quinta-feira, 7 de maio de 2009

Alcides Werk (Caldeirão Poético do Amazonas)



DAS FRONTEIRAS

Na cidade onde eu vivo de [lembranças
existem muitas pessoas
que só conhecem a rua principal
e a grande praça da igreja,
onde há passeios laterais, flores e [um obelisco.
Tecem suas vidas numa rotina agradável
que lhes assegura a paz
que transmitirão aos seus descendentes
como uma herança legítima da palavra de Deus.

(Creio que é um costume de muitas gerações,
pois todos possuem verdades profundas e inabaláveis).

Nas minhas tardes vazias,
enquanto o céu não me espera
por total falta de méritos,
atravesso essas fronteiras
à procura de outras vidas,
e quando retorno à casa
trago a alma pesada de canções amargas.

Mas se ergo a voz uma vez,
e canto um canto rebelde
num gesto forte de amor,
todos me julgam um hostil estrangeiro.

Quando se esgotar o meu tempo de luta,
construírei minha morada entre árvores sadias e simples,
e assistirei em silêncio
força do tempo destruindo as fronteiras.
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DA NOITE DO RIO

Nesta noite sem medida
eu todo banhado em sombras
fugi de casa, fugi
para o branco desta praia,
como se a aurora que busco
neste rio se afogou.

Preciso acordar o rio
que está cansado de viagens
para ver se me alivio
da morte que trago em mim
com falas de cobras-grandes
e de mortos pescadores
que fazem parte do rio
e estão assim como estou.

No céu repleto de nuvens
há nuvens cheias de chuva:
por que não chove? Quisera
molhar-me dentro da noite,
tremer de fome e de frio
por remissão dos meus males
deixar meu corpo vazio
guardando o castelo inútil
e partir buscando a aurora
para que venha depressa
banhar as águas do rio
e minha face marcada
dos ventos com que lutei.
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ESTUDOS

VI

O amargo deste sal que me alimenta
agora, eu mesmo o consegui catando
abismos nesse mar desconhecido
que o tempo me mostrou depois de mim.

Este sabor estranho de distância
que vivo a cada hora e que me envolve,
vem da vida que vi nessa voragem.
Sei, agora, que após a ronda inútil

por além dos limites do meu nada,
voltamos mais vazios, eu e o barco
que construí para guardar tesouros.

No regresso noturno, cumpro o gesto
de buscar o local, em cada porto
onde possa esconder um sonho morto.
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DA OPÇÃO

Um belo mundo
de muitos lagos
de muitos rios.

Um belo mundo
de muitas matas
de muitas vidas
elementares.

Um belo mundo
de muitas lendas
de muitas mortes
antecipadas.

Velhas estórias
de água e florestas.

O homem e a terra.

A terra cansando
dos anos compridos
de extrativismo
na selva
no rio
na rua
na mente.

O homem cansado
de andar pelo tempo
sozinho sozinho
no meio da mata
na beira do rio
à margem da vida.
Velhas estórias
de água e florestas.

O homem e a terra.

­- Eu canto para o homem.
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DAS ÁGUAS GRANDES

o barco passando e a onda molhando
o menino molhado, na porta da frente.
O homem doente
deitado na rede
com os olhos cansados de espanto e de mágoa
de ver tanta água
de ver tanta água
bebendo do sangue, roendo as raízes
de tudo o que fez.
Na estreita maromba,
os bichos chorando de fome e de frio,
com medo do rio
com medo do rio que cresce outra vez.

(Quando eu for Presidente,
de amplos e amorosíssimos poderes,
decretarei,
sem visto do congresso,
nem processo,
canonizando santos nacionais
os mártires da enchente.
Convocarei um exército de anjos
para domar o rio e o desvario
dos prováveis dilúvios anuais.

Mesmo assim, por razões de previdência,
visto que temos mártires demais
e precisamos de gente,
levarei meus irmãos pra terra firme,
onde casa não pode ser navio,
nem se esteja sujeito
às caprichosas emoções do rio.)

o barco passando, e meus olhos sofrendo
da mesma miséria da mesma miséria
que vêem.

E, de repente,
me vem uma vontade provisória
de encher os bolsos de demagogia,
entrar em cada casa com uma estória,
qualquer que seja - que não seja séria,
falar de tudo - menos de miséria,
prometer coisas que não cumprirei,
como se faz em tempo de eleições,
para que sejam menos infelizes
(enquanto o rio esconde as roças podres),
mastigando ilusões.
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O OURO DO RIO AMANA

Tuas doces águas, Amana,
de repente se toldaram.

Chegaram dragas, pontões,
canoas, motores, balsas
abarrotadas de homens
falando gírias estranhas,
escafandros, pás, bateias,
mecanismos de sucção
a revolver-te as entranhas,
e o teu relevo de margens:
foi decifrado o segredo
do teu rico aluvião.

As cobiças pessoais
precisam catar o ouro
para urgências nacionais.

Cadê teus patos selvagens,
teus amenos inambus,
tangurupará voltando
(segundo registra a lenda)
de lutas com o japiim,
o som rouco das ciganas
a voz dos uirapurus,
o alarido dos guaribas,
os bandos de caititus,
os socós-boi meditando,
jacarés-pedra espiando,
tracajás quase dormindo
na beira, esquentando o sol?

Cadê tuas ariranhas,
tuas antas e capivaras,
teus tambaquis, tuas piranhas
pretas, teus pirarucus,
teus surubins, teus pacus,
araris e pirararas?

Vai, leva ao Parauari
(que também foi descoberto)
teu choro amargo de virgem
possuída sem amor.

Conta que há alto-falantes
espantando os papagaios;
que em cada motor-de-linha
chegam novos garimpeiros;
que as vilas vão-se formando
nas margens, e em cada tenda
há muitas coisas a venda
e mulheres de aluguel
(brancas, louras, que adoecem
por rejeição natural);
que há muito cabra-da-peste
e cenas de faroeste,
cachaça, carne-de-lata,
cigarro, pilha, sardinha,
leite-moça, mosquiteiro,
lanterna, charque do Sul.

Entrega teu ouro, Amana,
quanto mais cedo melhor.
Quero que sejas tão pobre
que nem se lembrem que existes.

Depois do caso passado,
mesmo sabendo que és triste,
quero fazer um roçado,
levantar um tapiri,
deixar o mundo de lado
e morar perto de ti.
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SONETO ABERTO SOBRE A MORTE

Hoje é dia de festa nesta casa:
festa dos círios e das lamparinas.
Um corpo magro sobre a mesa, e a porta
de esteira aberta para os companheiros.

Beatas, terço, cafezinho, estórias,
o choro inútil da mulher sozinha,
a promessa do céu dos escolhidos
e uma herança de palha e de abandono.

Brasileiro, do norte, agricultor.
Semeou, semeou a vida inteira,
fez o campo florir por tantas vezes,

alimentou mil pássaros vadios,
foi sempre bom, mas nunca teve sorte,
e se vestiu de trapos para a morte.
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O LAGO DAS 7 ILHAS

No Lago das 7 ilhas
há 7 ilhas plantadas
e um mundo verde ao redor.

Em cada ilha uma casa
em cada casa uma virgem
em cada virgem um amor.

No Lago das 7 ilhas
há peixes e tartarugas
e o boto namorador.

Da lama humosa do lago
brotam mil vitórias-régias
- em cada uma uma flor.

No Lago das 7 ilhas,
que guarda o dom encantado
de ser filho do Equador,

há 7 moças bonitas
que vivem nas palafitas
sonhando com seu senhor.

No Lago das 7 ilhas,
somando todas as filhas
do caboclo pescador,

há 7 cunhãs pejadas
de tanto amar a paisagem
e o boto conquistador.
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DO TEMPO ENTRE DUAS ÁGUAS

A mãe-do-rio virá com suas águas poderosas,
e inundará a várzea,
e cobrirá os jutais e os tapiris,
e invadirá os domínios da mata.

Minha gente conhecerá, ainda uma vez,
o espanto da enchente
e a ilusão dos jutais e das lamas humosas,
e se refugiará nas marombas
com seus animais
e as sementes de novas esperanças.

Os peixes se multiplicarão nos igapós,
e o rio doará à varzea a fertilidade das águas.

As florestas indomadas guardarão, ainda,
as riquezas da terra firme
e o segredo milenar das nossas jazidas.

Então,
convocaremos a força benéfica
que desobstruirá os canais dos nossos sonhos,
e iluminará os nossos corações;

e nos ensinará os caminhos da urbe,
com suas indústrias e seu comércio,
em que não seremos um amontoado de seres revoltados;

e nos ensinará os caminhos da várzea,
em que cultivaremos os nossos alimentos,
sem sermos consumidos pelas águas;

e nos ensinará os caminhos da terra firme,
em que apaziguaremos as florestas e o subsolo,
sem enveredarmos por transamazônicas impossíveis.

E o espírito da cidade será um bom companheiro,
e não nos punirá a cada dia
por nossas vidas;

e a mãe-do-rio permanecerá fértil e generosa,
e apascentará os cardumes
que alimentarão nossos filhos;

e o senhor da mata
porá nos nossos lábios a palavra certa
para o diálogo com as árvores e com a terra.

E terá chegado a hora
em que perpetuaremos o gesto simples
do amanho e da partilha justa,
entre nós mesmos,
dos nossos bens.
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Fontes:
– TELLES, Tenório e KRÜGER, Marcos Frederico (organizadores). Trilha dágua: Poesia e poetas do Amazonas. Manaus: Valer, 2006.
http://www.antoniomiranda.com.br/
http://www.jornaldepoesia.jor.br/
Fotomontagem = José Feldman

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