ITINERÁRIO DO CORPO
A Afonso Felix de Sousa
I
O pequeno lugar predestinado:
cama – lençóis, colchão e travesseiro:
objetos banais pousados sobre
a armação de madeira para dois.
Pequeno apartamento de cidade!
Pequenos corpos e cansados despem-se,
despem roupas, sapatos, conveniências
à pequenina luz que afaga as coisas.
Estão nus, lado a lado, sobre o leito
e se entrelaçam para desafogo
de raivas, lutas, ilusões, sentidos.
Talvez não saibam
por que assim se prendem,
Já cantam sino pelo novo filho!
II
Entre o campo de neve a vida fende-se
barbaramente, para dar passagem
à colheita que vem sem estações:
bicho da terra que se chama homem.
Nove meses guardado e construído
com silêncio, carne, sangue e esperança,
ei-lo que rasga o ovo e se apresenta
disforme, placentário, precioso.
Ela está como o campo após a ceifa.
De seus peitos já mana o claro líquido
onde a vida se côa como um filtro.
Olha o pequeno corpo que se deita
a seu lado, entre o sonho e a realidade,
e, brandamente, diz apenas: - Filho!
III
Infância triste, tempo de castigos
e doces ilusões mas sem brinquedo
que teus olhos encontram nas vitrines
e tua débil mão jamais alcança.
Porém o corpo vai rompendo elástico
pesar do tempo amargo em que floriste.
Teus olhos já se pousam sobre a vida
embora ignorando-lhe a inocência.
Assim, surgindo vens dos alimentos,
cuidados e remédios e o alicerce
da sapiência que são letra e número.
Assim te formas resumido corpo
que será de homem e continuará
brincando em nova trágica maneira.
IV
Resides entre o sonho e coisas ásperas,
a confusão do trágico e a rosa,
a escola, o emprego, o livro clandestino,
a refeição modesta, o sono limitado.
Teu corpo é apenas máquina de sexo
e coração: toda a razão de ser
está na amada, amada inconsistente:
olhos, cabelos, seios, agressivos
somente, mas tu a colocas lá
bem no centro do mundo e lhe declamas
baladas, vossos corpos se aproximam.
Entre comícios, agressões, revoltas,
pressa, atenção, estudo, devaneio,
estás defronte ao mundo e interrogas.
V
A resposta és tu mesmo: corpo de homem,
o sentimento e pensamento de homem,
passo seguro de homem, ombros de homem,
boca, face, palavra e gestos de homem.
O que sabes do mundo! Gestos mágicos
te multiplicam ao calor dos corpos.
Uma coragem funda, o olhar sábio,
avanças com o tempo e o constróis.
A noite existe – não a das carícias,
de sono leve, corpos repousando –
noite pesando sobre cada coisa.
Avanças bloqueado pela Noite
(há muitos, muitos corpos avançando)
e teus passos vão dar na madrugada.
VI
És fogo que se apaga lentamente.
Folhas que vão tombando despem a árvore.
Árvore a quem a seiva foi faltando,
tua missão se acaba e envelheces.
Teus olhos já cansados de aprender
formas, gestos e a grande cor do mundo.
Tua boca já cansada de alimentos,
de beijos, de palavras, de protesto.
Outros vêm substituir tua coragem
com novos braços para a mesma luta,
e passos fortes para o mesmo fim.
Tua hora vem chegando necessária.
O corpo se dissipa. Tua passagem
não terá vermes para devorá-la.
==============================
CONCLUSÃO PARA CONSOLO
Bicho da terra estás apenas morto.
Já a terra de que és bicho te recobre
e uma pequena flor acena, leve,
um pequenino adeus sobre teu túmulo.
Tua mulher jamais esquecerá
tua sólida figura. Nem teus filhos
que em si a reproduzem e prosseguem
tua presença em gestos e palavras.
O tempo que rompeu teu rude corpo
como inverno passando sobre o campo,
não cortou a semente indispensável.
Ele mesmo será propício à nova
árvore forte que sustem o mundo
e reverdece o chão da vida mágica.
Lamentação do quase ex-príncipe
Menino sou do tempo que se acaba
e, consequentemente, sou aquele
para quem tudo que de novo venha
recorda o anterior que mais amava.
Sou filho do ruído das palavras
de que abusava para, sem sentido,
me ver de cores vivas revestido.
Não ter lugar real facilitava
o meu estar entre diversas forças,
neutro. Menos a idéia que o proveito
exerci. Filho do tempo e inculpável,
sempre exaltei gratuitas circunstâncias.
Não sei se me defendo, se me odeio,
se iludo o meu saber-me e odiar-me.
============================
PAISAGEM
Eis aqui um cão
e defronte um homem:
ambos o pão
da fome comem.
Olha o cão a vida
triste das pedras
(coitado do cão
que não pasta ervas)
e por fim já morde
o osso das trevas.
Olha a vida o homem
com saudade amarga.
Os olhos do homem
já não olham nada.
Só, em seus ouvidos
de carne fanada,
teimam os latidos
da morte e do nada.
=============================
A MESA
A mesa tem somente o que precisa
para estar, circundada de cadeiras,
fazendo parte da vida familiar
entre alimentos, flores e conversa.
Escura mesa gravemente muda
que, parecendo alheia a quanto a cerca,
encerra no silêncio toda a ciência
da idade desdobrando gerações.
olho de cerne, comovido e frio!
indiferente coração parado
entre o grito infantil e o olhar cansado.
Mistério de madeira rodeado
por cadeiras, lembranças, utensílios,
e um leve odor de tempo alimentício.
=======================
ORDEM DO DIA
Há que remover a neve desta folha de papel!
Breve escutaremos o motor dos sentimentos
enchendo a manhã com sua algazarra. Eis a máquina se
movimentando! Da esquerda para a direita vão surgindo
os sulcos onde caem as sementes
da Emoção.
Na vasta planície
desvirginada
germina já o pólen da lírica.
Um vento de humana condição
(oh arte, coisa social!) faz voar até tuas mãos
esta lavoura mental.
Como bom descendente de um povo de camponeses
medes o rigor da semeadura,
sonhas as chuvas na raiz, o futuro pão...
Pão sonoro!
De repente,
as aves da poesia, que se alimentavam no campo semeado, rompem vôo para o céu de tua inteligência
e desfecham seu canto
maravilhoso contra tua surpresa.
Teu coração é a corda do violino!
Eis a geração do poema:
sua mecânica, seu plantio,
sua colheita.
Estás diante de uma safra eterna!
===========================
O HOMEM EM PELE E OSSO
A pele é superfície,
os ossos são entranha.
A pele é o que se vê,
os ossos o que escapa.
A pele é uma casca,
os ossos uma safra.
A pele é entrega,
o osso é arma.
A pele é palma,
o osso é clava.
A pele é a pintura,
os ossos são a casa.
A pele é o acidente,
o osso o permanente.
A pele são as nuvens,
os ossos são a água.
A pele são os musgos,
os ossos são as montanhas.
A pele é o agora,
os ossos são milênios.
A pele é um orvalho,
os ossos são invernos.
==================================
ROMANCEIRO DA CIDADE DE SÃO LUÍS
Pré-história
Na solidão do chão sem tempo
há uma ilha de expectativa,
entre dois rios, como braços,
suavemente recolhida.
Verdes copas e o vento nelas
e os cachos das frutas nativas
e as alvas coxas de suas praias
ao sol do trópico estendidas.
Vizinho o mar com sua espuma,
seu horizonte imaculado,
com sua raiva e sua ânsia,
com seu verde pulmão salgado,
misturando sua maresia
com o acre cheio do mato.
Vizinho o mar com seu mistério
e o além por ser desvendado.
o mar de onde, por milênios,
tudo que vem é rumor longo,
surdo ou cavo, manso ou severo,
cantochão grave, som redondo
contra pedras, conchas, areias,
interminável apelo em som do
horizonte que não revela
o mistério profundo e abscôndito.
=================================
IMAGEM
Vista do mar, a cidade,
subindo suas ladeiras,
parece humilde presépio
levantado por mãos puras:
nimbada de claridade,
ponteia velhos telhados
com as torres das igrejas
e altas copas de palmeiras.
Seus dois rios, como braços
cingem-lhe a doce figura.
Sobre a paz de sua imagem
flui a música do tempo,
cresce o musgo dos telhados
e a umidade das paredes
escorre pelos sobrados
o amargo sal dos invernos.
Tudo é doce e até parece
que vemos só o animado
contorno de iluminura
e não a realidade:
vista do mar, a cidade
parece humilde presépio
levantado por mãos puras
e em sua simplicidade
esconde glórias passadas,
sonha grandezas futuras.
========================
POEMA
Um cão ladrou
na noite obscura
tremores frios
de inanição
A mulher magra
esperou cansada
que a carne exausta
fosse chamariz
Poucos sexos jovens
se investigaram
muitos não conseguiram
fugir à frustração
Alguns descansaram
outros se diluíram
o caixote de lixo
esperou esperou
]Depois rompeu
a madrugada.
===============================
SONETO DO VIETNÃ
A bomba de napalm está fritando
a carne espedaçada no sudoeste.
Relincham os canhões e aves uivando
sobrevoam os pântanos da peste.
A morte cultivada, amontoando
vai cadáveres bons para a manchete:
é a vida, a leste e a oeste prosperando
no negócio da morte que floresce.
E quantos mais prodígios desabrocham,
quando o século atinge o último quarto
na véspera intranquila desse parto
do futuro obscuro, a que se imolam
a puta de Saigon, amarga e nua,
e o astronauta pisando o chão da lua!
=========================
CONSUMO & DOR (fragmentos)
Como é bela
a favela
Azul e amarela;
que ruído
colorido
da bala no ouvido;
que floração
de gozo-ação
na prostituição;
que doçura
na cobertura
de jornal em noite pura;
que inaudita
arquitetura
da palafita;
que aconchego
de sossego
do desemprego;
como consola
a esmola...!
Quem é este pobre
animal que pasta
apenas angústia
e paz recusada?
Quem é este pobre
bicho cuja erva
que rói é um veneno
em que se alimenta?
Quem é este ser
já tão diferente
de quanto seria
se fosse existente
Ó pergunta vã
que ninguém responde:
é o filho da manhã
padecendo a noite,
é a vida florindo
sua própria morte.
====================
OS TELHADOS
Sobre este campo vermelho
que o tempo pasta,
o passado é lento rebanho
retouçando nuvens brancas.
Andorinhas seculares
ondeiam no verão supremo
e o musgo denuncia aos ares
que o tempo se fez eterno
Torna viagem
Parasse o rio onde foi fonte,
ficasse a fonte onde foi nuvem,
voltasse o mar onde foi rio
para que o rio fosse chuva...
Assim esta rosa de outono
que já vai sendo minha vida,
seria folha, caule, seiva
e raiz da infância perdida!
=============================
INEVITÁVEL
Insaciavelmente ela te espera
carnívora em seu furor uterino.
Movida pela fome de pantera
vigia teus descuidos de menino.
De numerosas tramas tece a espera
e os becos sem saída do destino
e em seu macio pêlo esconde a fera,
a fúria, o enredo e o negro desatino.
Sempre atenta te espreita desarmado,
pronta a te desferir garra ferina
para sorver-te a vida àquela hora
insuspeita, fatal e inevitada.
Pois, se lhe foges, ela te fascina
E, se te entregas, ela te devora.
============================
A PORTA ESTREITA
Entre estar vivo e a morte
um interstício apenas, porém se
do próprio sono limitado ao permanente
é tão profundo o limiar de incógnita!
Como saber no emaranhado
de voz, silêncio, gesto e rigidez,
o tempo inicial da irreversível
ausência e o derradeiro arfar do peito?
Como saber onde começa o adeus,
onde parou o olhar, onde os ouvidos
desceram véus imateriais ou quando
os sentidos, ornados de indiferença,
caminham já na outra margem frios
a este rumor de vida que não cessa?
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A Afonso Felix de Sousa
I
O pequeno lugar predestinado:
cama – lençóis, colchão e travesseiro:
objetos banais pousados sobre
a armação de madeira para dois.
Pequeno apartamento de cidade!
Pequenos corpos e cansados despem-se,
despem roupas, sapatos, conveniências
à pequenina luz que afaga as coisas.
Estão nus, lado a lado, sobre o leito
e se entrelaçam para desafogo
de raivas, lutas, ilusões, sentidos.
Talvez não saibam
por que assim se prendem,
Já cantam sino pelo novo filho!
II
Entre o campo de neve a vida fende-se
barbaramente, para dar passagem
à colheita que vem sem estações:
bicho da terra que se chama homem.
Nove meses guardado e construído
com silêncio, carne, sangue e esperança,
ei-lo que rasga o ovo e se apresenta
disforme, placentário, precioso.
Ela está como o campo após a ceifa.
De seus peitos já mana o claro líquido
onde a vida se côa como um filtro.
Olha o pequeno corpo que se deita
a seu lado, entre o sonho e a realidade,
e, brandamente, diz apenas: - Filho!
III
Infância triste, tempo de castigos
e doces ilusões mas sem brinquedo
que teus olhos encontram nas vitrines
e tua débil mão jamais alcança.
Porém o corpo vai rompendo elástico
pesar do tempo amargo em que floriste.
Teus olhos já se pousam sobre a vida
embora ignorando-lhe a inocência.
Assim, surgindo vens dos alimentos,
cuidados e remédios e o alicerce
da sapiência que são letra e número.
Assim te formas resumido corpo
que será de homem e continuará
brincando em nova trágica maneira.
IV
Resides entre o sonho e coisas ásperas,
a confusão do trágico e a rosa,
a escola, o emprego, o livro clandestino,
a refeição modesta, o sono limitado.
Teu corpo é apenas máquina de sexo
e coração: toda a razão de ser
está na amada, amada inconsistente:
olhos, cabelos, seios, agressivos
somente, mas tu a colocas lá
bem no centro do mundo e lhe declamas
baladas, vossos corpos se aproximam.
Entre comícios, agressões, revoltas,
pressa, atenção, estudo, devaneio,
estás defronte ao mundo e interrogas.
V
A resposta és tu mesmo: corpo de homem,
o sentimento e pensamento de homem,
passo seguro de homem, ombros de homem,
boca, face, palavra e gestos de homem.
O que sabes do mundo! Gestos mágicos
te multiplicam ao calor dos corpos.
Uma coragem funda, o olhar sábio,
avanças com o tempo e o constróis.
A noite existe – não a das carícias,
de sono leve, corpos repousando –
noite pesando sobre cada coisa.
Avanças bloqueado pela Noite
(há muitos, muitos corpos avançando)
e teus passos vão dar na madrugada.
VI
És fogo que se apaga lentamente.
Folhas que vão tombando despem a árvore.
Árvore a quem a seiva foi faltando,
tua missão se acaba e envelheces.
Teus olhos já cansados de aprender
formas, gestos e a grande cor do mundo.
Tua boca já cansada de alimentos,
de beijos, de palavras, de protesto.
Outros vêm substituir tua coragem
com novos braços para a mesma luta,
e passos fortes para o mesmo fim.
Tua hora vem chegando necessária.
O corpo se dissipa. Tua passagem
não terá vermes para devorá-la.
==============================
CONCLUSÃO PARA CONSOLO
Bicho da terra estás apenas morto.
Já a terra de que és bicho te recobre
e uma pequena flor acena, leve,
um pequenino adeus sobre teu túmulo.
Tua mulher jamais esquecerá
tua sólida figura. Nem teus filhos
que em si a reproduzem e prosseguem
tua presença em gestos e palavras.
O tempo que rompeu teu rude corpo
como inverno passando sobre o campo,
não cortou a semente indispensável.
Ele mesmo será propício à nova
árvore forte que sustem o mundo
e reverdece o chão da vida mágica.
Lamentação do quase ex-príncipe
Menino sou do tempo que se acaba
e, consequentemente, sou aquele
para quem tudo que de novo venha
recorda o anterior que mais amava.
Sou filho do ruído das palavras
de que abusava para, sem sentido,
me ver de cores vivas revestido.
Não ter lugar real facilitava
o meu estar entre diversas forças,
neutro. Menos a idéia que o proveito
exerci. Filho do tempo e inculpável,
sempre exaltei gratuitas circunstâncias.
Não sei se me defendo, se me odeio,
se iludo o meu saber-me e odiar-me.
============================
PAISAGEM
Eis aqui um cão
e defronte um homem:
ambos o pão
da fome comem.
Olha o cão a vida
triste das pedras
(coitado do cão
que não pasta ervas)
e por fim já morde
o osso das trevas.
Olha a vida o homem
com saudade amarga.
Os olhos do homem
já não olham nada.
Só, em seus ouvidos
de carne fanada,
teimam os latidos
da morte e do nada.
=============================
A MESA
A mesa tem somente o que precisa
para estar, circundada de cadeiras,
fazendo parte da vida familiar
entre alimentos, flores e conversa.
Escura mesa gravemente muda
que, parecendo alheia a quanto a cerca,
encerra no silêncio toda a ciência
da idade desdobrando gerações.
olho de cerne, comovido e frio!
indiferente coração parado
entre o grito infantil e o olhar cansado.
Mistério de madeira rodeado
por cadeiras, lembranças, utensílios,
e um leve odor de tempo alimentício.
=======================
ORDEM DO DIA
Há que remover a neve desta folha de papel!
Breve escutaremos o motor dos sentimentos
enchendo a manhã com sua algazarra. Eis a máquina se
movimentando! Da esquerda para a direita vão surgindo
os sulcos onde caem as sementes
da Emoção.
Na vasta planície
desvirginada
germina já o pólen da lírica.
Um vento de humana condição
(oh arte, coisa social!) faz voar até tuas mãos
esta lavoura mental.
Como bom descendente de um povo de camponeses
medes o rigor da semeadura,
sonhas as chuvas na raiz, o futuro pão...
Pão sonoro!
De repente,
as aves da poesia, que se alimentavam no campo semeado, rompem vôo para o céu de tua inteligência
e desfecham seu canto
maravilhoso contra tua surpresa.
Teu coração é a corda do violino!
Eis a geração do poema:
sua mecânica, seu plantio,
sua colheita.
Estás diante de uma safra eterna!
===========================
O HOMEM EM PELE E OSSO
A pele é superfície,
os ossos são entranha.
A pele é o que se vê,
os ossos o que escapa.
A pele é uma casca,
os ossos uma safra.
A pele é entrega,
o osso é arma.
A pele é palma,
o osso é clava.
A pele é a pintura,
os ossos são a casa.
A pele é o acidente,
o osso o permanente.
A pele são as nuvens,
os ossos são a água.
A pele são os musgos,
os ossos são as montanhas.
A pele é o agora,
os ossos são milênios.
A pele é um orvalho,
os ossos são invernos.
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ROMANCEIRO DA CIDADE DE SÃO LUÍS
Pré-história
Na solidão do chão sem tempo
há uma ilha de expectativa,
entre dois rios, como braços,
suavemente recolhida.
Verdes copas e o vento nelas
e os cachos das frutas nativas
e as alvas coxas de suas praias
ao sol do trópico estendidas.
Vizinho o mar com sua espuma,
seu horizonte imaculado,
com sua raiva e sua ânsia,
com seu verde pulmão salgado,
misturando sua maresia
com o acre cheio do mato.
Vizinho o mar com seu mistério
e o além por ser desvendado.
o mar de onde, por milênios,
tudo que vem é rumor longo,
surdo ou cavo, manso ou severo,
cantochão grave, som redondo
contra pedras, conchas, areias,
interminável apelo em som do
horizonte que não revela
o mistério profundo e abscôndito.
=================================
IMAGEM
Vista do mar, a cidade,
subindo suas ladeiras,
parece humilde presépio
levantado por mãos puras:
nimbada de claridade,
ponteia velhos telhados
com as torres das igrejas
e altas copas de palmeiras.
Seus dois rios, como braços
cingem-lhe a doce figura.
Sobre a paz de sua imagem
flui a música do tempo,
cresce o musgo dos telhados
e a umidade das paredes
escorre pelos sobrados
o amargo sal dos invernos.
Tudo é doce e até parece
que vemos só o animado
contorno de iluminura
e não a realidade:
vista do mar, a cidade
parece humilde presépio
levantado por mãos puras
e em sua simplicidade
esconde glórias passadas,
sonha grandezas futuras.
========================
POEMA
Um cão ladrou
na noite obscura
tremores frios
de inanição
A mulher magra
esperou cansada
que a carne exausta
fosse chamariz
Poucos sexos jovens
se investigaram
muitos não conseguiram
fugir à frustração
Alguns descansaram
outros se diluíram
o caixote de lixo
esperou esperou
]Depois rompeu
a madrugada.
===============================
SONETO DO VIETNÃ
A bomba de napalm está fritando
a carne espedaçada no sudoeste.
Relincham os canhões e aves uivando
sobrevoam os pântanos da peste.
A morte cultivada, amontoando
vai cadáveres bons para a manchete:
é a vida, a leste e a oeste prosperando
no negócio da morte que floresce.
E quantos mais prodígios desabrocham,
quando o século atinge o último quarto
na véspera intranquila desse parto
do futuro obscuro, a que se imolam
a puta de Saigon, amarga e nua,
e o astronauta pisando o chão da lua!
=========================
CONSUMO & DOR (fragmentos)
Como é bela
a favela
Azul e amarela;
que ruído
colorido
da bala no ouvido;
que floração
de gozo-ação
na prostituição;
que doçura
na cobertura
de jornal em noite pura;
que inaudita
arquitetura
da palafita;
que aconchego
de sossego
do desemprego;
como consola
a esmola...!
Quem é este pobre
animal que pasta
apenas angústia
e paz recusada?
Quem é este pobre
bicho cuja erva
que rói é um veneno
em que se alimenta?
Quem é este ser
já tão diferente
de quanto seria
se fosse existente
Ó pergunta vã
que ninguém responde:
é o filho da manhã
padecendo a noite,
é a vida florindo
sua própria morte.
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OS TELHADOS
Sobre este campo vermelho
que o tempo pasta,
o passado é lento rebanho
retouçando nuvens brancas.
Andorinhas seculares
ondeiam no verão supremo
e o musgo denuncia aos ares
que o tempo se fez eterno
Torna viagem
Parasse o rio onde foi fonte,
ficasse a fonte onde foi nuvem,
voltasse o mar onde foi rio
para que o rio fosse chuva...
Assim esta rosa de outono
que já vai sendo minha vida,
seria folha, caule, seiva
e raiz da infância perdida!
=============================
INEVITÁVEL
Insaciavelmente ela te espera
carnívora em seu furor uterino.
Movida pela fome de pantera
vigia teus descuidos de menino.
De numerosas tramas tece a espera
e os becos sem saída do destino
e em seu macio pêlo esconde a fera,
a fúria, o enredo e o negro desatino.
Sempre atenta te espreita desarmado,
pronta a te desferir garra ferina
para sorver-te a vida àquela hora
insuspeita, fatal e inevitada.
Pois, se lhe foges, ela te fascina
E, se te entregas, ela te devora.
============================
A PORTA ESTREITA
Entre estar vivo e a morte
um interstício apenas, porém se
do próprio sono limitado ao permanente
é tão profundo o limiar de incógnita!
Como saber no emaranhado
de voz, silêncio, gesto e rigidez,
o tempo inicial da irreversível
ausência e o derradeiro arfar do peito?
Como saber onde começa o adeus,
onde parou o olhar, onde os ouvidos
desceram véus imateriais ou quando
os sentidos, ornados de indiferença,
caminham já na outra margem frios
a este rumor de vida que não cessa?
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