda e doce, pela dorida melancolia que comunicavam, ao mesmo tempo em que eram carregados duma aspereza de imprecações dramáticas”.

E diz mais o narrador:

Ao contrário dos negros, os índios conservavam-se em silêncio, no mesmo lugar onde desde o começo estavam. Trocavam entre si, às vezes, um olhar, mas, entre si, não se falavam. Ou falavam entre si com os olhos.” (LIVRO XXIII, p. 135-6)

Essa reação dos índios de não se deixarem dominar nem aculturar é-nos mostrada mais à frente da narrativa de modo decisivo:

Policarpo reconheceu-o:
- Gonçalo!
- Não sou Gonçalo! – respondeu o índio, evidentemente zangado. Meu nome é Icurê. Gonçalo foi o nome que padre botou em índio. Gonçalo é nome de branco. Icurê não é branco. Índio é índio. Meu nome é Icurê.”
(LIVRO I, p. 358)

Nessa narrativa nós, leitores, somos conduzidos pelos passos do tentacular Policarpo – “consta que era alto, e corpulento; era branco, e louro, com viçoso bigode e barba farta, emparelhados com basta cabeleira cacheada. Um homem bonito; um soberbo varão, segundo registro da mais fundamentada tradição oral.” (LIVRO I, p. 12) – até a cruel realidade de um contexto onde “o levar ou o trazer escravos assim acorrentados e amarrados, (...) era fato assaz corriqueiro naqueles tempos, nas ruas da Bahia; ninguém lhes prestava atenção, ou quase ninguém”. (LIVRO XI, p. 58).

Nesse mundo antiético, onde o caos e o cotidiano se justapõem – o vai-e-vem de escravos acorrentados, estranhos transeuntes traficados da África nas ruas da Bahia, a esbarrarem-se com as famílias portuguesas que, se por um lado mostravam religiosidade, temor a Deus, por outro, faziam tráfico de escravos, na sua maioria:

Explicou, ainda, o Almeidão a Policarpo Golfão que, tendo em vista que a hospedaria não lhe proporcionava a ele satisfatórios lucros, resolvera, para não ter de resignar-se ao ganho dum sustento sem futuro, buscar em outra atividade a necessária complementação de renda. E que a escolha dessa atividade recaíra no tráfico de escravos, por ser ela, além de lucrativa, de muita respeitabilidade na Bahia. Ademais, quase todos que a ela se entregavam eram portugueses, não os de inferior condição, mas, ao contrário, os de mais representação na colônia; e, tanto isto era verdade, que os portugueses traficantes de escravos tinham mesmo a sua Irmandade própria, que cuidava dos seus interesses deles na sociedade civil e no Foro; e que constituía a dita Irmandade, em suma, uma respeitabilíssima entidade sócio-jurídica, que se organizara sob a grave invocação de São José. Enfim, a ninguém repugnava – fosse português o sujeito, fosse ele até mesmo brasileiro – a ninguém repugnava traficar com escravos, visto ser esta atividade, no comércio baiano, quiçá do Brasil, um dos ramos mais lucrativos.” (LIVRO III, p. 20)

O tráfico de escravos praticado pelo padre Salviano Rumecão é por ele cinicamente narrado ao seu amigo Quincas Alçada; justificando-se:

A propagação da fé, dos ensinamentos da Igreja; o empenho em manter os fiéis à salvaguarda do Demônio, pregando-lhes a palavra de Jesus, e ensinando-lhes a serem justos uns para com os outros: o piedoso pastoreio das almas, para manter em fervorosa união o rebanho de Deus – se, de fato, todas essas altas atribuições dignificavam e elevavam a missão do sacerdote, não havia, na prática, como preterir, no exercício delas, a pecúnia, a remuneração, o santo e rico dinheirinho (...) E os mártires, como se sabia, tendiam, com o progresso, a desaparecer de todo.” (LIVRO V, p. 27-8)

Tudo a transcorrer dissimuladamente, num misto de profanação e religiosidade, compondo o decoro hipócrita de uma sociedade impudentemente barroca.

Os Pareceres do Tempo são também uma história de amor. Duas mulheres amam Policarpo: Liberata Rumecão e a escrava Gertrudes. Mas o triângulo amoroso não se consolida de fato, em nenhum momento da narrativa, talvez por preconceito ou por ser Poli carpo realmente fiel ao seu amor por Liberata, até mesmo depois da morte dela. Em determinado momento ele diz à Gertrudes:

“- Sabes que podias ter tido um filho meu? – perguntou-lhe Policarpo, olhando-a com ternura.
Ela baixou a cabeça. Ele, com um sorriso embaraçado:
- Esquece o que te disse. Hoje somos compadres. Hoje somos apenas amigos. De resto, Liberata te estimava muito, e sabia que eu te estimava. Esquece o que te disse. Liberata estará sempre entre mim e ti”.
(LIVRO LIV, p. 393)

E é pelo amor de Liberata que Policarpo se enche de vigor, de coragem, de energia para realizar todos os seus empreendimentos, para viver. Liberata vivia no Solar dos Sete Candeeiros e a sua presença, com seus “cabelos muito negros” que “caíam-lhe em tranças sobre o busto, emoldurando-lhe o rosto gracioso” (LIVRO VI, p. 32) é sempre, para Policarpo, a luz que ilumina a áspera realidade daquele contexto

uma formosa jovem que, mostrando-se ao sol, e tendo por ele realçada a sua beleza (...) pareceu-lhe ela a Policarpo Golfão como se fora uma flor, ou uma luz, porque era luzente como uma estrela a sua figura gentil.” (LIVRO VI, p. 32)

E, no decorrer da narrativa:

Era a donzela Liberata que entrava. Então, a nave acendeu-se em ouro e púrpura, e em ouro acesa iluminou nos altares os crisântemos, no teto a fímbria das cornijas, na capela-mor os tocheiros perfilados. (...)
- Liberata... As letras daquele mágico nome: forma e cor e luz saindo ordenados dum resplandecente maço de emoções que uma fita desatasse”
(LIVRO XXVIII, p. 172-3).

Como uma luz que na sombra de repente se acendesse.” (LIVRO XXXVIII, p. 250)

Herberto Sales incorpora ao seu romance a figura de mestre Manuel, do saveiro Viajante Sem Porto – personagem de Jorge Amado

- “que nasceu em saveiro e morou sempre em saveiro, aparenta trinta anos, ninguém lhe dá os cinqüenta que traz no costado, todo ele é de uma cor só, um bronze escuro, e é tão difícil dizer se é branco, negro ou mulato; é um marinheiro que raramente fala e que é respeitado em toda a zona do cais do porto da Bahia e em todos os pequenos portos onde pára seu saveiro.”

Configura-se, aqui, uma personagem mítica, alegórica, semelhando-se, em alguns aspectos, a Caronte, o barqueiro que transportava as almas para o Hades, o inferno grego.

Em Os Pareceres do Tempo, mestre Manuel, num diálogo com Policarpo, explica a origem do nome do seu barco:

“- Mas, Manuel, que te deu na telha para batizares o teu barco com o nome de Viajante Sem Porto? Olha que estranhei esse nome! Então não tens tu um porto para ti e o teu barco? – tornou Policarpo Golfão, sorrindo e fazendo sorrir também o Almeidão e Quincas Alçada.

- É que esse nome foi dum barco do meu pai – disse mestre Manuel. Enfim, se isto é verdade, também verdade é que vivo de porto em porto com o meu barco, como se porto não tivéssemos ele e eu: quando chego a um, já tenho que partir para outro. Não me parece mau esse nome Viajante Sem Porto. Não o acho nada estranho. E só espero é que o Manuelzito, meu único filho homem, quando mais tarde lhe houver chegado a vez de me substituir, que seja também um mestre e que tenha também o seu Viajante Sem Porto, que haverá de tomar o lugar do meu.
” (LIVRO X, p. 55)

E comenta o narrador de Os Pareceres do Tempo, numa clara referência a Jorge Amado:

Praza a Deus que, em dias que hão de vir, encontre essa bela região do Recôncavo baiano um escritor que a descreva num livro tão belo quanto ela, que corra o Brasil e o próprio mundo; e que, captando toda a poesia que docemente a impregna, fale dos seus saveiros e da sua gente, talvez dum novo Viajante Sem Porto, talvez dum novo mestre Manuel”. (LIVRO XII, p. 66)

Conclusão

Os Pareceres do Tempo são uma obra de ficção, cujo contexto narrativo é a Bahia do final do século XVIII. O enredo deste romance é tecido aliando ficção e realidade; uma ficção construída com base na tradição oral interna da obra.

Os Pareceres do Tempo conta-nos histórias de amor, de dominação, mas, sobretudo, a história da formação de um povo; da construção de um país, do Brasil.

Herberto Sales, em Os Pareceres do Tempo, através da humanidade de suas figuras, apresenta-nos uma história cheia de força, vigorosamente atual, numa expressão e linguagem tão equilibradas, que fazem deste romance uma síntese da narrativa genuinamente brasileira.

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