Artigo do prof. Teotônio Marques Filho
Parte I = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/05/joao-guimaraes-rosa-sagarana-parte-i.html
Parte II = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/05/joao-guimaraes-rosa-sagarana-parte-ii.html
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6. São Marcos
Narrado também na primeira pessoa, “São Marcos” é outro conto de linha trágica e esta sob o signo da superstição:
Izé ou José, o narrador, era um homem que não acreditava em feiticeiro: “Naquele tempo eu morava no Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros” (221). Vivia a fustigar João Mangalô, feiticeiro de fama e escama naqueles rincões. Nhã Rita, preta cozinheira dele, vivia a adverti-lo:
“- Se o senhor não aceita, é rei no seu; mas abusar não deve”. (224).
E relatava o caso da lavadeira que desfeiteara a velha Cesária e sofrera, de repente, agulhadas inexplicáveis “no pé (lá dela!)”.
Mas ele, sempre incrédulo:
Você deve conhecer os mandamentos do negro... Não sabe? “Primeiro: todo negro é cachaceiro...” “Segundo: todo negro é vagabundo”. “Terceiro: todo negro é feiticeiro...”
Ai, espetado em sua dor-de-dentes, ele passou do riso bobo à carranca de ódio, resmungou, se encolheu para dentro, como um caramujo à cocléia, e ainda bateu com a porta (228)
Depois disso, voltando da missa, encontra com Aurísio Manquitola que lhe narra o caso de Tião Tranjão, que era um sujeito um tanto tolo e burro, e acabou aprendendo a oração de São Marcos que é “sesga, milagrosa e proibida”, com que resolveu os seus problemas conjugais de ter mulher, e esta dormir com os outros.
O narrador vai andando. A natureza ao seu redor atrai as suas vistas. Escreve versos num tronco, e quando lhe faltou inspiração, certa vez, limitou-se a fazer um rol de reis caldeus.
Reconhece que “as palavras têm canto e plumagem”
Perde-se em descrições e cenas que seus olhos vêem:
“E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau - um ponto, um grão, um besouro, um anu, um urubu, um golpe de noite... E escureceu tudo.” (pág. 244)
Uso acentuado da audição. Até os olhos cegos ouvem (“meus olhos o ouvem” - 248). Vaga, sem rumo, pela floresta, para depois defrontar-se com João Mangolô e as vistas que tinham sido amarradas por este:
“- Pelo amor de Deus, Sinhô... Foi brincadeira... Eu costurei o retrato, p’ra explicar ao Sinhô...” (250)
E o narrador conclui com um mundo de cores:
“Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul.” (251)
“São Marcos” é de linha frenética, o que lembra a “Dama Pé-de-Cabra”, de Alexandre Herculano. Aqui está presente o mundo das superstições e feitiçarias que envolvem o homem interiorano.
Outra tese desenvolvida é a da “plumagem e canto das palavras”.
7. “Corpo Fechado”
A técnica narrativa de “Corpo Fechado” é em forma de entrevista. O “doutor”, no decorrer da história, vai entrevistando Manuel Fulô, “um valentão manso e decorativo, como mantença da tradição e para glória do arraial” (281)
O papo começou com o doutor passando em revista os principais nomes de valentões daquelas bandas: José Boi, Desidério Cabaça, Adejalma, “nome bobo, que nem é de santo...” Miligido, que já se aposentara, e o terrível Targino:
“Esse-um é maligno e está até excomungado... Ele é de uma turma de gente sem-que-fazer, que comeram carne e beberam cachaça na frente da igreja, em sexta-feira da Paixão, só p’ra pirraçar o padre e experimentar a paciência de Deus...” (pág. 255)
Esses valentões todos já tinham sido castigados. Só faltava o Targino. Mas o seu fim havia de chegar como chegou para os outros:
“Eles todos já foram castigados: o Roque se afogou numa água rasinha de enxurrada... ele estava de chifre cheio... Gervásio sumiu no mundo, asem deixar rasto... Laurindo, a mulher mesma torou a cabeça dele com um machado, uma noite... foi em janeiro do ano passado... Camilo Matias acabou com mal-de-lázaro... Só quem está sobrando mesmo é o Targino. E o castigo demora, mas não falta...” (pág. 256)
E Manuel Fulô, o entrevistado, vai narrando as suas aventuras entre os ciganos; como os tapeou, uma vez; o seu desejo de possuir uma sela mexicana para a mulinha Beija-Fulô. E então chegamos ao casamento de Manuel da raça dos Peixoto, do que tinha honra e fazia alarde. A noiva era a das Dor.
E aqui é que começa a história propriamente. O Targino aparece e diz assim para o Manuel Fuló:
“- Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor, e venho visitar sua noiva. amanhã.. Já mandei recado, avisando a ela... É um dia só, depois vocês podem se casar... Se você ficar quieto, não te faço nada... Se não... (pág. 275)
Reboliço. Correrias. Movimentação do doutor. E então “a história começa mesmo é aqui”: Antonico das águas, “que tinha alma de pajé” e era “curandeiro-feiticeiro” agora entra na história para “fechar o corpo” de Manuel Fuló, “requisitando agulha-e-linha, um prato fundo, cachaça e uma lata com brasas” (279):
“- Fechei o corpo dele. Não careçam de ter medo, que para arma de fogo eu garanto!...” (280)
E o doutor conclui a história assim:
“E, quando espiei outra vez, vi exato: Targino, fixo, como um manequim, e Manu e Fulô pulando nele e o esfaqueando, pela altura do peito - tudo com rara elegância e suma precisão. Targino girou na perna esquerda, ceifando o ar com a direita; capotou; e desviveu, num átimo. Seu rosto guardou um ar de temor salutar.
- Conheceu, diabo, o que é raça de Peixoto?!” (pág. 281)
“Corpo Fechado” ainda continua a problemática apresentada em “São Marcos”: mundo de feitiçarias e bruxarias.
Além dessa temática, sobressai também a saga dos valentões das gerais, principalmente com o temível Targino, e a saga dos ciganos, muito freqüente no interior.
8. “A Saga dos Bois”
Em “Conversa de Bois”, Guimarães Rosa, procura desenvolver a “psicologia” dos animais o que já se vislumbra em “O Burrinho Pedrês”, também aqui, e com largo uso, explorando “a plumagem e canto das palavras”.
A técnica narrativa é a terceira pessoa, narrado por Manuel Timborna, que é entrevistado pelo autor, que pede para recriar a história:
“- Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco...
- Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja” (283)
E então Manuel Timborna começa a “contar um caso acontecido que se deu”, procurando demonstrar que “boi fala o tempo todo”.
Buscapé, Namorado, Capitão, Brabagato, Dansador, Brilhante, Realejo e Canindé são os protagonistas bovinos da história, que vão na sua marcha lenta, carregando “o peso pesado” do carro-de-bois, carregado de rapaduras e um defunto.
O guia é Tiãozinho, filho do defunto carregado. Vai triste e “babando água dos olhos” (313). Visto pelos bovinos é “o bezerro-de-homem-que-caminha-sempre-na-frente-dos-bois”. (313)
O carreiro, orgulhosão e perverso, é o Agenor Soronho: “o homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta” que vem “trepado no chifre do carro...” (313).
Na sua marcha, os oito bovinos vão conversando. Criticam o modo de vida dos homens, o animal pensante: “É ruim ser boi-de-carro. É ruim viver perto dos homens... As coisas ruins são do homem: tristeza, fome, calor - tudo pensado, é pior...” (290)
Brilhante conta a história do boi Rodapião - “o boi que pensava de homem, o-que-come-de-olho-aberto...” (296, que saiu certa vez, com esse raciocínio silogístico:
... “Cada dia o boi Rodapião falava uma coisa difícil p’ra nós bois. Deste jeito:
- Todo boi é bicho. Nós todos somos bois. Então, nós todos somos bichos!... Estúrdio...” (300)
E porque pensava muito-pensava como o homem - o boi Rodapião tem fim trágico:
“Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira feia e chão solto... Bateu aqui em baixo e berrou triste, porque não pôde se levantar mais do lugar das suas costas...” (308)
Tiãozinho vai relembrando a morte do pai. Tem uma raiva danada do Agenor Soronho que “bate em todos os meninos do mundo: Seu Agenor Soronho é o diabo grande” (314)
O fim é trágico. Deus e o Demo: Agenor Soronho é castigado pelos bois e por Tiãozinho que “pensa quase como nós bois” (314): “A roda esquerda do carro lhe colhera o pescoço.” (317)
Tiãozinho fica como um possesso diante daquela tragédia.
- “Conversa de Bois” procura interpretar a psiquê bovina. É uma história trágica também, e pode ser aproximada de “O Burrinho Pedrês” pela relevância que dá ao animal. Dentro dessa perspectiva está implícita uma crítica ao comportamento do homem, o animal pensante.
Outra temática que me pareceu também bastante nítida no conto é a da oposição entre o Bem e o Mal, onde os maus têm sempre fim trágico, como foi o caso de Seo Agenor Soronho.
9. “A Hora e Vez de Augusto Matraga”
“Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto” (319).
Nhô Augusto foi homem ruim, de muitos pecados e pouca água benta: maltratava a mulher e filha e vivia de pagode com outras, como a tal da Sariema que aparece no começo do conto, mulherzinha com “perna de Manuel-Fonseca, uma fina e outra seca!” (322)
“Estourado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com dívidas enormes. política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando” (324)
E então surge o pior: a mulher foge com outro levando também a filha e os capangas o abandonam, para servir ao Major Consilva, um antigo inimigo da família:
“Assim, quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Esteves, naqueles dois contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas rodadas sem jogar, fazendo umas férias na vida: viagem, mudanças, ou qualquer coisa ensossa, para esperar o cumprimento do ditado: “Cada um tem seus seis meses...” (328)
“Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir” e, de imediato, foi tirar satisfação com o Major. Resultância: os capangas novos e antigos do Major saíram em cima do homem e o arrasaram de pancadas, lançando-o, depois, num despenhadeiro.
Morto, mas não sepultado, ressuscitou pela caridade de um par de pretos que habitava aquelas plagas inóspitas. Cuidam do semimorto: enfaixam-no, pensam-lhe as feridas e Nhô Augusto pede padre:
Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua” (336), conclui o batina, depois de tê-lo confessado e conversado.
Não morre. Regenera-se. E daquele lugar maldito “pegou chão, sem paixão”, juntamente com o par de negros.
“- Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal” E a minha vez há de chegar. P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...” (pág. 337)
Afastado de tudo, isolado do seu antigo mundo procura penitenciar-se de seus pecados.
Aparece, o bando de Seo Joãozinho Bem-Bem, a quem Nhô Augusto dá pousada. Os anjos-da-guarda de ambos combinam-se. Desencontro. Encontro. Deus e Demo. Nhô Augusto encontra de novo com seu Joãozinho Bem-Bem, chefe do bando mais temido daquelas bandas. Um velho pede pelos filhos. Seo Bem-Bem quer vingança. Exterminação. E foi aí que aconteceu a hora e vez de Nhô Augusto, dito Matraga:
“- Êpa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez! (362).
Exterminação total. Mas seu Joãozinho Bem-Bem se sente honrado em ser exterminado por Matraga: “quero acabar sendo amigos...”
E Matraga:
“Feito, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem. Mas agora se arrepende dos pecados, e morre logo como um cristão, que é para gente poder ir juntos...” (pág. 363)
E “com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue”, Augusto Mal ruga morre satisfeito porque teve a sua hora e vez:
“Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mór de salvar as famílias da gente” (pág. 364), comenta a turba agradecida.
“A Hora e Vez de Augusto Matraga” é, sem dúvida, o ápice da criação literária rosiana em Sagarana, dada a tragicidade e epicidade que o conto encerra.
Quatro temáticas me parece bem nítidas:
a) a oposição Deus e o Demo (Bem x Mal);
b) a saga dos cangaceiros e valentões (Joãozinho Bem-Bem);
c) misticismo (Augusto Matraga depois do encontro com o padre);
d) todos têm a sua vez e hora.
Não me parece sem lógica uma aproximação entre “A Hora e Vez de Augusto Matraga” e “O Burrinho Pedrês”: ambos, Augusto Matraga e Sete-de-Ouros, tiveram a sua hora e a sua vez, e dela saíram cobertos de glórias. Não é sem razão que já se disse que os extremos se tocam...
Fabulista? - Não. João é fantasticamente fabuloso!
Findo. Findo o fino fabulista fabuloso. Finririnfinfim...
NOTA: As páginas indicadas referem à nona edição de Sagarana (Rio. 1967)
Fonte:
Parte I = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/05/joao-guimaraes-rosa-sagarana-parte-i.html
Parte II = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/05/joao-guimaraes-rosa-sagarana-parte-ii.html
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6. São Marcos
Narrado também na primeira pessoa, “São Marcos” é outro conto de linha trágica e esta sob o signo da superstição:
Izé ou José, o narrador, era um homem que não acreditava em feiticeiro: “Naquele tempo eu morava no Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros” (221). Vivia a fustigar João Mangalô, feiticeiro de fama e escama naqueles rincões. Nhã Rita, preta cozinheira dele, vivia a adverti-lo:
“- Se o senhor não aceita, é rei no seu; mas abusar não deve”. (224).
E relatava o caso da lavadeira que desfeiteara a velha Cesária e sofrera, de repente, agulhadas inexplicáveis “no pé (lá dela!)”.
Mas ele, sempre incrédulo:
Você deve conhecer os mandamentos do negro... Não sabe? “Primeiro: todo negro é cachaceiro...” “Segundo: todo negro é vagabundo”. “Terceiro: todo negro é feiticeiro...”
Ai, espetado em sua dor-de-dentes, ele passou do riso bobo à carranca de ódio, resmungou, se encolheu para dentro, como um caramujo à cocléia, e ainda bateu com a porta (228)
Depois disso, voltando da missa, encontra com Aurísio Manquitola que lhe narra o caso de Tião Tranjão, que era um sujeito um tanto tolo e burro, e acabou aprendendo a oração de São Marcos que é “sesga, milagrosa e proibida”, com que resolveu os seus problemas conjugais de ter mulher, e esta dormir com os outros.
O narrador vai andando. A natureza ao seu redor atrai as suas vistas. Escreve versos num tronco, e quando lhe faltou inspiração, certa vez, limitou-se a fazer um rol de reis caldeus.
Reconhece que “as palavras têm canto e plumagem”
Perde-se em descrições e cenas que seus olhos vêem:
“E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau - um ponto, um grão, um besouro, um anu, um urubu, um golpe de noite... E escureceu tudo.” (pág. 244)
Uso acentuado da audição. Até os olhos cegos ouvem (“meus olhos o ouvem” - 248). Vaga, sem rumo, pela floresta, para depois defrontar-se com João Mangolô e as vistas que tinham sido amarradas por este:
“- Pelo amor de Deus, Sinhô... Foi brincadeira... Eu costurei o retrato, p’ra explicar ao Sinhô...” (250)
E o narrador conclui com um mundo de cores:
“Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul.” (251)
“São Marcos” é de linha frenética, o que lembra a “Dama Pé-de-Cabra”, de Alexandre Herculano. Aqui está presente o mundo das superstições e feitiçarias que envolvem o homem interiorano.
Outra tese desenvolvida é a da “plumagem e canto das palavras”.
7. “Corpo Fechado”
A técnica narrativa de “Corpo Fechado” é em forma de entrevista. O “doutor”, no decorrer da história, vai entrevistando Manuel Fulô, “um valentão manso e decorativo, como mantença da tradição e para glória do arraial” (281)
O papo começou com o doutor passando em revista os principais nomes de valentões daquelas bandas: José Boi, Desidério Cabaça, Adejalma, “nome bobo, que nem é de santo...” Miligido, que já se aposentara, e o terrível Targino:
“Esse-um é maligno e está até excomungado... Ele é de uma turma de gente sem-que-fazer, que comeram carne e beberam cachaça na frente da igreja, em sexta-feira da Paixão, só p’ra pirraçar o padre e experimentar a paciência de Deus...” (pág. 255)
Esses valentões todos já tinham sido castigados. Só faltava o Targino. Mas o seu fim havia de chegar como chegou para os outros:
“Eles todos já foram castigados: o Roque se afogou numa água rasinha de enxurrada... ele estava de chifre cheio... Gervásio sumiu no mundo, asem deixar rasto... Laurindo, a mulher mesma torou a cabeça dele com um machado, uma noite... foi em janeiro do ano passado... Camilo Matias acabou com mal-de-lázaro... Só quem está sobrando mesmo é o Targino. E o castigo demora, mas não falta...” (pág. 256)
E Manuel Fulô, o entrevistado, vai narrando as suas aventuras entre os ciganos; como os tapeou, uma vez; o seu desejo de possuir uma sela mexicana para a mulinha Beija-Fulô. E então chegamos ao casamento de Manuel da raça dos Peixoto, do que tinha honra e fazia alarde. A noiva era a das Dor.
E aqui é que começa a história propriamente. O Targino aparece e diz assim para o Manuel Fuló:
“- Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor, e venho visitar sua noiva. amanhã.. Já mandei recado, avisando a ela... É um dia só, depois vocês podem se casar... Se você ficar quieto, não te faço nada... Se não... (pág. 275)
Reboliço. Correrias. Movimentação do doutor. E então “a história começa mesmo é aqui”: Antonico das águas, “que tinha alma de pajé” e era “curandeiro-feiticeiro” agora entra na história para “fechar o corpo” de Manuel Fuló, “requisitando agulha-e-linha, um prato fundo, cachaça e uma lata com brasas” (279):
“- Fechei o corpo dele. Não careçam de ter medo, que para arma de fogo eu garanto!...” (280)
E o doutor conclui a história assim:
“E, quando espiei outra vez, vi exato: Targino, fixo, como um manequim, e Manu e Fulô pulando nele e o esfaqueando, pela altura do peito - tudo com rara elegância e suma precisão. Targino girou na perna esquerda, ceifando o ar com a direita; capotou; e desviveu, num átimo. Seu rosto guardou um ar de temor salutar.
- Conheceu, diabo, o que é raça de Peixoto?!” (pág. 281)
“Corpo Fechado” ainda continua a problemática apresentada em “São Marcos”: mundo de feitiçarias e bruxarias.
Além dessa temática, sobressai também a saga dos valentões das gerais, principalmente com o temível Targino, e a saga dos ciganos, muito freqüente no interior.
8. “A Saga dos Bois”
Em “Conversa de Bois”, Guimarães Rosa, procura desenvolver a “psicologia” dos animais o que já se vislumbra em “O Burrinho Pedrês”, também aqui, e com largo uso, explorando “a plumagem e canto das palavras”.
A técnica narrativa é a terceira pessoa, narrado por Manuel Timborna, que é entrevistado pelo autor, que pede para recriar a história:
“- Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco...
- Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja” (283)
E então Manuel Timborna começa a “contar um caso acontecido que se deu”, procurando demonstrar que “boi fala o tempo todo”.
Buscapé, Namorado, Capitão, Brabagato, Dansador, Brilhante, Realejo e Canindé são os protagonistas bovinos da história, que vão na sua marcha lenta, carregando “o peso pesado” do carro-de-bois, carregado de rapaduras e um defunto.
O guia é Tiãozinho, filho do defunto carregado. Vai triste e “babando água dos olhos” (313). Visto pelos bovinos é “o bezerro-de-homem-que-caminha-sempre-na-frente-dos-bois”. (313)
O carreiro, orgulhosão e perverso, é o Agenor Soronho: “o homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta” que vem “trepado no chifre do carro...” (313).
Na sua marcha, os oito bovinos vão conversando. Criticam o modo de vida dos homens, o animal pensante: “É ruim ser boi-de-carro. É ruim viver perto dos homens... As coisas ruins são do homem: tristeza, fome, calor - tudo pensado, é pior...” (290)
Brilhante conta a história do boi Rodapião - “o boi que pensava de homem, o-que-come-de-olho-aberto...” (296, que saiu certa vez, com esse raciocínio silogístico:
... “Cada dia o boi Rodapião falava uma coisa difícil p’ra nós bois. Deste jeito:
- Todo boi é bicho. Nós todos somos bois. Então, nós todos somos bichos!... Estúrdio...” (300)
E porque pensava muito-pensava como o homem - o boi Rodapião tem fim trágico:
“Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira feia e chão solto... Bateu aqui em baixo e berrou triste, porque não pôde se levantar mais do lugar das suas costas...” (308)
Tiãozinho vai relembrando a morte do pai. Tem uma raiva danada do Agenor Soronho que “bate em todos os meninos do mundo: Seu Agenor Soronho é o diabo grande” (314)
O fim é trágico. Deus e o Demo: Agenor Soronho é castigado pelos bois e por Tiãozinho que “pensa quase como nós bois” (314): “A roda esquerda do carro lhe colhera o pescoço.” (317)
Tiãozinho fica como um possesso diante daquela tragédia.
- “Conversa de Bois” procura interpretar a psiquê bovina. É uma história trágica também, e pode ser aproximada de “O Burrinho Pedrês” pela relevância que dá ao animal. Dentro dessa perspectiva está implícita uma crítica ao comportamento do homem, o animal pensante.
Outra temática que me pareceu também bastante nítida no conto é a da oposição entre o Bem e o Mal, onde os maus têm sempre fim trágico, como foi o caso de Seo Agenor Soronho.
9. “A Hora e Vez de Augusto Matraga”
“Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto” (319).
Nhô Augusto foi homem ruim, de muitos pecados e pouca água benta: maltratava a mulher e filha e vivia de pagode com outras, como a tal da Sariema que aparece no começo do conto, mulherzinha com “perna de Manuel-Fonseca, uma fina e outra seca!” (322)
“Estourado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com dívidas enormes. política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando” (324)
E então surge o pior: a mulher foge com outro levando também a filha e os capangas o abandonam, para servir ao Major Consilva, um antigo inimigo da família:
“Assim, quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Esteves, naqueles dois contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas rodadas sem jogar, fazendo umas férias na vida: viagem, mudanças, ou qualquer coisa ensossa, para esperar o cumprimento do ditado: “Cada um tem seus seis meses...” (328)
“Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir” e, de imediato, foi tirar satisfação com o Major. Resultância: os capangas novos e antigos do Major saíram em cima do homem e o arrasaram de pancadas, lançando-o, depois, num despenhadeiro.
Morto, mas não sepultado, ressuscitou pela caridade de um par de pretos que habitava aquelas plagas inóspitas. Cuidam do semimorto: enfaixam-no, pensam-lhe as feridas e Nhô Augusto pede padre:
Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua” (336), conclui o batina, depois de tê-lo confessado e conversado.
Não morre. Regenera-se. E daquele lugar maldito “pegou chão, sem paixão”, juntamente com o par de negros.
“- Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal” E a minha vez há de chegar. P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...” (pág. 337)
Afastado de tudo, isolado do seu antigo mundo procura penitenciar-se de seus pecados.
Aparece, o bando de Seo Joãozinho Bem-Bem, a quem Nhô Augusto dá pousada. Os anjos-da-guarda de ambos combinam-se. Desencontro. Encontro. Deus e Demo. Nhô Augusto encontra de novo com seu Joãozinho Bem-Bem, chefe do bando mais temido daquelas bandas. Um velho pede pelos filhos. Seo Bem-Bem quer vingança. Exterminação. E foi aí que aconteceu a hora e vez de Nhô Augusto, dito Matraga:
“- Êpa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez! (362).
Exterminação total. Mas seu Joãozinho Bem-Bem se sente honrado em ser exterminado por Matraga: “quero acabar sendo amigos...”
E Matraga:
“Feito, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem. Mas agora se arrepende dos pecados, e morre logo como um cristão, que é para gente poder ir juntos...” (pág. 363)
E “com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue”, Augusto Mal ruga morre satisfeito porque teve a sua hora e vez:
“Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mór de salvar as famílias da gente” (pág. 364), comenta a turba agradecida.
“A Hora e Vez de Augusto Matraga” é, sem dúvida, o ápice da criação literária rosiana em Sagarana, dada a tragicidade e epicidade que o conto encerra.
Quatro temáticas me parece bem nítidas:
a) a oposição Deus e o Demo (Bem x Mal);
b) a saga dos cangaceiros e valentões (Joãozinho Bem-Bem);
c) misticismo (Augusto Matraga depois do encontro com o padre);
d) todos têm a sua vez e hora.
Não me parece sem lógica uma aproximação entre “A Hora e Vez de Augusto Matraga” e “O Burrinho Pedrês”: ambos, Augusto Matraga e Sete-de-Ouros, tiveram a sua hora e a sua vez, e dela saíram cobertos de glórias. Não é sem razão que já se disse que os extremos se tocam...
Fabulista? - Não. João é fantasticamente fabuloso!
Findo. Findo o fino fabulista fabuloso. Finririnfinfim...
NOTA: As páginas indicadas referem à nona edição de Sagarana (Rio. 1967)
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