Artigo do prof. Teotônio Marques Filhos
Parte I = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/05/joao-guimaraes-rosa-sagarana-parte-i.html
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5. Técnica Narrativa
Com relação à técnica narrativa de Guimarães Rosa, empregada em Sagarana, vamos destacar alguns itens:
A) Sintaxe Pontilhista
De um modo geral, as descrições de Guimarães (principalmente as descrições) são entrecortadas por frases curtas e rápidas, dando especial atenção à frase nominal. Trata-se de uma sintaxe telegráfica, ou, na expressão de David Hayman, “uma espécie de estenografia literária”.
Destaquemos aqui um exemplo:
“Uma porteira. Mais porteira. Os currais. Vultos de vacas, debandando. A varanda grande. Luzes. Chegamos. Apear”. (182).
A passagem acima é de “Minha Gente” e exemplifica, com clareza, essa sintaxe pontilhista ou telegráfica, freqüente no estilo de Guimarães. É como se o escritor estivesse tomando nota para redigir depois.
Outro exemplo expressivo é este de “Conversa de Bois”, onde a repetição do verbo “passar” no pretérito perfeito, e depois o uso do verbo sumir, sugere a distância em que foram ficando os carreiros que encontram Seo Agenor Soronho:
“Passam. Passaram. Sumiram. O carro aqui rechina mais forte, outra vez” (292).
B) História Entrecortada
Trata-se de um aspecto do estilo de Guimarães decorrente da sua espantosa capacidade de fabulação de que já tratamos em item anterior. Tal técnica parece conferir maior espontaneidade e autenticidade à oralidade que perpassa os seus casos. Um bom exemplo é aquele de “O Burrinho Pedrês”, onde Raymundão, ao mesmo tempo que vai tangendo as reses, conta para Badu, outro vaqueiro, a história trágica do boi Calundu. Volta e meia, Raymundão entrecorta o caso, para cuidar do rebanho ou de uma rês que quer fugir.
C) Reticências
As reticências denotam interrupção do pensamento ou hesitação em enunciá-lo. É recurso muito usado em Sagarana, o que confere ao texto maior autenticidade e expressividade oral. Vejamos um exemplo de “Volta do Marido Pródigo”, na cena final em que o Major Anacleto, chefe político do interior, ficou sem saber o que fazer e o que falar diante das ilustres personalidades que o visitaram inesperadamente.
“- Ah, que honra, mas que minha honra, senhor Doutor Secretário do Interior... Entrar nesta cafua, que menos merece e mais recebe... Esteja à vontade! Se execute! Aqui o senhor é vós... Já jantaram/ ô diacho... Um instantinho, senhor Doutor, se abanquem... Aqui dentro, mando eu - com suas licenças -: mando o Governo se sentar... P’ra um repouso, o café, um licor... O mano Laudônio vai relatar! Ah, mas Suas Excelências fizeram boa viagem?...” (113 e 114).
Também, para interromper e continuar o fio de uma história Guimarães usa as reticências.
Estrutura do Livro
Sagarana (composto de saga + rana) é um livro constituído de nove contos. Muito deles, entretanto, fogem às características do conto, apresentando estrutura ora do romance (cf. “O Burrinho Pedrês”), ora da novela (cf. “A Volta do Marido Pródigo)”.
A Seguir, vamos fazer a apresentação do enredo de cada um deles, comentando o seu conteúdo temático.
1. “O Burrinho Pedrês”
O burrinho Sete-de-Ouros, decrépito, torna-se uma cavalgadura de emergência para um dos vaqueiros do Major Saulo, os quais tinham que transportar uma boiada (quatrocentos e oitenta reses) até uma cidade, donde deverá ser transportada por trem.
Durante a viagem chove muito. Os vaqueiros relatam casos do seu mundo: o caso do boi Calundu que, inexplicavelmente, mata Vadico, filho do Seu Neco Borges; e o caso de Leôncio Madureira, homem herodes, que vendia o gado e depois mandava cercar os boiadeiros na estrada, para matar e tornar a tomar os bois - A conseqüência dessas malvadezas foi que, “quando ele morreu, e os parentes estavam fazendo quarto ao corpo, as vacas de leite começaram a berrar feio, de repente, no curral. Coisa que o garrote preto urrava:
- Madurêra!... Madurêra!...
E as vacas respondiam, caminhando:
- Foi p’r’os infernos!... Foi pr’r’os infernos...!” (pág. 44)
Chegam ao destino. Põem a boiada no trem e retornam sob o comando de Francolim, posto o major ter permanecido na cidade. Uma tragédia paira sobre as cabeças: Silvino quer matar Badu; a escuridão trevosa envolve a noite; a enchente embarga a travessia. Os vaqueiros enfrentam as trevas, com exceção de João Manico e Juca, sendo tragados pela fúria das águas daquela noite sinistra.
Apenas de salvam o Francolim e Badu, o primeiro agarrado à cauda de Sete-de-Ouros, o segundo à crina do prestimoso burrinho que, alquebrado, decrépito, desacreditado, salvara duas vidas humanas.
Em “O Burrinho Pedrês”, primeiro dos nove contos, Guimarães procura mostrar, tendo como pano de fundo o mundo dos vaqueiros, que todos têm a sua hora e sua vez de ser útil. É o caso do burrinho Sete-de-Ouros: “a gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua finura de instinto e inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a choques e maus pisos e, por fim, orientar-se e salvar-se numa cheia onde os cavalos afogam, carregando um bêbado às costas e ainda outro náufrago enclavinhado no rabo” - ressalta Oscar Lopes.
E observe-se que tudo é colocado como coisa do Destino, acontecida por acaso, dentro do espaço de um dia:
“Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas - seis da manhã à meia-noite - nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.” (pág. 4).
E veja-se que as outras histórias contadas no decorrer do conto estão também neste sentido: os caprichos inexplicáveis do Destino que esmaga o homem.
Dentro desse Fatalismo sobressai a hora e vez de Sete-de-Ouros, apenas um burro.
2. A Volta do Marido Prodígio
O marido pródigo é Lalino Salãthiel - Eulálio de Souza Salãthiel, por completo. É homem de muito riso, de muita graça e pouco trabalho:
“Mulatinho levado! Entendo um assim, por ser divertido. E não é de adulador, mais sei que não é covarde. Agrada a gente, porque é alegre e quer ver todo-o-mundo alegre, perto de si. Isso, que remoça. Isso é reger o viver.” (pág. 78).
Mas o que o Lalino queria mesmo era (des)venturar por este mundo, pelo Rio de Janeiro. Deixou a mulher, Maria Rita, entregue (ou vendida) ao Ramiro, um espanhol que há muito a perseguia. Lalino foi. O espanhol ficou. Maria Rita chorou e... depois se acomodou ao espanhol.
No Rio, o marido pródigo logo se enfara da beleza e das beldades: volta o marido pródigo:
“- Quero só ver a cara daquela gente, quando eles me enxergarem!...” (87)
Espanto pasmagórico. Olhos que se arregalam e enregelam. Lalino, o que vendera a mulher, voltara.
Entra na política do Major Anacleto. Faz o diabo. Tudo dentro dos conformes e da paz. Lalino tinha tino e tirocínio. Tinha diplomacia, sim senhor, tinha: “E falando nisso, que magnífico, o senhor Eulálio! Divertira-os! o Major sabia escolher os seus homens. Sim, em tudo o Major estava de parabéns...” (114) - é elogio graúdo. De altas personalidades. Gente do governo.
Final feliz.
Maria Rita volta. O Major aceita. O dia afoita. Falece a (des)ventura. De Lalino. De Maria Rita: “Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com a direção escondida-de-todas-as-coisas-que-devem-depressa-acontecer”. (115).
As eleições estavam ganhas com a volta do marido pródigo: “no brejo - friíssimo e em festa - os sapos continuavam a exultar” (116).
- “A Volta do Marido Pródigo” apresenta também, de forma picaresca, os caprichos do Destino: Lalino, o marido pródigo, dá voltas e desvoltas pela vida, e acaba tudo bem. Com a mulher. Com a política. Consigo mesmo:
“No alto, com broto de brilhos e asterismos tremidos, o jogo de destinos esteve completo. Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com a direção-escondida-de-todas-as-coisas-que-devem-depressa-acontecer.” (pág. 115). O que tem que acontecer, acontece.
3. “Sarapalha”
A ação de “Sarapalha” se desenvolve sobre um monte de ruínas causadas pela maleita: “Ela veio de longe (...) matando muita gente” (117).
E o resultado da calamidade foi a morte e tristeza dos moradores: “os primeiros para o cemitério, os outros por aí afora, por este mundão de Deus” (117).
Numa fazenda em ruínas, “perto do vau da Sarapalha”, Primo Ribeiro, ora em diálogo, ora em monólogo, vai reconstituindo, alquebrado e decrépito pela maleita, a sua história ao Primo Argemiro, uma das poucas pessoas que lhe restaram. Trágica e triste história a do Primo Ribeiro: Luisa, a sua mulher, fugira com outro, deixando-o só com sua maleita: “- P’ra que é que há-de haver mulher no mundo, meu Deus?...” (130) - pondera Primo Argemiro.
Mas ao saber que o Primo Argemiro pretendia-lhe a mulher também, Primo Ribeiro enxota-o da sua presença, e Argemiro dos Anjos sai por aí, perambulando por entre maleitas e belezas, buscando um lugar para cair e morrer:
“- Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p’ra gente deitar no chão e se acabar” (137).
- “Sarapalha” é de linha trágica, o que contrasta com o conto anterior. Mostra não só um mundo em ruínas, ainda fumegando os efeitos da Malária, como a infidelidade feminina com o conceito de honra do sertanejo. São dois mundos em ruínas: a população vitimada pela maleita e o primo Ribeiro sucumbido pela mulher infiel: “a maleita era uma mulher de muita lindeza” (132)
4. O Duelo
O duelo, que não houve propriamente, foi entre Turíbio Todo e Cassiano Gomes. Motivo d’honra: Turíbio encontra, certa vez, voltando a casa “sem contra-aviso”, a mulher “em pleno adultério” com o Cassiano Gomes. O marido chifrado não fez nada. Preferiu agir traiçoeiramente e assim procurou dar finalmência ao desonrador, “baleando-o bem na nuca.”
Quanto à esposa, Dona Silvana, o narrador escreve irônica e humoristicamente:
“Nem por sonhos pensou em exterminar a esposa (Dona Silvana tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta), porque era um cavalheiro, incapaz da covardia de maltratar uma senhora, e porque basta, de sobra, o sangue de uma criatura, para lavar, enxaguar e enxugar a honra mais exigente.” (pág. 142)
Mas enganara-se o Turíbio Todo: “eliminara não o Cassiano Gomes, mas sim o Levindo Gomes, irmão daquele”. Foi exatamente esse engano “que veio pôr dois bons sujeitos, pacatíssimos e pacíficos, num jogo dos demônios, numa comprida complicação”.
Trava-se um comprido duelo: Turíbio fugindo e o outro atrás. E nessa desavença passaram-se muitos meses: “E continuou o longo duelo, e com isso já durava cinco ou cinco meses e meio a correria, monótona e sem desfecho” (148).
Mas, “porque um homem é um homem e não é de ferro, e o seu vício cardíaco começara a dar sinal de si”, Cassiano Gomes voltou para o sossego do arraial e da mulher do Turíbio. Agrava-se o seu mal quando viajava para capturar o assassino que fora para São Paulo. Acaba morrendo nas boas amizades de um tal Antônio, apelidado de Timpim e Vinte-e-Um, “p’r’a-mór-de que nem que a minha mãe teve vinte e um filhos, e eu fui o derradeiro...” (159)
Sabedor da morte do Cassiano, volta, saudoso, Turíbio, todo civilizado e cheio de noves-fora. Espera-o, um pouco além da estação férrea, a garrucha do Timpim. Vinte-e-Um chamado:
“- Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!” (167)
E mata.
A causa do “duelo” foi também a infidelidade amorosa cuja honra o marido queria lavar com sangue (“se o sangue lavasse alguma coisa neste mundo...”). Aqui também entra um pouco de Fatalismo: Voltas e desvoltas e o marido, que matara a pessoa errada, acaba sendo morto por um sujeitinho “caguincho”, incapaz de matar uma galinha: todos têm a sua hora e a sua vez.
Outra temática desenvolvida no conto é a saga dos valentões.
5. Minha gente
A técnica narrativa de “Minha Gente” é a primeira pessoa.
Ao longo do caminho, até a fazenda do tio Emilio, o narrador se perde em descrições várias do mundo que o cerca, ao mesmo tempo que joga xadrez com Santana. São guiados pelo José Malvino, vaqueiro do tio Emilio.
Chegam.
Na fazenda, no convívio de sua gente, o tio Emilio e a prima Maria Irma, o narrador vai contando pormenores da política do tio Emilio, ao mesmo tempo que desenvolve o seu romance-melhor dito idílio - com Maria Irma.
No decorrer dos seus passeios na fazenda, demonstra uma grande admiração pelo homem do campo:
“- Mas, como é que você pode saber isso tudo, José?” (177)
Mas, misturado com a política e com a natureza, o conto concentra-se mesmo é no romance dos dois primos: Maria Irma cada vez mais arredia e arrisca, o narrador cada vez mais apaixonado.
Como em “A Volta do Marido Pródigo”, o desfecho de “Minha Gente” é um autêntico “happy end”: o tio Emílio ganha a política e o destino se incumbe de casar o primo com Armanda, noiva de Ramiro, que, por sua vez, casa-se com Maria lima:
“E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro Gouvêia, dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-E-Bom.” (pág. 219)
“Minha Gente” apresenta uma temática semelhante à de “A Volta do Marido Pródigo”: tudo acaba bem, apesar das voltas que o Destino dá.
Muitas temáticas são desenvolvidas:
a) a saga da política no interior (tio Emilio);
b) a honra sertaneja (morte do Bento Porfírio);
c) os caprichos do Destino (casamento de Armanda com o narrador).
Aliás, esse último aspecto é desenvolvido também num conhecido poema de Drummond:
“João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para a tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história”
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continua = última parte
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Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/sagarana
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