Manuscrito
Manuscrito descoberto entre os papéis do poeta, em envelope lacrado que ele, infelizmente, nunca chegou a abrir
Não queremos, nem de longe,
pensar no que pode haver,
poeta Mário de Andrade,
se um dia você morrer.
Não queremos, porém como
impedir o pensamento
de se pensamentear?
Não morra nunca, poeta,
porque há sombras nas sombras
só esperando a sua morte
para assaltar os jornais,
submeter as revistas
e desterrar os poetas
(perigosos, subversivos,
capazes de qualquer coisa,
de acreditar em talento,
em lirismo, inspiração)
— e tudo será tristeza,
desamparo, solidão.
Eis que estão prontos e indóceis,
só aguardando a sua partida,
parnasianos tardios
armados de metros rijos,
estrofes sisudas (com
ou sem consoantes de apoio),
dicionários de rimas,
disciplina de cesuras,
iniludíveis sinéreses,
impecáveis hemistíquios,
implacáveis sinalefas
— para saltar desse escuro
e a alma nos arrancar!
Ah, não morra, Mário, poeta,
que o Sol pode se apagar!
Porque depois saltarão,
do escuro oculto no escuro,
cáfilas de não-poetas
gritando a morte do verso
em impudente algaravia,
concreção de logogrifos,
insalubres despoéticas
verbi-voco-visuais
contra o sonho e a poesia!
E ainda virão uns outros
em linhas irregulares,
reboantes, pantanosas,
ou em feição de diarréia
— que chamam de verso-livre,
como se o verso não fosse
o rigor que é sua vida!
E ainda virão mais uns
que trarão palavras frias,
sem música, pedregosas,
arquitetos do vazio,
construtivistas de nada.
Não resistiriam, todos,
aos combates de você,
poeta, mas vencerão,
se acaso você morrer!
Poeta Mário de Andrade,
não nos faça esse vexame,
não nos deixe abandonados
a apocalipses que tais,
como é o jargão espesso
dos professores-doutores
grávidos de metaplasmos,
poéticas objetais,
monósticos, semantemas,
afirmações axiais,
topos, vocóides, sememas
e outras disfunções letais!
Que ensinarão ser você
equívocos de você;
que aquilo que você disse,
em prosa ou verso, de fato
não disse; e o que você disse
traz profundas discordâncias
daquilo que você disse;
e, em suma, aquilo que disse
você, você nunca disse;
e o que você nunca disse
é exatamente o que disse,
ou que, ao menos no caso,
você queria dizer;
e muito provavelmente,
o que você disse, disse
porque disse o que não disse
quando dizia o que disse,
se disse mesmo o que disse;
se é que isso se deu — e se
você foi mesmo você
(e eis que, sob aplausos, cai
o pano: Magister dixit!)!
Por esses e outros motivos,
poeta Mário de Andrade,
não morra nunca jamais!
Porque, se você morrer,
será esse horror assim
— e o mundo pode acabar!
E se não se acaba o mundo,
depois que você morrer,
o que nos restar vai ser
bem difícil de agüentar!
=================
Soneto do amor e seus sóis
Eram teus olhos de água, olhos de água
ensombrada de folhas, eram teus
olhos de água marinha, eram teus olhos
de água límpida, ou turva, eram teus olhos
de água cintilante de tão negra,
eram teus olhos de água luminosa
como só umas raras dessas brisas
chamadas alma, eram os teus olhos
— e eis que teus olhos ainda são, que sempre
outros olhos e os mesmos: o amor
diverso e idêntico no azul do peito
a amanhecer-me, a moldar-me as
asas de mergulhar no chão profundo
e patas de galgar os altos ventos.
====================
Poeta em sua varanda
a Paulo Henriques Britto
Se ajeita na cadeira reclinável,
entre uma saudade e uma quimera,
sob outono que sabe a primavera
e agora o afaga com a mais amorável
tarde do mês. Aliás, todo ele amável,
este abril, ele pensa, já a quimera
enviando a pastar em outra era,
que à hora basta esta admirável
lembrança que o embala. E eis que seu ser
é como cristalina clarabóia
banhada pelo sol do amanhecer,
enquanto, a essa luz de ouro e jóia,
serenamente ele começa a ler
uma carta de amor vinda de Tróia.
=======================
Soneto do Quintal
para Matilde e Mario,
em Monte Gordo, março de 91
Ao recordar a moça, eu me comparo
ao cão que vejo a interrogar a brisa.
O que é mal comparar: bem mais precisa
é a mensagem de odores que o faro
decifra. E então medito sobre o claro
ser desse cão, e invejo essa precisa
vocação de existir. E ausculto a brisa
e nada nela encontro. Nada. E paro
de lembrar e pensar. Há mais profícuas
ocupações. Exemplo: só olhando
estar. Cão. Nuvens. Ramos. E, dormindo,
um gato. E essas formigas — três — conspícuas,
vestidas a rigor, deliberando
em torno de uma flor de tamarindo.
Fontes:
http://virtualbooks.terra.com.br/
http://www.jornaldepoesia.jor.br/
Manuscrito descoberto entre os papéis do poeta, em envelope lacrado que ele, infelizmente, nunca chegou a abrir
Não queremos, nem de longe,
pensar no que pode haver,
poeta Mário de Andrade,
se um dia você morrer.
Não queremos, porém como
impedir o pensamento
de se pensamentear?
Não morra nunca, poeta,
porque há sombras nas sombras
só esperando a sua morte
para assaltar os jornais,
submeter as revistas
e desterrar os poetas
(perigosos, subversivos,
capazes de qualquer coisa,
de acreditar em talento,
em lirismo, inspiração)
— e tudo será tristeza,
desamparo, solidão.
Eis que estão prontos e indóceis,
só aguardando a sua partida,
parnasianos tardios
armados de metros rijos,
estrofes sisudas (com
ou sem consoantes de apoio),
dicionários de rimas,
disciplina de cesuras,
iniludíveis sinéreses,
impecáveis hemistíquios,
implacáveis sinalefas
— para saltar desse escuro
e a alma nos arrancar!
Ah, não morra, Mário, poeta,
que o Sol pode se apagar!
Porque depois saltarão,
do escuro oculto no escuro,
cáfilas de não-poetas
gritando a morte do verso
em impudente algaravia,
concreção de logogrifos,
insalubres despoéticas
verbi-voco-visuais
contra o sonho e a poesia!
E ainda virão uns outros
em linhas irregulares,
reboantes, pantanosas,
ou em feição de diarréia
— que chamam de verso-livre,
como se o verso não fosse
o rigor que é sua vida!
E ainda virão mais uns
que trarão palavras frias,
sem música, pedregosas,
arquitetos do vazio,
construtivistas de nada.
Não resistiriam, todos,
aos combates de você,
poeta, mas vencerão,
se acaso você morrer!
Poeta Mário de Andrade,
não nos faça esse vexame,
não nos deixe abandonados
a apocalipses que tais,
como é o jargão espesso
dos professores-doutores
grávidos de metaplasmos,
poéticas objetais,
monósticos, semantemas,
afirmações axiais,
topos, vocóides, sememas
e outras disfunções letais!
Que ensinarão ser você
equívocos de você;
que aquilo que você disse,
em prosa ou verso, de fato
não disse; e o que você disse
traz profundas discordâncias
daquilo que você disse;
e, em suma, aquilo que disse
você, você nunca disse;
e o que você nunca disse
é exatamente o que disse,
ou que, ao menos no caso,
você queria dizer;
e muito provavelmente,
o que você disse, disse
porque disse o que não disse
quando dizia o que disse,
se disse mesmo o que disse;
se é que isso se deu — e se
você foi mesmo você
(e eis que, sob aplausos, cai
o pano: Magister dixit!)!
Por esses e outros motivos,
poeta Mário de Andrade,
não morra nunca jamais!
Porque, se você morrer,
será esse horror assim
— e o mundo pode acabar!
E se não se acaba o mundo,
depois que você morrer,
o que nos restar vai ser
bem difícil de agüentar!
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Soneto do amor e seus sóis
Eram teus olhos de água, olhos de água
ensombrada de folhas, eram teus
olhos de água marinha, eram teus olhos
de água límpida, ou turva, eram teus olhos
de água cintilante de tão negra,
eram teus olhos de água luminosa
como só umas raras dessas brisas
chamadas alma, eram os teus olhos
— e eis que teus olhos ainda são, que sempre
outros olhos e os mesmos: o amor
diverso e idêntico no azul do peito
a amanhecer-me, a moldar-me as
asas de mergulhar no chão profundo
e patas de galgar os altos ventos.
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Poeta em sua varanda
a Paulo Henriques Britto
Se ajeita na cadeira reclinável,
entre uma saudade e uma quimera,
sob outono que sabe a primavera
e agora o afaga com a mais amorável
tarde do mês. Aliás, todo ele amável,
este abril, ele pensa, já a quimera
enviando a pastar em outra era,
que à hora basta esta admirável
lembrança que o embala. E eis que seu ser
é como cristalina clarabóia
banhada pelo sol do amanhecer,
enquanto, a essa luz de ouro e jóia,
serenamente ele começa a ler
uma carta de amor vinda de Tróia.
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Soneto do Quintal
para Matilde e Mario,
em Monte Gordo, março de 91
Ao recordar a moça, eu me comparo
ao cão que vejo a interrogar a brisa.
O que é mal comparar: bem mais precisa
é a mensagem de odores que o faro
decifra. E então medito sobre o claro
ser desse cão, e invejo essa precisa
vocação de existir. E ausculto a brisa
e nada nela encontro. Nada. E paro
de lembrar e pensar. Há mais profícuas
ocupações. Exemplo: só olhando
estar. Cão. Nuvens. Ramos. E, dormindo,
um gato. E essas formigas — três — conspícuas,
vestidas a rigor, deliberando
em torno de uma flor de tamarindo.
Fontes:
http://virtualbooks.terra.com.br/
http://www.jornaldepoesia.jor.br/
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