quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Mário Quintana em Prosa e Verso


VIDA

A vida era muito mais intensa quando não passava, na média, de 40 anos. Agora é um longo, um interminável arrastar de correntes: nós somos as almas penadas deste mundo.

"A POESIA É NECESSÁRIA"

Título de uma antiga seção do velho Braga na Manchete. Pois eu vou mais longe ainda do que ele. Eu acho que todos deveriam fazer versos. Ainda que saiam maus, não tem importância. É preferível, para a alma humana, fazer maus versos a não fazer nenhum. O exercício da arte poética representaria, no caso, como que um esforço de auto-superação.

É fato consabido que esse refinamento do estilo acaba trazendo necessariamente o refinamento da alma. Sim, todos devem fazer versos. Contanto que não venham mostrar-me.

E QUANDO SE APROXIMOU A HORA

E quando se aproximou a hora, o Anjo da Encarnação perguntou-lhe:

- Que queres ser na face da Terra?

- Um polígono regular estrelado.

- O quê?!

Um polígono regular estrelado - repetiu imperturbavelmente a alma do nascituro.

"Mais um..." - pensou o Anjo. Mas, como os anjos e os poetas são os únicos que não riem dos loucos, limitou-se a objetar:

- E por que não um poliedro? Vais viver num mundo de três dimensões e bem sabes que um polígono apenas tem duas. Lá só existirias na face do papel, e não propriamente na face da Terra.

- Por isso mesmo.

O Anjo desta vez não compreendeu muito bem e retirou-se, dando de asas.

E foi assim que, quando chegou a hora, veio ao mundo mais um louco. E um "louco simétrico"!

Chamou-se, entre os homens, Edgar Allan Poe.

OS DANÇARINOS DO ARAME

Dentro das atuais coordenadas do espaço e do tempo, aqui nos vamos equilibrando sobre este fio de vida.

Que rede de segurança, pensamos nós, cheios de esperança e medo, que rede de segurança nos aparará?

LUZ POR DENTRO

Mas há uma beleza interior, de dentro para fora, a transluzír de certas avozinhas trêmulas, de certos velhos nodosos e graves como troncos. De que será ela feita, que nem notamos como a erosão dos anos os terá deformado.

Deviam ser caricaturas mas não fazem rir, uns aleijões mas não causam pena. O mesmo não nos acontece ante o penoso espetáculo de um animal velho. Eu gostaria de acreditar que essa inexplicável beleza dos velhos talvez fosse uma prova da existência da alma.

DEPOIS DE LER

Depois de ler, por cima de meu ombro, as linhas precedentes, observou-me o João Sabiá:

- Mas tu já não falaste na incompreendida beleza dos sapos, na beleza transcendental de um matungo de inverno? Isso é a alma deles?!

- Não, é a minha alma...

O ASSUNTO

E nunca me perguntes o assunto de um poema: um poema sempre fala de outra coisa.

A CARTA

Quando completei quinze anos, meu compenetrado padrinho me escreveu uma carta muito, muito séria: tinha até ponto-e-vírgula! Nunca fiquei tão impressionado na minha vida…

PROPRIEDADE

Nunca digas que um verso está de pé quebrado: ele está é de asa quebrada.

O POETA E A MENINA

Hoje ganhei o meu dia. Porque uma meninazinha me perguntou: "O senhor pode me botar uma dedicação neste livro?" Escrevi, então, sinceramente: "Para a Heloísa Maria, com toda a minha dedicação". E assinei. E datei, com tristeza.

A DATA

Sim, o mais triste das dedicatórias são as datas.

Fonte:
Mário Quintana. Caderno H. Porto Alegre/RS: Globo, 1973.

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