sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Arthur de Azevedo (A Ama – Seca)


O Romualdo, marido de D. Eufêmia, era um rapaz sério, lá isso era, e tão incapaz de cometer a mais leve infidelidade conjugal como de roubar o sino de São Francisco de Paula; mas – vejam como o diabo as arma! Um dia D. Eufêmia foi chamada, a toda a pressa, a Juiz de Fora, para ver o pai que estava gravemente enfermo, e como o Romualdo não podia naquela ocasião deixar a casa comercial de que era guarda-livros (estavam a dar balanço), resignou-se a ver partir a senhora acompanhada pelos três meninos, o Zeca, o Cazuza, o Bibi, e a ama-seca deste último, que era ainda de colo. Foi a primeira vez que o Romualdo se separou da família.

Custou-lhe muito, coitado, e mais lhe custou quando, ao cabo de uma semana, D. Eufêmia lhe escreveu, dizendo que o velho estava livre de perigo, mas a convalescença seria longa, e o seu dever de filha era ficar junto dele um mês pelo menos. O Romualdo resignou-se. Que remédio!…

Durante os primeiros tempos saía do escritório e metia-se em casa, mas no fim de alguns dias entendeu que devia dar alguns passeios pelos arrabaldes, hoje este, amanhã aquele. Era um meio, como outro qualquer, de iludir a saudade. Uma noite coube a vez ao Andaraí Grande. O Romualdo tomou o bonde do Leopoldo, e teve a fortuna ou a desgraça de se sentar ao lado da mulatinha mais dengosa e bonita que ainda tentou um marido, cuja mulher estivesse em Juiz de Fora. Nessa noite fatal a virtude do Romualdo deu em pantanas: tencionando ele ir até o fim da linha, como fazia todas as noites, apeou-se na Rua Mariz e Barros, ali pelas alturas da Travessa de São Salvador. A mulata havia se apeado algumas braças antes.

E ele viu, à luz de um lampião, o vulto dela saltitante e esquivo, e apressou o passo para apanhá-la, o que conseguiu facilmente, porque, pelos modos, ela já contava com isso. – Boa noite!

– Boa noite.

– Como se chama?

– Antonieta.

– Pode dar-me uma palavra?

– Por que não falou no bonde?

– Era impossível… estava tanta gente… e estes elétricos são tão iluminados.

– Mas o sinhô bolinou que não foi graça! Vamos, diga: que deseja?

– Desejo saber onde mora.

– Não tenho casa minha; tou empregada numa famia ali mais adiente, por siná que não stou satisfeita, e ando procurando outra arrumação.

– Onde poderemos falar em particular?

– Não sei.

– Você sai amanhã à noite?

– Amanhã não, porque saí hoje, e não quero abusá.

– Então, depois de amanhã?

– Pois sim.

– Onde a espero?

– Onde o sinhô quisé.

– Na Praça Tiradentes, no ponto dos bondes. As oito horas.

– Na porta do armazém do Derby?

– Isso!

– Tá dito! Inté depois d’amanhã às oito hora.

– Não falte!

– Não farto não!

No dia seguinte, o Romualdo contou a sua aventura a um companheiro de escritório que era useiro e vezeiro nessas cavalarias… baixas, e o camarada levou a condescendência ao ponto de confiar-lhe a chave de um ninho que tinha preparado adrede para os contrabandos do amor.

Antonieta foi pontual. À hora marcada lá estava à porta do Derby, com ares de quem esperava o bonde.

O Romualdo aproximou-se, fez um sinal, afastou-se e ela seguiu-o…

Dez dias depois, estava ele arrependidíssimo da sua conquista fácil, e com remorsos de haver enganado D. Eufêmia, aquela santa! Procurava agora meios e modos de se ver livre da mulata, cuja prosódia era capaz de lançar água na fervura da mais violenta paixão.

Vendo que não podia evitá-la, tomou o Romualdo a deliberação de fugir-lhe, e uma noite deixou-a à porta do ninho, esperando debalde por ele. Lembrou-se, mas era tarde, que havia prometido dar-lhe um anel, justamente nessa noite.

– Diabo! pensou ele, Antonieta vai supor que lhe fugi por causa do anel!

Voltou, afinal, D. Eufêmia de Juiz de Fora. Veio no trem da manhã, inesperadamente, e já não encontrou o marido em casa.

Estava furiosa, porque a ama-seca de Bibi deixara-se ficar na estação da Barra. Podia ser que não fosse de propósito. O mais certo, porém, era o ter sido desencaminhada por um sujeito que vinha no trem a namorá-la desde Paraíbuna.

Quando D. Eufêmia contou isso ao marido, acrescentou indignada:

– Que homens sem-vergonha!… Não podem ver uma mulata!…

O Romualdo perturbou-se, mas disfarçou, perguntando:

– E agora? E preciso anunciar! Não podemos ficar sem ama-seca!

– Já mandei o Zeca pôr um anúncio no Jornal do Brasil.

No dia seguinte, o Romualdo saiu muito cedo; ao voltar para casa, a primeira coisa que perguntou à senhora foi:

– Então? Já temos ama-seca?. .

– Já! É uma mulatinha bem jeitosa, mas tem cara de sapeca. Chama-se Antonieta.

– Hem? Antonieta?

– Que tens, homem?

– Nada! Não tenho nada… É jeitosa?… Tem cara de sapeca?… Manda-a embora! Não serve! Nem quero vê-la!…

– Ora essa! Por quê? Olha, ela aí vem.

Antonieta chegou, efetivamente, com o Bibi ao colo, mas o Romualdo tinha fechado os olhos, dizendo consigo:

– Que escândalo!… rebenta a bomba!… este diabo vai reclamar o anel!.

Mas como nada ouvisse, o mísero abriu os olhos e – oh! milagre! – era outra Antonieta!.

Ele pensou, os leitores também pensaram que fosse a mesma, não era.

Decididamente, há um Deus para os maridos que enganam as suas mulheres.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Um comentário:

Admirável Mundo Velho disse...

Delicioso conto! Deliciei-me com a leitura. Pareceu-me mesmo que o Romualdo fosse eu.