(id: MCCXII)
SONATA nº. 44, em mim menor
Tenho nas mãos um vazio,
no peito, mudo, um gemido,
que são as marcas de estio,
de tempo em mim construído.
Traço por traço me lavra,
nervura que já não vibra,
mas teço, fibra por fibra,
dentro da carne, a palavra.
Trago nas mãos, transversal,
ríspida flauta de vento,
em cujas notas, de sal,
construo o meu instrumento.
IMPROVISO PARA FLAUTA E PIANO
Para Ariadne Paixão
Que lábios me sustêm,
em lúcida harmonia
de arpejos e arrepios,
se a voz, em mim, é muda?
Em suave tessitura,
desvelo meus anseios,
sou frágil instrumento,
no vento, sem memória.
Que música desfaz,
no seio do mistério,
o nó da melodia,
o grito na garganta?
Me basto nos martelos,
nos fios invisíveis,
que tecem nas entranhas
meu corpo em oferenda.
BASTIDOR
Fico-me aqui: sozinho, só,
so(l)zinho de tão pouca luz,
que a sombra do meu dia é pus
dentro da vida — eterna mó.
Moída a carne, os ossos nus,
os olhos viram cinza e pó;
só sobra, a cisma sobre o dó
que faz em mim ponto de cruz.
Fico-me só: mas não perdido,
tecendo sonho em vão tecido,
pois que não sou o ser que lavra.
Além de mim, um outro tece
a mesma voz e a mesma prece,
das quais me faço na palavra.
A DUPLA FACE
Dentro do verso,
meu universo:
tudo é possível
e tudo é nada.
Dentro de mim,
dor e cetim:
minha loucura,
meu alicerce.
Sou e não sou,
ao mesmo tempo,
voz e luxúria.
Não basta ao vento
a sua fúria?
Basto-me louco.
IMPROVISO PARA VIOLONCELO
Grave e suave
o ritmo vai
serpenteando
pelo papel
nas rotas notas
de uma canção.
Cresce dos dedos
o acorde torto
e em sonolência
imita o vôo
já sincopado
dentro do pássaro.
Pausa e silêncio
na partitura:
é a voz de um anjo
talvez arcanjo
a brotar trôpega
junto da música.
DESCONCERTO
Ouço tua voz
ao telefone,
na noite insone,
na noite celular.
Áspera música
(cujas notas sangram)
flui de mim, sem mim,
enquanto falas.
Ainda guardas, vivo,
teu dissabor
na dor, na cor,
na pétala da fala.
Entretanto, canto
como aprendiz
o que não fiz
para os teus ouvidos.
ÍNTIMA CANTIGA
Num verso terso
desteço a infância:
do útero ao berço
— em ressonância
de sonho e fome —
refaço o laço
na voz do pássaro
que em mim ressoa
além do nome.
Num verso terso
canto e descanto
secretas fibras
de uma cantiga.
Guardo comigo
frementes sons
de asas, palavras:
ínvias palavras.
BERCEUSE
Para Morgana
Dorme, menina
dos olhos de água,
claros como a lua,
lisos como o mar
sem tormento.
Dorme, minha filha,
o sono do esquecimento,
nas vagas do sangue
sem códigos,
sem nome.
Filha minha,
carne da minha carne,
dorme e esquece
os vestígios do dia,
os sonhos interrompidos
e a sede do teu sorriso
que a noite
plantou em mim.
TESTAMENTO
Para Anderson Braga Horta
Deixa o teu silêncio
e o que restar da voz
impregnados
nos objetos, nas exigências,
nos versos inconclusos
de algum poema.
Deixa – e não te queixes –
amores unilaterais mas puros
para os teus pósteros
rivais
nesta congênere aventura.
Deixa teus livros,
quadros na parede,
os discos de Beethoven,
todos as óperas, inclusive “Aída”:
a tua predileta.
Deixa o teu amor
à música de Mozart,
aos filmes de Carlitos,
ao corpo de Sofia Loren...
Deixa os teus papéis
e até a folha branca
em que não se fixou
a face da palavra
necessária.
TERESA
Quando viste Teresa
pela primeira vez
foi como se a conhecesses
de longo, longo tempo.
Hoje, depois de tanto tempo,
toda vez que vês Teresa
é como se fosse
a primeira vez.
HAICAI
A lua caiu
no chão áspero da rua.
E eu catando estrelas.
NAVIO FANTASMA
Brusca, a barca trafega
nas trevas da existência.
Sem trégua, o timoneiro
avança. E, na dormência
de músculos e artérias,
atinge o magma, o centro
do abismo de existir,
fora de si e dentro.
As velas retorcidas,
a que ventos sucumbes,
nos vendavais da dor,
ao gozo e seus vislumbres?
Há tantos sóis e luas
na árdua travessia
Melhor não fora o porto
que a vida oferecia?
A vida não deságua
em lisos acalantos.
E não floresce a pedra
nas águas de seus prantos?
Ó velas desfraldadas,
de que sonhos se nutrem
a ânsia dos navios,
a fome dos abutres?
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SONATA nº. 44, em mim menor
Tenho nas mãos um vazio,
no peito, mudo, um gemido,
que são as marcas de estio,
de tempo em mim construído.
Traço por traço me lavra,
nervura que já não vibra,
mas teço, fibra por fibra,
dentro da carne, a palavra.
Trago nas mãos, transversal,
ríspida flauta de vento,
em cujas notas, de sal,
construo o meu instrumento.
IMPROVISO PARA FLAUTA E PIANO
Para Ariadne Paixão
Que lábios me sustêm,
em lúcida harmonia
de arpejos e arrepios,
se a voz, em mim, é muda?
Em suave tessitura,
desvelo meus anseios,
sou frágil instrumento,
no vento, sem memória.
Que música desfaz,
no seio do mistério,
o nó da melodia,
o grito na garganta?
Me basto nos martelos,
nos fios invisíveis,
que tecem nas entranhas
meu corpo em oferenda.
BASTIDOR
Fico-me aqui: sozinho, só,
so(l)zinho de tão pouca luz,
que a sombra do meu dia é pus
dentro da vida — eterna mó.
Moída a carne, os ossos nus,
os olhos viram cinza e pó;
só sobra, a cisma sobre o dó
que faz em mim ponto de cruz.
Fico-me só: mas não perdido,
tecendo sonho em vão tecido,
pois que não sou o ser que lavra.
Além de mim, um outro tece
a mesma voz e a mesma prece,
das quais me faço na palavra.
A DUPLA FACE
Dentro do verso,
meu universo:
tudo é possível
e tudo é nada.
Dentro de mim,
dor e cetim:
minha loucura,
meu alicerce.
Sou e não sou,
ao mesmo tempo,
voz e luxúria.
Não basta ao vento
a sua fúria?
Basto-me louco.
IMPROVISO PARA VIOLONCELO
Grave e suave
o ritmo vai
serpenteando
pelo papel
nas rotas notas
de uma canção.
Cresce dos dedos
o acorde torto
e em sonolência
imita o vôo
já sincopado
dentro do pássaro.
Pausa e silêncio
na partitura:
é a voz de um anjo
talvez arcanjo
a brotar trôpega
junto da música.
DESCONCERTO
Ouço tua voz
ao telefone,
na noite insone,
na noite celular.
Áspera música
(cujas notas sangram)
flui de mim, sem mim,
enquanto falas.
Ainda guardas, vivo,
teu dissabor
na dor, na cor,
na pétala da fala.
Entretanto, canto
como aprendiz
o que não fiz
para os teus ouvidos.
ÍNTIMA CANTIGA
Num verso terso
desteço a infância:
do útero ao berço
— em ressonância
de sonho e fome —
refaço o laço
na voz do pássaro
que em mim ressoa
além do nome.
Num verso terso
canto e descanto
secretas fibras
de uma cantiga.
Guardo comigo
frementes sons
de asas, palavras:
ínvias palavras.
BERCEUSE
Para Morgana
Dorme, menina
dos olhos de água,
claros como a lua,
lisos como o mar
sem tormento.
Dorme, minha filha,
o sono do esquecimento,
nas vagas do sangue
sem códigos,
sem nome.
Filha minha,
carne da minha carne,
dorme e esquece
os vestígios do dia,
os sonhos interrompidos
e a sede do teu sorriso
que a noite
plantou em mim.
TESTAMENTO
Para Anderson Braga Horta
Deixa o teu silêncio
e o que restar da voz
impregnados
nos objetos, nas exigências,
nos versos inconclusos
de algum poema.
Deixa – e não te queixes –
amores unilaterais mas puros
para os teus pósteros
rivais
nesta congênere aventura.
Deixa teus livros,
quadros na parede,
os discos de Beethoven,
todos as óperas, inclusive “Aída”:
a tua predileta.
Deixa o teu amor
à música de Mozart,
aos filmes de Carlitos,
ao corpo de Sofia Loren...
Deixa os teus papéis
e até a folha branca
em que não se fixou
a face da palavra
necessária.
TERESA
Quando viste Teresa
pela primeira vez
foi como se a conhecesses
de longo, longo tempo.
Hoje, depois de tanto tempo,
toda vez que vês Teresa
é como se fosse
a primeira vez.
HAICAI
A lua caiu
no chão áspero da rua.
E eu catando estrelas.
NAVIO FANTASMA
Brusca, a barca trafega
nas trevas da existência.
Sem trégua, o timoneiro
avança. E, na dormência
de músculos e artérias,
atinge o magma, o centro
do abismo de existir,
fora de si e dentro.
As velas retorcidas,
a que ventos sucumbes,
nos vendavais da dor,
ao gozo e seus vislumbres?
Há tantos sóis e luas
na árdua travessia
Melhor não fora o porto
que a vida oferecia?
A vida não deságua
em lisos acalantos.
E não floresce a pedra
nas águas de seus prantos?
Ó velas desfraldadas,
de que sonhos se nutrem
a ânsia dos navios,
a fome dos abutres?
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