sexta-feira, 22 de maio de 2009

Gérard de Nerval (Poesias)



DÉLFICA

Conheces tu, Dafné, este cantar de outrora
que junto do sicômoro ou sob os loureiros,
ou mirtos, oliveiras, trémulos salgueiros,
este cantar de amor... que volta sempre e agora?

Reconheces o Templo - peristilo imenso -
e os ácidos limões que teus dentes mordiam,
é a gruta onde imprudentes ébrios se perdiam
e do dragão vencido dorme o semen denso?

Hão-de voltar os deuses que saudosa choras!
O tempo há-de trazer da antiguidade as horas;
a terra estremeceu de um ar de profecia...

Todavia a sibila de rosto latino
adormecida à sombra está de Constantino
e nada perturbou a severa arcaria.

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VERSOS DE OURO

Pensando livre, julgas que nenhum outro ente
Pensa num mundo em que tudo jorra a vida?
És livre de dispor da força em ti contida,
Mas do que tu decides é o Universo ausente.

Respeita no animal um espírito agente.
Em cada flor uma alma espera ser sentida.
Um mistério de amor tem nos metais guarida.
Tudo é sensível. Tudo sobre ti potente.

Teme, no muro cego, um olhar que te fita.
A tudo o que é matéria um Verbo está ligado.
Não faças dela nunca uma coisa perjura.

Num ser obscuro às vezes há um deus que habita.
E, como um olho nasce em pálpebras fechado,
Sob as rugas das pedras uma alma se apura.
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A PRIMA

Tem seus prazeres o Inverno; e, ao domingo, às vezes,
se o sol pousa na neve dos jardins burgueses,
a gente sai com a prima para passear...
- E não se esqueçam lá da hora do jantar -

- é o que a mãe diz. E quando nós já vimos todos
os vestidos em flor passando entre o arvoredo,
a menina tem frio... e lembra com bons modos
como a névoa da tarde vem chegando cedo.

Voltamos para casa, recordando o dia
que tão rápido foi... e que tão pouco ardia...
E do fundo da escada cheira-se esfomeado
o perfume, lá em cima, do peru assado.
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O Desditado

Eu sou o tenebroso, - o viúvo, - o inconsolado
Príncipe d'Aquitânia, em triste rebeldia:
É morta a minha estrela, - e no meu constelado
Ataúde há o negror, sol da melancolia.
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Duas vezes o Aqueronte, - é o grande feito meu, -
Transpus a modular, nesta lira de Orfeu,
Os suspiros da santa e os clamores da fada...
Gerard de Nerval.
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A vida pulsa em cada tom, e ouço
palpitando-te o peito a dor e o luto
alaúde lilás. O clarim soa
enquanto o verso, livre, te machuca.

Viúvo obscuro tanges tua corda
na vaza deste verso, casa oca,
e plange o bandolim, perícia louca,
poeta dos silentes que não dormem.

Mas és o desditado, és o bastardo.
Cavaleiro do tempo em espaço vivo
invades, berro bárbaro na boca

o que não abandonas, deserdado,
mesmo se vendavais te varram a vida,
e o grito da tua chaga purgue e lave

a tua voz extrema de cantor.
Se lá chegares! É que jamais chegas,
jogo de júbilo face ao tormento.
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