terça-feira, 19 de maio de 2009

Mário de Sá-Carneiro (Dispersão)



I-PARTIDA

Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas aguas certas, eu hesito,
E detenho-me ás vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam refletir.

A minh'alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.

É subir, é subir além dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d'irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.

É suscitar cores endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção d'alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.

Ser coluna de fumo, astro perdido,
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, agua nascente
E arco de ouro e chama distendido...

Asa longínqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de sutil vapor,
Anseia revolta de mistério e odor,
Sombra, vertigem, ascensão--Altura!

E eu dou-me todo neste fim de tarde
Á espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...

Miragem roxa de nimbado encanto
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.

Sei a Distancia, compreendo o Ar;
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo rial e cruz...
. . . . . . . . . . . . . . .

O bando das quimeras longe assoma...
Que apoteose imensa pelos céus!
A cor já não é cor--é som e aroma!
Vem-me saudades de ter sido Deus...
* * * * *

Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro--é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois...


II-ESCAVAÇÃO

Numa ânsia de ter alguma coisa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minh'alma perdida não repousa.

Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente á força de sonhar...

Mas a vitória fulva esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez do fogo...
--Onde existo que não existo em mim?
. . . . . . . . . . . . . . .

Um cemitério falso sem ossadas,
Noites d'amor sem bocas esmagadas
Tudo outro espasmo que principio ou fim...


III-INTER-SONHO

Numa incerta melodia
Toda a minh'alma se esconde.
Reminiscências de Aonde
Perturbam-me em nostalgia...

Manhã d'armas! Manhã d'armas!
Romaria! Romaria!
. . . . . . . . . . . . . . .

Tateio... dobro... resvalo...
. . . . . . . . . . . . . . .

Princesas de fantasia
Desencantam-se das flores...
. . . . . . . . . . . . . . .

Que pesadelo tão bom...
. . . . . . . . . . . . . . .

Pressinto um grande intervalo,
Deliro todas as cores,
Vivo em roxo e morro em som...

IV-ÁLCOOL

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas d'aureola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra alem...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de ouro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d'inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eteriso?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que eu ando delirante -
Manhã tão forte que me anoiteceu.


V-VONTADE DE DORMIR

Fios d'ouro puxam por mim
A soerguer-me na poeira-
Cada um para o seu fim,
Cada um para o seu norte...
. . . . . . . . . . . . . . .

--Ai que saudade da morte...
. . . . . . . . . . . . . . .

Quero dormir... ancorar...
. . . . . . . . . . . . . . .

Arranquem-me esta grandeza!
--Pra que me sonha a beleza,
Se a não posso transmigrar?...


VI-DISPERSÃO

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não tem bem-estar nem família).

O pobre moço das ansias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso tambem
Que te abismaste nas ansias.

A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim,
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca dourada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde dourada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

E sinto que a minha morte--
Minha dispersão total--
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu ultimo dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e alem me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

E tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço...
. . . . . . . . . . . . . . .

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...


VII-ESTÁTUA FALSA

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minh'alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu emano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distancia.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...


VIII-QUASI

Um pouco mais de sol--eu era brasa,
Um pouco mais de azul--eu era alem.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho--ó dor!--quasi vivido...

Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o principio e o fim--quasi a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
--Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim...--
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos d'alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ansias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol--vejo-as cerradas;
E mãos d'heroi, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num impeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
. . . . . . . . . . . . . . .

Um pouco mais de sol--e fôra brasa,
Um pouco mais de azul--e fora alem.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Paris 1913--maio 13.

IX-COMO EU NÃO POSSUO

Olho em volta de mim. Todos possuem
Um afeto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ansias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse--ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...

Castrado d'alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
--Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...
* * * * *

Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranha-la nua,
Bebê-la em espasmos d'harmonia e cor!...

Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim--ó ânsia!--eu a teria...

Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo d'extases dourados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...

De embate ao meu amor todo me rio,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.


X-ALEM-TEDIO

Nada me expira já, nada me vive-
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim d'alma esquecida,
Dormir em paz num leito d'hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
Á força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei á dor,
Pois tudo me ruíu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silencio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tedio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...


XI-RODOPIO

Volteiam dentro de mim,
Em rodopio, em novelos,
Milagres, uivos, castelos,
Forcas de luz, pesadelos,
Altas torres de marfim.

Ascendem hélices, rastros...
Mais longe coam-me sóis;
Há promontórios, faróis,
Upam-se estátuas d'herói,
Ondeiam lanças e mastros.

Zebram-se armadas de cor,
Singram cortejos de luz,
Ruem-se braços de cruz,
E um espelho reproduz,
Em treva, todo o esplendor...

Cristais retinem de medo,
Precipitam-se estilhaços,
Chovem garras, manchas, laços...
Planos, quebras e espaços
Vertiginam em segredo.

Luas d'ouro se embebedam,
Rainhas desfolham lírios;
Contorcionam-se círios,
Enclavinham-se delírios.
Listas de som enveredam...

Virgula-se aspas em vozes,
Letras de fogo e punhais;
Há missas e bacanais,
Execuções capitais,
Regressos, apoteoses.

Silvam madeixas ondeantes,
Pungem lábios esmagados,
Há corpos emaranhados,
Seios mordidos, golfados,
Sexos mortos d'anseantes...

(Há incenso de esponsais,
Há mãos brancas e sagradas,
Há velhas cartas rasgadas,
Há pobres coisas guardadas--
Um lenço, fitas, dedais...)

Há elmos, troféus, mortalhas,
Emanações fugidias,
Referências, nostalgias,
Ruínas de melodias,
Vertigens, erros e falhas.

Há vislumbres de não-ser,
Rangem, de vago, neblinas;
Fulcram-se poços e minas,
Meandros, pauis, ravinas
Que não ouso percorrer...

Há vácuos, há bolhas d'ar,
Perfumes de longes ilhas,
Amarras, lemes e quilhas--
Tantas, tantas maravilhas
Que se não podem sonhar!...


XII-A QUEDA

E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por fixa-la
E giro até partir... Mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência.

Se acaso em minhas mãos fica um pedaço d'ouro,
Volve-se logo falso... ao longe o arremesso...
Eu morro de desdém em frente dum tesouro,
Morro á mingua, de excesso.

Alteio-me na cor á força de quebranto,
Estendo os braços d'alma--e nem um espasmo venço!...
Peneiro-me na sombra--em nada me condenso...
Agonias de luz eu vibro ainda entanto.

Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,
--Vencer ás vezes é o mesmo que tombar--
E como inda sou luz, num grande retrocesso,
Em raivas ideais, ascendo até ao fim:
Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...
. . . . . . . . . . . . . . .

Tombei...
E fico só esmagado sobre mim!...

Paris 1913--maio 8.
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Fonte:
SÁ-CARNEIRO, Mario de. Dispersão. Doze poesias. Lisboa: Tipografia do Comercio, 1914

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