Acordei tarde, num apetite danado. Passei a noite diante da televisão, a ver mulatas na Sapucaí. Fui à cozinha, fucei a geladeira, voltei à copa. Imaginei mordidas numa pera exposta na pequena fruteira sobre a mesa. Não, melhor me conter e aguardar o bife acebolado e quente do restaurante. Para enganar a fome, rasguei o envelope encontrado na caixinha do correio. Espantei-me: uma revista de capa colorida e meu nome em grandes letras, ao lado de um Peter, de um Otto, de uma Annette. Quase não acreditei no que via. Como fora meu nome parar na parte exterior daquela publicação germânica? Sim, o magazine vinha da Alemanha: Welt der Buchstaben. Embasbacado, ouvi o grito da sirene. Quem seria? Corri ao portão, meti a cara na folha metálica e me assustei: três diabinhas a pular na calçada. Só de uma lembrei-me: Carla Pimentel, a Carlinha da semana passada. Abri o portão, com pressa de celerado. As três saltaram ao meu pescoço e quase me levaram ao chão. Não façam isso! Olhem o povo! Vestiam-se como diabretes, rabos empinados e a balouçar, rostos pintados, toquinhas de variadas cores, saiotes curtos. É carnaval, poeta, é carnaval! Vamos dançar. E se balançavam na direção da porta, arrastando-me feito boneco de Olinda. Por que vieram sem me avisar? Precisa avisar? Quem são suas amigas? Esta é Fabíola, mas pode chamar de Fabi. Abracei-a, beijei-a, de olho na terceira. E você quem é? Eu sou Gabriela, a Gabi. Convidei-as a se meterem na casa: Introibo ad altare Niltei. Carla se apimentou mais: Diabo é isso, meu?
A tremer de inanição, ofereci-lhes o cálice frio dos mortais: tem cerveja na geladeira. Bebam, enquanto vejo uma... Sem olhar para elas, balbuciei: Carla, você pode traduzir isto? Chegaram à sala, latinhas suadas. Fabi se estirou por trás de minha orelha murcha e eu senti seu coração pagão machucar meu ombro decaído: Você está nela? Arrancaram os lacres das latinhas. Vejam meu nome na capa. Conto ou poema? Não sei ainda. E me pus a revirar as folhas. As tentações deixaram de saltitar e se aquietaram no sofá. Passei por Peter Kunze, Otto Uhse, Annette Loerke e fui me impacientando. Você deve estar ao lado de Thomas Mann e Günter Grass – brincou a diabólica Carla Pimentel. (Teria sido ela a autora da façanha de me traduzir para a língua de Goethe e providenciar a publicação do conto?)
Sôfrego, li o título: “Die Sprache Des Hunde”. O que significa isto, Carlinha? Deve ser “A fala dos cães”. As outras enfiaram os olhos na amiga. Tentei ler. Não é assim, Nilto. Então leia. Será mesmo meu? Sim, seu nome está aqui, junto ao título. E há uma nota no pé da página. Agora quero beber. Corri à geladeira, instigado pela sede. Vejam se há mais brasileiros aí. Elas passavam as folhas, com sofreguidão, quase a rasgá-las. Cuidado, isto é uma relíquia, minhas filhas.
Carla Pimentel estuda alemão, viveu em Berlim durante um ano e adora o que escrevo. Eu não estudo nada, só saí do Brasil uma vez (Cuba, 2000) e adoro os seios das raparigas em flor. Nunca a imaginei vestida de anjo caído (mesmo no carnaval), a bailar feito macaca, rabinho para lá e para cá. Eu a imaginava metida nos livros, a ler Rilke, Elias Canetti e Kafka. Pois vive a me falar deles. Você precisa ler as histórias de Hoffmann. Ora, eu li, quando jovem. É verdade, poeta? Lembro muito de “O homem de areia”.
Naquela manhã de faminto, porém, perdi por completo o respeito pelo ser humano. Como pode uma menina, de tantas leituras, se transformar numa tinhosa qualquer, que visita, em dia de carnaval, um homem há muito afastado da pândega e dedicado, dia e noite, a ler e escrever? Corri ao banheiro, para me santificar ou me purificar. Aquilo deveria ser sonho. A água benta me acalmou. Aranquei a toalha do cabide, pu-la aos ombros, e saí à sala a cantarolar: Com que roupa eu vou pro samba que você me convidou. Que alegria é essa, seu Nilto? Pensei não me defrontar com ninguém na sala. Aquelas mocinhas teriam sido criadas por descuido do criador. Eu queria folhear Welt der Buchstaben, deliciar-me com “A fala dos cães” em alemão, me sentir ao lado de Goethe, Schiller e Novalis. No entanto, as meninas, as diabinhas não queriam saber de letras. Queriam foliar em minha sala. Ou transformar minha vida numa folia. Fazer de mim bonequinho que fala pela boca dos outros. E, às vezes, escreve versinhos brincalhões: “Talvez pudesse ser padeiro – pães –, / tecer mortalhas – panos – doutras lãs, / porém domar nem sei meus próprios cães”.
Fortaleza, 8 de março de 2011
Fonte: Literatura Sem Fronteiras
Imagem = Pagina Pandora
A tremer de inanição, ofereci-lhes o cálice frio dos mortais: tem cerveja na geladeira. Bebam, enquanto vejo uma... Sem olhar para elas, balbuciei: Carla, você pode traduzir isto? Chegaram à sala, latinhas suadas. Fabi se estirou por trás de minha orelha murcha e eu senti seu coração pagão machucar meu ombro decaído: Você está nela? Arrancaram os lacres das latinhas. Vejam meu nome na capa. Conto ou poema? Não sei ainda. E me pus a revirar as folhas. As tentações deixaram de saltitar e se aquietaram no sofá. Passei por Peter Kunze, Otto Uhse, Annette Loerke e fui me impacientando. Você deve estar ao lado de Thomas Mann e Günter Grass – brincou a diabólica Carla Pimentel. (Teria sido ela a autora da façanha de me traduzir para a língua de Goethe e providenciar a publicação do conto?)
Sôfrego, li o título: “Die Sprache Des Hunde”. O que significa isto, Carlinha? Deve ser “A fala dos cães”. As outras enfiaram os olhos na amiga. Tentei ler. Não é assim, Nilto. Então leia. Será mesmo meu? Sim, seu nome está aqui, junto ao título. E há uma nota no pé da página. Agora quero beber. Corri à geladeira, instigado pela sede. Vejam se há mais brasileiros aí. Elas passavam as folhas, com sofreguidão, quase a rasgá-las. Cuidado, isto é uma relíquia, minhas filhas.
Carla Pimentel estuda alemão, viveu em Berlim durante um ano e adora o que escrevo. Eu não estudo nada, só saí do Brasil uma vez (Cuba, 2000) e adoro os seios das raparigas em flor. Nunca a imaginei vestida de anjo caído (mesmo no carnaval), a bailar feito macaca, rabinho para lá e para cá. Eu a imaginava metida nos livros, a ler Rilke, Elias Canetti e Kafka. Pois vive a me falar deles. Você precisa ler as histórias de Hoffmann. Ora, eu li, quando jovem. É verdade, poeta? Lembro muito de “O homem de areia”.
Naquela manhã de faminto, porém, perdi por completo o respeito pelo ser humano. Como pode uma menina, de tantas leituras, se transformar numa tinhosa qualquer, que visita, em dia de carnaval, um homem há muito afastado da pândega e dedicado, dia e noite, a ler e escrever? Corri ao banheiro, para me santificar ou me purificar. Aquilo deveria ser sonho. A água benta me acalmou. Aranquei a toalha do cabide, pu-la aos ombros, e saí à sala a cantarolar: Com que roupa eu vou pro samba que você me convidou. Que alegria é essa, seu Nilto? Pensei não me defrontar com ninguém na sala. Aquelas mocinhas teriam sido criadas por descuido do criador. Eu queria folhear Welt der Buchstaben, deliciar-me com “A fala dos cães” em alemão, me sentir ao lado de Goethe, Schiller e Novalis. No entanto, as meninas, as diabinhas não queriam saber de letras. Queriam foliar em minha sala. Ou transformar minha vida numa folia. Fazer de mim bonequinho que fala pela boca dos outros. E, às vezes, escreve versinhos brincalhões: “Talvez pudesse ser padeiro – pães –, / tecer mortalhas – panos – doutras lãs, / porém domar nem sei meus próprios cães”.
Fortaleza, 8 de março de 2011
Fonte: Literatura Sem Fronteiras
Imagem = Pagina Pandora
Um comentário:
MESTRES Nós os que enchemos os corações, Com pomposos cânticos de esperança. Querendo mudar os homens, E conduzi-los ao saber. Gênios da inculta pátria, Que inspiram harmonia. A um povo sofrido e triste, Em busca da esperança e alegria. Graças a esse inculto saber, Invisíveis que poucos vêem. Que nos levam a despertar, O desejo de ensinar e aprender. Se semear com sorriso, Ou com aperto de mão.
O sorriso é quase tudo, Quando vem do coração. Semeai o saber nesse reino, Onde o poder é ganhar. É dando que se recebe, Vamos mestres semear. Autor: e Escritor. João do Rozario Lima E-mail. Joanzinhorosario31@hotmail.com
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