quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Antonio Brás Constante (Vivendo entre Duas Amantes)


Tenho duas amantes. O sonho da maioria dos homens. Elas são caprichosas e cada uma possui os seus encantos. Uma delas está comigo agora, incendiando minha imaginação, enquanto a outra espera deitada ao meu lado, para que eu descubra os seus segredos.

A primeira é a escrita, que revela o que há de melhor e de pior em mim. Somos ligados por seus símbolos e simbolismos, comungando uma paixão a cada novo texto. Invento os seus caminhos, deixando neles a minha marca de autor. Ela me seduz como obra; é mais uma amiga querida, do que uma amante desejada.

A escrita é uma parte de mim, a transformação de pensamentos abstratos em formas concretas, traduzindo as percepções que me cercam em realidades impressas e expostas ao mundo através de revistas, e-mails, sites e jornais. O desejo de escrever é uma luz que invade a janela onde se encontra minha alma. Por meio dela, cada pensamento pode virar uma nova frase, um novo parágrafo, uma nova narrativa, um novo começo. Somos parceiros no mais íntimo dos momentos de um ser humano: o momento da criação.

Minha outra amante é a leitura, repousando em forma de livro ao lado de minha cama, sempre cheia de conhecimentos, aflorando emoções, alterando minhas compreensões. Ela chega até mim repleta de saborosas ideias ou de amargos dissabores. Algumas vezes me enfeitiçando com seu fascinante enredo, outras vezes me decepcionando com a cruel realidade retratada no seio de suas palavras. Quando nos encontramos, passamos a pertencer a um só momento localizado nas páginas de suas histórias. Vamos para todos os lugares juntos. Quando me percebo já estou viajando com meus olhos por seu delicioso corpo de mistérios. Quem nos vê ao longe, não nota o gozo advindo dos momentos que ela me proporciona. A cada leitura, um novo romance se inicia, uma incrível aventura nasce do nada, com personagens que vão surgindo e dançando em irresistíveis cenas vistas apenas por mim. Irrefutável. 

Ao ler, acabo me envolvendo nos encantos de uma amante escrita por outro autor. Da mesma forma que vejo minhas composições deleitando os olhares de outros que delas se aproximam. Orgias literárias, nas quais essas amantes textuais se tornam fontes de prazer indelével a vários leitores e escritores que a elas se entregam voraz e totalmente.

As duas são faces distintas de uma só moeda, almas gêmeas de uma mesma concepção. Filhas da mãe inspiração, que entra de forma imperceptível nos recantos da mente (frágil mente), inicialmente em busca de mãos onde possa se expressar. Mãos que vão aos poucos tecendo e nutrindo as formas desejadas por ela para suas criações. A inspiração é deusa sussurrante e maliciosa, que envolve e se desenvolve no cérebro do escritor, se desnudando em toda sua glória como singela história, fabricando para si um novo corpo que possa vestir, recheado de letras, para então seguir cumprindo seus desígnios de amante, saindo das mãos dos escritores, para enfim cair nos braços de inúmeros leitores.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

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