segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Martins Fontes (Poemas Recolhidos)


OLHOS, ESPELHO DA ALMA

Adeus. O teu amor me torturava:
era uma rosa que, se às vezes, tinha
no perfume, a candura que eu sonhava,
também espinhos infernais continha.

Contra a própria vontade é que eu te amava,
sem a esperança de que fosses minha.
Por teu orgulho, não serás escrava.
Por meu orgulho, não serás rainha.

Adeus. Beijo-te a mão, tendo a certeza
de que procuras, disfarçando o pranto,
não demonstrar a mínima tristeza.

E ambos sorrindo, e pálidos de espanto,
em nossos olhos vemos, com surpresa,
que é por capricho que sofremos tanto!

A VERDADE É MAIS ESTRANHA QUE A FICÇÃO

Beijei-te. Acabo de sonhar contigo.
E, ainda meio dormindo e mal desperto,
para minha saudade e meu castigo,
sinto-me longe, quando estavas perto.

Sonho! Mais que a verdade que investigo,
e em ti somente tenho descoberto,
tu, que és de fato o verdadeiro amigo,
menos enganas, sendo embora incerto.

Se a vida ilude, distinguir quem há de,
na aparência de tudo quanto veja,
se o sonho é mais falaz do que a verdade?

A boca da mulher que se deseja
da-nos sempre a ilusão, na realidade,
de que apenas sonhando é que se beija.

SE EU FOSSE DEUS

Se eu fosse Deus seria a vida um sonho,
Nossa existência um júbilo perene!
Nenhum pesar que o espírito envenene
Empanaria a luz do céu risonho!

Não haveria mais: o adeus solene,
A vingança, a maldade, o ódio medonho,
E o maior mal, que a todos anteponho,
A sede, a fome da cobiça infrene!

Eu exterminaria a enfermidade,
Todas as dores da senilidade,
E os pecados mortais seriam dez...

A criação inteira alteraria,
Porém, se eu fosse Deus, te deixaria
Exatamente a mesma que tu és!

EU JÁ TE AMAVA

Antes de conhecer-te, eu já te amava.
Porque sempre te amei a vida inteira:
Eras a irmã, a noiva, a companheira,
A alma gêmea da minha que eu sonhava.

Com o coração, à noite, ardendo em lava
Em meus versos vivias, de maneira
Que te contemplo a imagem verdadeira
E acho a mesma que outrora contemplava.

Amo-te. Sabes que me tens cativo.
Retribuis a afeição que em mim fulgura,
Transfigurada nos anseios da Arte.

Mas, se te quero assim, por que motivo
Tardaste tanto em vir, que hoje é loucura,
Mais que loucura, um crime desejar-te?

OTELO

Quem minha angústia suportar, prefira
a morte, redentora, à desventura
de não poder, nas vascas da loucura,
distinguir a verdade da mentira.

Infrene dúvida, implacável ira,
esta que me alucina e me tortura!
— Ter ciúmes da luz, formosa e pura,
do chão, da sombra e do ar que se respira!

Invejo a veste que te esconde! a espuma
que, beijando teu corpo, linha a linha,
toda do teu aroma se perfuma!

Amo! E o delírio desta dor mesquinha,
faz que eu deseje ser tu mesma, em suma,
para ter a certeza de que és minha!

INCONTENTADO

Quando em teus braços, meu amor, te beijo,
se me torno, de súbito, tristonho,
é porque às vezes, com temor, prevejo
que esta alegria pode ser um sonho.

Olho os meus olhos nos teus olhos... Ponho,
trêmulo, as mãos nas tuas mãos... E vejo
que és tu mesma, que és tu! E ainda suponho
Ser enganado pelo meu desejo.

Quanto mais, desvairado de ansiedade,
do teu corpo, meu corpo se avizinha,
mais de ti, junto a ti, sinto saudade...

- E o meu suplício atroz não se adivinha,
quando, beijando-te, o pavor me invade
de que em meus braços tu não sejas minha!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou. 1. ed. Rio de Janeiro, 1963.

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