Barrabás, símbolo do homem moderno
(artigo de João Carlos Petrini)
O romance do sueco Fabian Pär Lagerkvist, Barrabás, que ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1952, descreve de maneira sugestiva a dialética que acompanha todo o desenvolvimento da sociedade moderna, entre uma postura religiosa e uma racionalista. A obra apresenta Barrabás, uma figura marginal nos Evangelhos, preso nas masmorras do império romano, condenado à morte e inesperadamente libertado pelo clamor popular, que o preferiu a Jesus.
As personagens são dos primórdios do cristianismo, mas as questões levantadas são tipicamente modernas e a narrativa introduz o leitor no âmago do drama da liberdade diante do Mistério. O romance confirma a tese de Octávio Paz, de 1984, segundo a qual a literatura do século passado, muitas vezes irreligiosa e secularizada, não consegue se afastar do mistério, antes permanece a ele vinculada, como eixo de uma inevitável problemática, com a qual o homem do século XX se vê impelido a confrontar-se, mesmo que de maneira irreverente ou blasfema.
Lagerkvist (1952) apresenta o drama de Barrabás com uma linguagem simples e direta, numa sobriedade elegante, deixando entrever, por trás das cenas descritas, situações e posturas nas quais o leitor pode-se reconhecer. O romance, escrito como anotações sucintas dos acontecimentos relatados, deixa amplos espaços para que o leitor, movido por discretas sugestões, se envolva com a problemática.
Barrabás é apresentado como um bandido, violento e admirador da força, parricida, cioso de sua autonomia. Ele tem sua vida salva graças a Jesus, pois Pilatos o libertou em lugar do carpinteiro nazareno. Barrabás vive por causa de um outro que morreu em seu lugar e ele não sabe por quê. Experimenta uma irresistível urgência de compreender quem é esse por obra do qual está vivo, procurando compreendê-lo no horizonte explicativo de seu mundo, a partir dos critérios e dos valores com os quais está familiarizado. Ele é símbolo do homem moderno, com o qual guarda muitas semelhanças: este também é violento, pois construiu a civilização da qual se gloria ao clamor dos canhões, e é parricida, tendo eliminado o Pai do seu horizonte. O homem moderno reconhece no cristianismo a fonte dos valores que impuseram ao mundo a sua cultura e, como Barrabás, tem necessidade de compreender a origem da qual recebeu tudo o que tem de mais precioso. Procura enquadrar a tradição cristã nos esquemas da racionalidade iluminista mas, ao fazer isso, perde a possibilidade de abrir um verdadeiro diálogo com essa realidade..
Sabendo que Jesus tinha dito que iria ressuscitar ao terceiro dia, o personagem de Lagerkvist se posta perto do túmulo para ver o que iria acontecer. De repente, um clarão deixa-o quase cego por alguns momentos. Em seguida, ele vê o túmulo vazio e encontra uma mulher que exulta de alegria, afirmando que Jesus ressuscitou. De início, ele pensa que está diante de uma situação extraordinária, que poderia explicar o que aconteceu nos últimos dias. Mas, logo em seguida, ele pondera que sua vista ficou ofuscada porque tinha permanecido muito tempo na escuridão da prisão e a primeira luz do dia certamente devia ter produzido aquela cegueira momentânea. E, regozijando-se interiormente por constatar que tudo estava dentro dos padrões da normalidade com os quais estava familiarizado, sentiu pena da mulher que, na sua simplicidade, estava alegre por algo irreal, quase certamente fruto de sua imaginação, sugestionada pelos acontecimentos dos dias anteriores.
Todo o romance é um contínuo suceder-se de idas e vindas entre uma irresistível exigência de saber se Jesus é realmente o Filho de Deus e a confirmação de que tudo corre de acordo com as leis da natureza e segundo as regras do poder. A cada página, ele parece atraído a juntar-se àquelas pessoas que conviveram com Jesus e que são estranhamente fascinantes, mas acaba por prevalecer a distância, sugerida pela visão da realidade à qual está acostumado.
Barrabás entrevista Lázaro, que Jesus ressuscitara, mas não se persuade da divindade do Mestre. A exaltação da humildade e da misericórdia feita pelos cristãos provoca sentimentos de repulsa num homem como ele, admirador da força e da violência. As circunstâncias o levam a uma mina do império romano, onde deve trabalhar amarrado com uma corrente de ferro a um escravo que era discípulo de Jesus. Barrabás fica impressionado pela transformação que observa no rosto do companheiro de desventura quando reza ajoelhado; ele admira a força interior que vê emanar desse homem que parece falar com Deus. Era uma força que Barrabás desconhecia e queria para si. Risca o símbolo de Cristo no verso da placa de identificação dos escravos, como estava na placa do amigo, mas não consegue rezar e chega a considerar tudo uma ilusão, toma as distâncias também desse companheiro e, por fim, o denuncia. É levado a Roma e quando ouve dizer que os cristãos estão tocando fogo na cidade, fica entusiasmado. Quem sabe, eles deram o passo para rebelar-se à prepotência romana e usar a violência para defender-se. Agora, sim, tem algo em comum com essas pessoas e pode fazer parte desse grupo. Ele também, então, começa a atear fogo à cidade.
O romance termina com Barrabás na prisão, junto com os cristãos. Sofre a maior decepção quando descobre que os cristãos negam sua responsabilidade pelo incêndio. O entusiasmo dele devia-se a um equívoco. Eles o reconheceram; a maioria olhava para ele com certa hostilidade, porque o amado Mestre morrera em lugar dele. Ele fica afastado de todos, solitário. Estranhamente, histórias e temperamentos tão distintos continuam entrelaçando-se. Apesar de todas as diferenças, a Barrabás e aos cristãos é reservado um destino semelhante. Com efeito, no final, ele também é crucificado. A cena guarda uma impressionante proximidade e, ao mesmo tempo, a maior distância com o que acontecera com Jesus em Jerusalém: no alto da cruz, ao dar o último suspiro, Barrabás grita: “Nas tuas mãos entrego o meu espírito”, que são palavras quase idênticas às pronunciadas por Jesus. Mas o autor marca a diferença dizendo que Barrabás emitiu o seu grito “dirigindo-se às trevas” e não “ao Pai” como fizera Jesus . Na forma como Barrabás encerra sua aventura terrena, pode-se reconhecer uma alusão ao niilismo, que emerge como a última meta para a qual o homem moderno se encaminha.
Fontes:
PETRINI, João Carlos. Pessoa, Matrimônio, Família: entre Cultura Pós-moderna e Cristianismo. Disponível em http://www.hottopos.com/videtur25/petrini.htm
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