Descobriu-se afinal! A questão das custas é uma querelle d’allemand! O regimento foi o pretexto, e a causa verdadeira não se pode conhecer.
Quem sabe! Talvez os que censuram o regimento sejam empregados da Secretaria da Justiça, ou eminentes jurisconsultos incumbidos da fatura de códigos civis!
Os defensores, estes, são homens independentes, que nunca solicitaram coisa alguma do Ministério da Justiça, que podem ter aceito uma comissão científica, sem por isso haverem transigido com a sua consciência, ou desistido da mais ampla liberdade de pensamento.
O que, porém, há de notável nisto é que a censura não procura disfarçar-se com a capa do anônimo, ao passo que o elogio tem pejo, tem vergonha de aparecer em público com o seu verdadeiro nome. Como é bela e louvável essa modéstia dos grandes talentos!
Mas qual será essa verdadeira causa que não se pode conhecer? Será alguma das anedotas que se contam por aí a respeito da maneira por que vai a nossa repartição da justiça? Será um desses muitos mistérios de secretaria que já começam a divulgar-se, e a tomar as proporções de um grande escândalo?
Não estamos agora para investigar este ponto; mas, se os defensores do regimento desejam muito, estamos prontos a tentar com eles uma pesquisa, que talvez se torne interessante. A exemplo de Xavier de Maistre, de A. Karr e de Garrett, escreveremos a nossa viagem Autour du Palais de Justice.
Esta obra há de ser um monumento de glória para muita gente, um livro precioso, digno de ser estudado pelos pretendentes, profissão esta que ainda não tem um roteiro certo pelo qual se guiem aqueles que a seguem!
Mas, por falar nisto, ia-me esquecendo dizer o quanto me tem incomodado ver a causa do Sr. Ministro da Justiça – uma tão bela causa – comprometida sem dó por um dos P.P. do ministério, pelo P. do Jornal do Comércio.
Depois de ter falado (a propósito de custas) em fivelas de calção, em oráculos de Tênis e esfinges do Egito, nas histórias da vovó, nos iconoclastas, no Ministro Roland, e na abóbada celeste, acabou por chamar a justiça barata!
E então! Que me diz a isto o Sr. Ministro da Justiça? Vê como se desrespeita a S. Ex.ª, como se ridiculariza uma instituição de tanta gravidade sobre a nossa magistratura, e sobre todos os empregados dessa repartição?
Se a justiça é barata, segundo diz o P. do Jornal do Comércio, a conseqüência é fácil de tirar; razão por que o autor da lembrança tem o cuidado de declarar que é inteiramente alheio a essas coisas judiciárias e forenses.
Mais um título, por conseguinte, para bem tratar de questões desta natureza!
Quanto aos negócios das custas, já não tenho nada que dizer em semelhante discussão, visto que os defensores do regimento estão fazendo sabatina e destruindo mutuamente as objeções e argumentos que cada um apresenta.
O P. do Jornal do Comércio elogia as custas, a ciência de vovô, a razão dos séculos passados, as coisas velhas e carunchosas; o P. do Correio Mercantil aceita a idéia civilizadora da revogadora das custas, e condena o sistema emolumentário como usança obsoleta dos nossos antepassados. Um diz que temos justiça barata e gratuita, o outro que urge fazer os tribunais acessíveis ao rico e o pobre.
Assim, pois, lá se avenham os dois, que nós lavamos as mãos neste negócio: podem discutir livremente, podem brigar à sua vontade. Só peço a Deus, para bem do Sr. Ministro da Justiça, que não se realize o antigo anexim: Brigam as comadres, descobrem-se as verdades.
Com efeito, a questão está o mais interessante possível. As estrelinhas do Jornal do Comércio, depois de uma luminosa definição de imposto, declaram magistralmente que as custas não podem ser classificadas como uma contribuição daquela natureza. Ontem apareceu o P. da mesma folha, dizendo “que as custas se devem considerar como um imposto, que afinal recai integralmente sobre o demandista de má fé para punir a sua avidez”.
Parece mesmo uma coisa de propósito e caso pensado; um diz uma coisa, o outro contraria imediatamente, e, o que é mais engraçado, contradiz-se a si mesmo. Assim o Sr. P. do Jornal, que “pouco sabe de estilo forense e de fórmulas sacramentais”, declara dogmaticamente que não se devem prescrever essas palavras que ele nem compreende.
Mas o correspondente tem medo que, “condenando aquelas fórmulas como inúteis, se sacrifique uma garantia de precedência (não entendo) para com os direitos da parte”; e como o Sr. P. tem medo, está acabado, não se deve fazer a reforma.
Na verdade, que fortes garantias não existem nesses aranzéis dos termos antigos, nesses erros gramaticais que formam uma gíria, a que infelizmente se chama estilo forense!
Quando no começo de uma escritura se diz: “Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e cinqüenta e cinco, aos tantos de tal mês, etc.”, a parte tem mais garantia do que se escrevesse simplesmente a data do ano e do mês.
Se o advogado no libelo se esquecer de traçar meia dúzia de letras maiúsculas, que traduzidas formam um palavreado de rábula, a causa está perdida, as leis da justiça ficam desrespeitadas!
E, portanto, conservamos essas frases ocas, que nada exprimem, que só servem de fazer da linguagem da justiça uma espécie de algaravia, uma gíria incompreensível que ainda mais auxilia a dependência em que vivem as partes a respeito dos homens de justiça.
Olhe, Sr. P., quem o obriga a falar dessas coisas comete uma impiedade, porque está comprometendo a sua reputação de anônimo, que já ia tão bom caminho com aqueles seus primeiros devaneios jurídicos, com aquelas glosas feitas à reforma judiciária.
Dizem que os motes vinham da Secretaria da Justiça, mas eu não creio em semelhante aleive. São coisas que espalham adrede os invejosos, que têm ciúme do seu gênio, da ciência infusa, capaz de tratar profundamente de questões de que pouco entende.
E o erro de imprensa? Não é interessante essa omissão em que falam todos os defensores do regimento, mas que nenhum deles sabe qual ela é? Não é tão regular que o regimento esteja em execução, que os porteiros vão recebendo o meio por cento, e que o ministro ativo e laborioso nem sequer se dê ao trabalho de expedir uma circular retificando a omissão do regulamento?
Todos os dias aparece um novo achado. O primeiro foi o erro de imprensa, depois os erros de cópia. Pobres compositores, pobres copistas, que carregais com as culpas de vossos ilustres colegas! quando digo vossos ilustres colegas, refiro-me aos que compõem códigos, e aos que copiam regulamentos e reformas dos livros franceses e das revistas de legislação.
Semelhante lembrança do erro de imprensa foi desgraçada; todos viram nisto uma confissão dos defeitos e das irregularidades do regimento de custas – confissão desairosa – porque nem ao menos tiveram a coragem de a fazer como uma declaração formal, como uma satisfação às justas e comedidas censuras que apareceram.
Mas entenderam que ficava mal aos mestres, aos decanos da ciência, aos novos Papinianos, dizem claramente que tinham errado, sobretudo quando discutiam com uns ignorantes, que não sabem coisa alguma, e que sem a menor modéstia ousam falar em jurisprudência, quando homens como o Sr. P., sacudindo a sua cabeleira empoada, deixam cair o polme sucoso da ciência.
Esta última frase é augusta; servimo-nos dela, mas não sabemos o que quer dizer. Não faz mal: seguimos o exemplo do correspondente do Jornal do Comércio.
Concluindo, porém, este artigo, não podemos deixar de felicitar-mo-nos por ver que alguns dos mais distintos e extremos defensores do regimento de custas confirmam com o seu talento e os seus conhecimentos a necessidade de acabar com as custas que percebem os juízes, e de livrar a magistratura desse cancro, embora se conserve o regimento antigo para os ofícios de justiça.
Nunca desejamos reformas precipitadas. Quando atacamos em geral a instituição das custas, foi sempre na idéia de que, reconhecida ela como defeituosa, devia ser pouco a pouco substituída por um sistema mais perfeito.
Por isso, se o Sr. Ministro da Justiça pretende realizar semelhante melhoramento, poderá contar da nossa parte com aquela mesma pequena e pouco valiosa adesão que temos mostrado sempre que S. Ex.ª tem iniciado uma medida útil para a nossa legislação.
A pena que sem interesse nem considerações defendeu a sua reforma judiciária, e censurou o seu regimento de custas, desejaria poder fazer alguma coisa para a adoção de uma idéia cujo grande alcance todos compreendem.
Isto, porém, não quer dizer que voltamos da nossa maneira de pensar a respeito do regimento. Não: temos a este respeito uma opinião firme; mas, desde que atingimos o fim desejado, guarde cada um a sua convicção e unamo-nos para fazer um serviço à justiça do nosso país.
Quando a questão que presentemente se agita nos levar à extinção das custas que percebem os juízes, todos nós teremos motivos de nos felicitarmos.
Se a razão está da parte dos defensores do regimento, que sustentam a necessidade de uma autorização do corpo legislativo, cabe-nos a nós a iniciativa de uma idéia útil e conveniente.
Se, ao contrário, nós temos a justiça pelo nosso lado, os defensores do regimento terão prestado um relevante serviço à causa pública, dando o exemplo de uma discussão leal, aceitando a verdade de onde quer que ela venha, e auxiliando com as suas luzes uma reforma de grande interesse.
Agora, meu amável leitor, podemos conversar mais familiarmente sobre outras coisas da semana.
Esqueci que hoje é o 1.º de abril. O que vos tenho a dizer é muito sério. Pretendia escrever-vos um folhetim apropriado ao dia; mas neste tempo de custas tudo custa, e por isso resignai-vos à sensaboria da quadra.
Demais, os poissons do 1.º de abril começaram este ano tão cedo, que já perderam a graça.
O tudo e nada do Jornal do Comércio, que escreve sempre a segunda parte do seu artigo e nunca chega à primeira, descobriu que o regimento de custas era uma pulha.
No Maranhão os visionários espalharam que o Dr. Olímpio Machado fora demitido da presidência justamente no momento em que aquele digno funcionário merece toda a confiança do governo pela sua excelente administração.
Nesta corte o Teatro Lírico também nos pregou um formidável logro com o seu baile alcunhado de Remorso. Se alguma coisa há nesta farsa que se pareça com o título, é o sentimento do autor por tê-la composto, e o da diretoria por se ter animado a fazer representar uma coisa tão grotesca.
O outro logro foi a récita de quinta-feira, que se transferiu a pretexto de moléstia. Se esse foi o verdadeiro motivo, não sei; a diretoria soberana não dá satisfações ao público; mas diziam por aí que naquele dia, por volta do meio-dia, ainda não se tinha vendido um só bilhete de geral. Naturalmente os apaixonados da Zecchini estavam todos aflitos com a moléstia da terza-donna.
Ainda uma vez insistimos para que se acabe com esse monopólio lírico, tão prejudicial aos interesses do público. Não sei que razão, ou antes que escrúpulo pode fazer continuar semelhante estado, e recear uma concorrência cujas vantagens são geralmente reconhecidas.
Temos uma nova empresa lírica, que sem nenhuma subvenção se propõe dar espetáculos no Teatro São Pedro de Alcântara. O governo devia não só autorizar semelhante empresa, como facilitar-lhe todos os meios de levar a efeito o seu projeto; porque assim conseguimos ter excelentes representações, melhores artistas, e faríamos dentro de alguns anos uma grande economia, reconhecendo que podem existir empresas líricas não subvencionadas.
Outra grande vantagem desta empresa é a edificação de um grande teatro lírico com as proporções necessárias para facilitar a entrada a todas as classes da sociedade; para isto pede a empresa durante dez anos uma subvenção anual de 120 contos, ficando o teatro pertencendo ao governo no fim do prazo da duração da companhia, que é de quinze anos.
Ora, se atendermos a que o governo teria de despender mais de mil contos na edificação de um teatro daquelas proporções, se considerarmos na economia da subvenção, é evidente que muito ganhamos em auxiliar a nova empresa, e fazer com que ela realize o seu plano o mais breve possível.
E basta de idéias profanas; estamos na Semana Santa, no tempo da Sagrada Paixão, dos santos e poéticos mistérios da nossa religião; aí vêm os dias de prece e recolhimento, e as romarias pelas igrejas.
Este ano a Rua do Ouvidor deve estar brilhante. Além das belas casas que por este tempo costumam apresentar-se com todo o luzimento, teremos um novo estabelecimento preparado com o maior luxo e bom gosto.
A Notre-Dame de Paris abre amanhã o seu magnífico salão. A respeito de elegância e riqueza é delicadamente o primeiro estabelecimento deste gênero que existe na corte.
Que felicidade para os maridos e pais de família! Hão de pagar caro os vestidos e as modas; porém ao menos terão o consolo de reverem-se em magníficos espelhos, de pisarem macios tapetes, e recostarem-se em cômodas poltronas.
O que é verdade é que de amanhã em diante as mocinhas do tom terão um lindo palácio de fadas, e os homens casados um verdadeiro purgatório em vida.
Íamos fechar este artigo, quando nos contaram que a relação desta corte tinha absolvido ao procurador de causas Antônio Manuel Cordeiro. No lugar competente examinaremos este processo, e apreciaremos a justiça dessa absolvição, dada a favor de um homem sobre o qual pesava tão grave acusação.
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.
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