quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Folclore Indígena: Nação Bororó (Como Nasceram as Estrelas)


Existem muitos mitos sul-americanos que falam da maneira como as estrelas encheram o céu. 

Este mito, contado pela tribo dos Bororós, começa com uma manhã, tranquila e igual a muitas outras, passada numa povoação. Os homens da aldeia tinham partido para a caça, de modo que as mulheres pegaram nos seus cestos e foram colher milho para fazer tortilhas. O pior é que encontraram muito poucas maçarocas.

- Que safra tão pobre - comentou uma delas. - Passei a manhã toda à procura e tenho o meu cesto quase vazio.

- Vamos pedir ao pequenino - sugeriu uma idosa. - Ele tem muito jeito para encontrar as maçarocas... ainda não percebi como consegue. É tão miudinho e o milho cresce tão alto, mas o certo é que consegue dar com as maçarocas!

E foi assim que uma das mulheres voltou à aldeia para chamar o pequenino. Encontrou-o junto da avó, que tentava ensinar algumas palavras novas à arara de estimação. São aves espertas, que conseguem aprender a dizer todo o tipo de palavras.

- O pequenino pode ir conosco para nos ajudar a encontrar maçarocas? -perguntou a mulher à avó do rapaz.

- Claro que sim! - replicou a avó. - Vá, pequenino, toca a andar. 

O pequenino acompanhou a mulher até ao milharal.

- Vê o que consegues encontrar - incitou-o ela.

Como já era de imaginar e tal como a velha previra, o pequenino foi achando maçaroca atrás de maçaroca, até os cestos das mulheres ficarem a abarrotar. Estas sentaram-se então numa clareira, a tirar o milho das maçarocas. Depois arranjaram umas pedras lisas, com as quais esmagaram os bagos até os reduzirem a farinha.

- Assim teremos muitos bolos e tortilhas para dar aos nossos maridos quando eles voltarem da caçada - observou a velha. - Ficarão todos contentes!

O pequenino, porém, sempre que apanhava uma delas distraída, roubava um pouco de farinha para si, escondendo-a dentro do interior oco de talos de bambu.

 «Claro que isto não é roubar», disse de si para si. «Como fui eu quem encontrou a maioria das maçarocas de que esta farinha foi feita, tenho todo o direito de ficar com um bom bocado.»

Não tardou que o pequenino juntasse uma quantidade suficiente para fazer uma festa. Pegou nos paus de bambu e voltou para junto da avó, que ficara na aldeia a tomar conta das crianças.

- Avó! Avó! - exclamou. - Quero dar uma festa para todos os meus amigos... Aqui tem a farinha para os bolos. Importa-se de os fazer?

Sacudiu a farinha que trazia dentro dos paus de bambu, juntando uma boa quantidade num monte.

 A avó esbugalhou os olhos de surpresa.

- Onde é que arranjaste toda esta farinha, pequenino? - perguntou, espantada.

 «Pequenino», cantarolou a arara, imitando-a.

- A avó sabe que eu fui apanhar maçarocas com as mulheres - respondeu o menino. - Ajudei-as a encontrar tantas que me disseram que já tinham farinha que chegasse para os homens.

- Portanto resolveste roubar esta, não foi? - perguntou-lhe a avó.

- Claro que não! - mentiu o rapaz. - Elas é que me disseram para tirar a que fosse capaz de carregar.

«Carregar», guinchou a avó. Franziu o sobrolho mas, logo a seguir, o seu rosto abriu-se num sorriso.

- Acredito em ti - disse, deitando mãos ao trabalho na preparação dos bolos.

Não tardou que a casa da avó se enchesse com o odor delicioso dos bolos acabados de coser... e a abarrotar de crianças, pois o pequenino convidara todos os amigos para a festa.

A avó do rapaz ficou sentada a um canto, juntamente com a arara de estimação, a ver a miudagem a encher a barriga de bolos. Começava a duvidar de que o pequenino tivesse contado a verdade. Se calhar o neto não recebera a farinha mas, sim, roubara-a.

- Será que o meu pequenino é um ladrão? - murmurou. A arara ouviu a palavra «ladrão» e repetiu-a.

«Ladrão!», guinchou. Como achou a palavra agradável de pronunciar, continuou a repeti-la: «Ladrão! Ladrão!».

 As crianças calaram-se.

- Não quero que aquele pássaro maluco nos denuncie. - disse o pequenino. 

«Ladrão!», gritou a arara.

Sem parar para pensar no que estava a fazer, o rapaz agarrou na ave e cortou-lhe a língua. Alguns contam que depois chegou a fazer o mesmo à avó, para se certificar do seu silêncio. No entanto, é provável que a avó tenha ficado suficientemente assustada com o que acontecera à sua pobre ave para não dar com a língua nos dentes.

A maldade estava consumada. Não havia como voltar atrás. Então, como muitas vezes acontece, as coisas más não ficaram por ali. As crianças, com a barriga cheia como há muito não acontecia, saíram de casa atrás do pequenino e foram soltar todas as outras araras de estimação da aldeia.

Foi então que, com a mesma certeza e lentidão com que o Sol nasce pela manhã, o pequenino começou a perceber as maldades terríveis que cometera. Cortara a língua a uma ave, roubara farinha, assustara a avó... o que viria a seguir? Tinham de fugir, as crianças precisavam de se pôr a salvo antes que os pais descobrissem o que haviam feito!

Contudo, para onde poderiam escapulir-se sem serem descobertas pelos adultos?

 -Já sei - exclamou o pequenino. - Os crescidos não são bons trepadores porque pesam muito. Subamos para um sítio aonde eles não possam chegar.

- Para onde? - perguntou uma menina, ainda com a boca suja de migalhas.

- Para o céu! - exclamou o pequenino.

- Mas... como? - quis saber um rapaz mais velho.

- Há sempre uma maneira! - declarou o pequenino ao avistar, naquele preciso momento, uma trepadeira grande. Tinha o caule cheio de nós salientes; portanto, seria fácil subir por ela. Pousado na planta estava um beija-flor.

O pequenino segredou algo ao ouvido do beija-flor e logo a ave pegou numa das pontas da trepadeira e voou com ela para o céu, prendendo-a no sítio certo.

- Despachem-se! - incitou o pequenino, começando a subir pela planta, em direção ao céu. Em breve era seguido por uma fila de crianças.

Quando as mulheres regressaram à aldeia com os cestos cheios de farinha, prontas para começar a cozinhar para os seus homens, não encontraram os filhos. Correram para casa da avó do pequenino e encontraram-na a chorar pela sua pobre arara.

- Que aconteceu? - perguntou uma das mulheres.

- Onde estão as crianças todas? - inquiriu outra, aflita.

Nesse instante, uma delas ainda viu as pernas da última criança a subir pela trepadeira, antes de desaparecer no céu.

- Olhem! - gritou a mulher. - Estão ali!

Deitou a correr em direção da trepadeira, seguida pelas outras mulheres. Em breve tentavam, desesperadamente, subir pelos nós da planta, a fim de alcançar os filhos.

O pequenino, no entanto, tivera razão. Os adultos jamais conseguiriam ir atrás deles até àquele lugar. A trepadeira não aguentou o peso e desprendeu-se do sítio onde o beija-flor a prendera.

Caiu então por terra com um terrível CRAQUE!, fazendo lembrar uma corda enrolada, e as mulheres, que eram mães, tias e primas, tombaram no chão, em grande choro. Nesse dia, porém, o solo foi generoso para elas. Em vez de morrerem todas, pois tombaram de uma grande altura, ao tocar na terra seca e dura, transformaram-se em diferentes animais. Esta estranha mistura de criaturas começou então a galopar, correr, rastejar, saltar e andar por ali fora.

Nessa noite, quando os homens voltaram da caça, em vez de serem saudados pelo cheiro de petiscos e pela gritaria dos filhos, não viram ninguém, além da velha.

Com língua ou sem ela, o certo é que a avó do pequenino ficara completamente muda com o que vira, portanto, nada disse.

Viam-se alguns animais esquisitos a perambular por entre as casas, mas os homens não lhes deram atenção, tão aflitos andavam à procura das mulheres e dos filhos.

- O que lhes terá acontecido? - perguntou um dos caçadores. - Não há sinais de ataque... Deve ter havido aqui alguma bruxaria.

- E o que é aquilo? - exclamou um outro apontando, admirado, para o céu escuro.

Os homens da aldeia ficaram a olhar, espantados, para as estranhas luzes que brilhavam no meio da escuridão, luzes que hoje conhecemos como estrelas.

Depois da trepadeira cair, as crianças ficaram para sempre presas no céu. Ainda ali estão e nunca envelhecem. Às estrelas são os seus olhos a brilhar com as lágrimas que choram pelas terríveis maldades cometidas.

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