quarta-feira, 8 de maio de 2019

Antonio Cabral Filho (2º Colar ABC em Trovas)


Organizador: Antonio Cabral Filho - RJ
Tema - Fugacidade

Obs.: o primeiro verso se inicia com a letra A e a estrofe fecha com a letra B. Assim, o segundo trovador dará sequencia a partir da letra B, fechando na letra C. E assim por diante, cada trovador fará sua sequencia. Vale lembrar que não podemos fugir do tema nem repetir autores, exceto em caso de faltar quem queira continuar:
*FUGACIDADE*


01- A
Às vezes, sem mais nem menos,

foge-me do pensamento,
em aluviões pequenos,
Belezas do firmamento.
Antonio Cabral Filho - RJ


02 - B
Belezas do firmamento,
noites plenas de luar,
provocam meu pensamento
com um fugaz desejar.
Márcia Jaber - MG


03 - C
Com um fugaz desejar,
lembro o teu rosto e te espero,
mas não sei se vou aguentar
dor por não ter quem eu quero.
Claudia Bergamini - PR


4 - D
Dor por não ter quem eu quero
é uma dor passageira,
por isso eu não desespero
e vivo à minha maneira.
Antonio Francisco Pereira - MG


5 - E
E vivo à minha maneira,
sempre alegre e otimista,
dançando toda faceira,
formando-me uma passista...
Ester Figueiredo - RJ

6 - F
Formando-me uma passista
vou em meus sonhos bailar,
faço da vida uma pista,
giro até eu te encontrar!
Rita de Cássia - MG


7 - G
Giro até eu te encontrar
Pelas ruas, sem mutreta,
Vendo a vida a se lançar
Hoje e sempre na sarjeta.
Francisco Queiroz - RN


8 - H
Hoje e sempre na sarjeta
vejo n'água o meu reflexo,
mas é coisa do capeta,
ideia que não tem nexo!
Oliveira Caruso - RJ


9 - I
Ideia que não tem nexo
é achar que Jesus Cristo,
separa a gente por sexo,
jamais acredito nisto!
Aurineide Alencar - MS


10 - J
Jamais acredito nisto,
pois não é minha verdade:
somos a imagem de Cristo;
luz de intensa claridade.
Ronnaldo Andrade - SP


11 - L
Luz de intensa claridade
que mostra o abraço do irmão,
rápido, mas na verdade,
me tirou da escuridão.
Romilton Faria - MG

12 - M
Me tirou da escuridão
e está sempre ao meu lado,
dando paz ao coração:
não posso ficar calado.
Madalena Cordeiro - ES


13 - N
Não posso ficar calado
aos tormentos do coração
fique atento a este recado:
ouça cada pulsação!
Rita de Cássia - MG


14 - O
Ouça cada pulsação,
quando estamos bem juntinhos,
exaltado coração, 
perdido nos teus carinhos.
Claudia Bergamini - PR


15 - P
Perdido nos teus carinhos,
absorto de paixão,
eu percorro teus caminhos
querendo mais explosão.
Francisco Queiroz - RN

16 - Q
Querendo mais explosão
vivo a vida a te esperar
e com amor em profusão...
Rezo para te encontrar!
Dilercy Adler - MA

17 - R
Rezo para te encontrar
por essa estrada, meu bem.
Estou morrendo de amar,
saudade mata também.
Aurineide Alencar - MS


18 - S
Saudade mata também,
já dizia minha avó,
que teve seu grande bem.
Tanto sofrer. Quanta dó.
Dilercy Adler - MA

19 - T
Tanto sofrer. Quanta dó
quando o amor vai embora;
dia e noite sem xodó,
usurpa-se a minha hora.
Francisco Queiroz - RN


20 - U
Usurpa-se a minha hora
essa densa tão ferida,
de só ater-me no agora,
vivendo a arte com vida
Vanda Salles - RJ


21 - V
Vivendo a arte com vida
encontro a felicidade,
deixo a vida divertida,
xeque-mate na maldade.
Claudia Bergamini - PR

22 - X
Xeque-mate na maldade
isso é tudo o que mais quero,
grito de felicidade
sanfona  no meu bolero.
Madalena Cordeiro - ES


Fonte:
Trovadores do Brasil

Chico Anysio (Domingo em Madureira)


Depois do primeiro galo, cantaram todos da rua. Era domingo, no entanto, um dia em que os galos não têm necessidade de acordar tão cedo assim.

— Cocorocó!... — fez o galo de Climério, o primeiro, sempre, a cantar.

Climério acordou com o canto, habituado que estava. E era domingo. Domingo! O dia da sua folga. Serem cinco da manhã não tinha tanta importância quanto a importância que tinha o fato de ser domingo.

Climério abriu a bocarra num bocejo longo e bom. Emitiu um som grunhido na espreguiçada comprida, reconfortante chia­do, botando fim no bocejo. Coçou a perna ao comprido, deu mais jeito nos cabelos. Um comecinho de dia entrava pela janela, duvidando da cortina — falha da veneziana. A mulher abriu os olhos e lembrou que era domingo.

— Dorme, Climério, ainda é cedo.

— Cinco horas.

— É domingo.

Ele fez que não ouviu. Achou o par de chinelos debaixo de sua cama, vizinho ao urinol — mau hábito que a mulher insistia em preservar — e, a arrastá-los sem pressa, dirigiu-se ao banheiro.

A mulher ficou na cama, forçando a volta do sono.

A torneira despejou uma água quase morna. Era janeiro. Um domingo de janeiro em Madureira. Climério, de mãos em concha, lavou o rosto três vezes. Não fez barba. Era domingo, dia de folga pra cara. Gargarejou com escândalo. Urinou e urinou-se.

Esqueceu de dar descarga.

Depois, voltou para o quarto, onde a mulher já se sentava na cama, na oração de acordar. Persignou-se ao final da prece.

O despertador barato indicava cinco e quinze. A mulher, por se acordar, iria à missa das seis.

Climério abriu a janela para o dia que nascia. O dia entrou no quarto, espalhando-se sem pressa, por saber que era domingo.

Climério desamarrou o cadarço do pijama. Deixou que as calças caíssem. Saiu delas, que ficaram amarrotadas no chão. Vestiu uma roupa velha. Era domingo, não iria trabalhar, não teria que bater ponto na repartição.

Julieta, sua esposa, sugeriu que ele acordasse as meninas e Julinho. Foi, depois, para o banheiro, onde sentou confortável para o primeiro xixi de jato que acalentava. Deu descarga, no final.

De longe chegaram os cantos de outros galos. Ou dos mesmos. Segundo aviso do dia. Climério se espreguiçou, bateu na barriga enorme.

— São gases... — sentenciou, para explicar o ruído muito oco e um tanto surdo, quase baticum de bumbo, que as pancadas produziam.

Julieta pôs-se nua. Climério estendeu-lhe lerdo a combi­nação pendida e que ela pôs sobre a pele. Julieta não usava nem calça nem sutiã. Tinha cara de sofrida a lhe aumentar a idade. Era magra c agrisalhada. Sofria de reumatismo e era dada a varizes, por tanto ficar de pé no seu trabalho diário. Em casa fazia tudo, inclusive os uniformes dos meninos que estudavam num colégio estadual.

Climério empurrou os sapatos para debaixo da cama. Sentiu os pés confortáveis no velho chinelo gasto. Saiu do quarto. Tirava resto de sono dos olhos.

De cama em cama seguiu, acordando os filhos: as três meninas e Júlio, o filho do seu encanto que servia na Aeronáutica.

— Que horas são?

— São cinco e meia.

As filhas se levantaram. Não queriam perder a missa das seis. Muito mais aproveitavam o dia lindo que vinha. Podiam até ir à praia. A de Ramos, como sempre.

Julinho demorou mais. Tinha tempo. Ronronou. A pelada a ser jogada no campo do Confiança só começaria às oito. Dormiu o resto do sono. Podia. Era domingo. Dia de glória! Uma pena que sempre fosse tão curto e um só por semana.

Climério foi à cozinha no automatismo de hábito. O café de ontem à noite requentou em banho-maria. Julieta entrou de­pois, tentando, com o polegar, coçar as costas no ponto em que sentia coçar. Acompanhava a coceira com um bocejo pro­longado. Pediu socorro ao marido.

— Coça aqui.

Ele coçou. Custou a achar o lugar.

— Todo mundo já acordou?

— As meninas. Júlio, não.

— Você já viu o leitão? — perguntou, sem interesse, en­quanto tirava a tampa do bule que requentava o café feito de véspera, preguiça que cultivava num comodismo idiota. — O leitão cabe no forno?

— Hum, hum — ela fez que sim.

Do banheiro vinha o ruído de dentes que se escovavam. Quase às seis entraram as filhas, já vestidas para a missa. En­traram as três em vestidos cor-de-rosa. Cada uma fez a parte que lhe cabia fazer. O leite foi recolhido por uma, o pão, por outra. Dircinha acendeu o fogo que aqueceria a leiteira. Café com leite tomavam somente ao voltar da missa. Climério sabia o momento de pôr o leite no fogo. Só que hoje anteci­para uma hora esse costume, por ter levantado às cinco, e não às seis, tempo certo de levantar aos domingos.

Julieta e as três mocinhas tomaram um cafezinho e, depois, apressadas, saíram à procura de Jesus. No domingo comungavam.

Climério foi ao quintal, reparando no que havia a ser feito. A tela do galinheiro... a cerca que separava o terreno do vizinho... a velha calha do alpendre... uma torneira enjam­brada ... Havia sempre umas coisas a arrumar no domingo.

O filho apareceu com a chuteira escondida numa sacola "Adidas".

— Vai jogar?

— Bater uma bola.

Perguntou por perguntar. Respondeu por responder.

Saíram antes que as filhas regressassem da igreja. Julinho pegou o ônibus, Climério entrou no bar.

— Duas garrafas de pinga! — mandou ao botequineiro, também recém acordado, olho inchado, cara marcada de tra­vesseiro.

— Duas?

— Duas. Praianinha. É pra fazer uma batida. Tem limão aí, Seu Severo?

Tinha, e do sumarento. Ele levou uma dúzia.

Fazia muito calor, e o sol já tinha chegado, prometendo 38, na hipótese mais mansa.

Climério guardou os limões, já cortados, na panela. O re­lógio consultado informou que era hora de pôr o leite a ferver.

Ele fez. Deu de comer aos passarinhos queridos, com beijos es­peciais a cada um que servia. Assobiou agudo, fez cantar o sabiá.

Sete e meia a mãe e as filhas retornaram da igreja com o Jornal dos Sports, que nunca se esqueciam de comprar para Climério.

— Você tem que consertar a tela do galinheiro — era a esposa lembrando o que ele já sabia.

O leite chiou no fogo, transbordante. Ele correu. Tomaram café com leite, e o pão os cinco comeram, barrado de margarina.

— Mamãe, nós vamos na praia — avisaram as três filhas, sumindo no corredor para vestir os biquínis, sem esperar que a mãe concordasse ou desse contra.

Julieta recolhia a louça do desjejum. Climério chupando os dentes, palito inútil na boca, checava a escalação dos times pra logo mais.

O compadre apareceu eram quase nove horas. Trazia na cara a cara que a gente usa aos domingos. Com ele, vinha a mulher — comadre Emerenciana — muito alegre, como sempre; como sempre muito gorda.

— Quem é vivo sempre chega! — Climério estreitou o compadre num abraço comovido.

— Bote água no feijão — disse Juca a Julieta e depois mandou risada.

Num canto, as duas comadres contavam suas mazelas.

— E o reumatismo, comadre?

— No verão não incomoda. As pernas é que me doem, que já nem sei o que faça.

— Eu sei de uma receita que o caboclo da Onilda ensinou.

A chegada dos compadres endomingou mais a casa.

— Como é? Tem um leitão? — era Juca quem falava. — É leitão mesmo, ou vocês mataram um gato e assaram? — e gargalhou de dobrar, engasgando-se.

— São Brás! São Brás! — invocava a mulher com afli­ção, enquanto Climério, rindo, lhe dava tapas nas costas.

— Esse Juca não tem remédio — comentava Julieta, en­quanto se dirigia, com a comadre, à cozinha para cuidar do almoço.

— Deixe, que eu faço a batida — disse Juca, já tirando o paletó e a gravata.

Às dez horas tudo havia mudado um pouco de jeito. Eme­renciana usava um vestido amarfanhado — Julieta emprestara — e Juca vestia um short.

Uma garrafa e dois copos acompanharam os compadres, que se foram pro quintal com pregos, martelo, arame, apetre­chos de conserto. Juca ia dar u'a mão nos consertos a fazer.

— O galinheiro é comigo! — gritou Juca.

— Manda brasa!

A disposição de Juca cresceu com a batida que Climério lhe estendeu. Comentou:

— Tá de lascar! Vira aqui.

E ele bebeu a oitava de um só gole.

O vizinho apareceu com um prato de bolinhos — batata com bacalhau — tira-gosto que chegava no momento mais preciso.

Deu onze horas na igreja. O filho voltou suado, restos de lama no corpo.

— 5x2 — comunicou. — Eu fiz os dois, de cabeça.

Ficou, ainda sem banho, ajudando a Juca e ao pai, que trabalhavam o possível na cerca e na batidinha.

— Tá demais, essa batida.

As galinhas, irritadas, ciscavam sem precisão. Cacarejavam e voavam, odiando o toque-toque do barulho do conserto que os compadres faziam. A cerca não deu trabalho. Em meia hora acabaram.

As filhas, vindas da praia no Nash verde de Rui, namorado de uma das três, chegaram quinze pras duas.

— Boa tarde, Seu Climério — Rui cumprimentou solene, sem nenhuma intimidade.

Rui juntou-se à mão-de-obra dos três que já trabalhavam — Juca, Julinho e Climério — e a torneira foi tirada para o reparo preciso.

— Um pedacinho de sola — pediu Seu Juca, entendido.

Climério providenciou, cortando um velho sapato.

— Comé? Não se bebe nada? — inquiriu Juca, risonho, voz já saindo difícil, pastosa, meio embrulhada.

— Tamos aqui, cidadão! — e Climério encheu o copo de modo desajeitado, batida caindo farta pelas bordas, pela mão.

Na cozinha, as comadres. Entremeando a conversa sobre a vida, cortavam as frutas a usar na salada costumeira.

A filha mais velha — Irene — secando o cabelo ao sol, cantava Roberto Carlos com uma voz desagradável. A do meio, no banheiro, fazia qualquer coisinha antes de encarar o chuveiro. A mais nova, Suzaninha, molhava o sofá de plástico com o maiô ainda úmido.

Rui despediu-se e se foi para voltar pro leitão. O forno aceso trazia à cozinha o cheiro bom do leitão que já dourava.

Júlio brigava e brigava pedindo prioridade para usar o banheiro.

A calha velha do alpendre, como num esfregar de olhos, Juca deixou como nova. Fez por merecer o prêmio: a batida de limão que Climério lhe estendia.

— Nessa aqui eu caprichei.

Provou.

— Está uma brasa!

Julinho reapareceu com a camisa justa, manga curta e mais dobrada, dando jeito no topete — cabeleira demodê que in­sistia em usar. Mostrou que ia sair.

— Não vai almoçar, Julinho?

— Não dá, mãe, tô com pressa. Como um troço por aí.

Pegou o rádio de pilha e saiu para o estádio. Ia ver o Olaria enfrentar o Madureira.

Às quatro Rui retornou, trazendo numa sacola meia dúzia de garrafas que foram pra geladeira. Santas Brahmas do domingo!

O leitão foi posto à mesa. Copos cheios de batidas eram fácil devorados em goles longos e frios.

Na tevê, o animador pregou um sorriso na cara. Era do­mingo, dia bom pra sorrir.

Na mão de Emerenciana surgiram as Brahmas geladas.

— Vira, vira, vira. . .

— Vira, vira, vira. . .

Beberam as seis e mais seis que Rui pegou no boteco.

Na rua, as crianças jogavam um racha com o gol demar­cado por tijolos. Era domingo, quase não passavam carros.

Comeram falando muito e muito desencontrado. Ninguém prestava atenção ao que os outros falavam e cada um respondia à pergunta que queria, sem se importar se a resposta levava endereço certo.

Saíram Rui e as moças para um cinema provável.

O arroto de Climério avisou que ele acabara.

— Saúde — lhe disse Juca, rindo de cuspir farofa.

As comadres, na cozinha, rasparam os pratos no lixo. Con­versavam sobre o aumento que os maridos garantiam receber dentro de pouco tempo. Depois, então, se ensinaram novos pon­tos de tricô.

— Um cafezinho, compadre — ofereceu Julieta, com um sorriso maroto.

Era tarde. Já dormiam. Climério e Juca, os compadres, já não prestavam atenção ao que se passava em volta. Dormiam...

— Dormindo!

— Deixa.

Afinal, era domingo.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Daniel Maurício (Poemas Avulsos) III


Não meço o teu amor
Nem sequer dele peço provas
Me entrego sem temor
E em teus braços esqueço as horas.
Faça frio ou faça calor
Em ti eu me abrigo
Sentindo o coração falar pro teu,
Como é bom estar contigo.
=================================

Entre as pedras
Pequenas sementes de lua
Carregadas de meninice
Desejam viajar.
Basta um assopro
E os sonhos ganham voo
Nas asas do vento-garoto
Que sorridentes,
Se entregam ao livre planar.
=================================

Ainda passeia em minha pele
O teu cheiro cioso
Que transborda tão gostoso
Por entre as dobras do lençol.
A poesia encharcada de nós
Também ainda dança
No quarto desarrumado
Que bela lembrança!
Confundo os nomes
Esqueço os pronomes
E por instantes sou só teu.
=================================

Da pequena flor amarela
A rã fez um sol
Pra aquecer a alma dela
Que estava carente de amor
Mas o calor foi crescendo
E acabou recebendo
Da borboleta um protetor
Assim o dia ficou incrível
E a rã acabou descobrindo
Que o amor é o melhor cobertor.
=================================

No silencioso espelho d'água
Converso com o irmão gêmeo que nunca tive,
Mas que sempre me acompanhou
Quem sabe ele era os cochichos da alma
Indicando o caminho com setas
Mas que preferia chamar de intuição
No reflexo silencioso do espelho d'água
As imperfeições perfeitamente a mostra
Tiram a máscara do eu-narciso
Que se convence que somos breves
Bastando um pingo de chuva nas águas do tempo
A imagem vira onda
Zummmmm...
E a ilusão se acabou.
=================================

Poema infantil

Roinque, roinque, roinque
O porquinho está alegrete
Hoje é o seu aniversário
De presente ganhou sorvete.
Não importa o sabor
Sendo de frutas todos apetece
Pois além de tapiar o calor
De energia o corpo enriquece.
Roinque, roinque, roinque
O porquinho agradece.
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Vindos da terra dos sonhos
Os pássaros outrora ciganos
Dão pausa aos cantos
Deixando que o encanto
Fique por conta
Do silêncio das cores.
Pássaros flores
Descansam suas asas
No campo fazem moradas,
Criam raízes
Conservam as matizes
E em flores se transformam.
Na paisagem bucólica
Meus olhos em ninho
Acolhem os passarinhos
Que só com o vento passeiam.
=================================

Somos presas
Indefesas
Contra as garras afiadas do tempo
Mas o amor e a amizade
São botox de verdade
Que amenizam
O sofrimento.
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Caminhos traçados
Amarrotados nós.
Lembranças colhidas,
Onde eu e tu
Éramos nós.
Antevendo o fim
A razão procura
Novos recomeços,
Mas no verso do vento
Com o teu cheiro
Ainda estremeço.
Eta, coração travesso!
=================================

Grita em mim
Tuas palavras engasgadas
Palavras rasgadas
Palavras molhadas de adeus.
Grita em mim
O inesperado silêncio
O gesto do lenço
Antevendo o fim.
Grita em mim
A carne nua do desejo
Abafada pela ausência do beijo
Que voou em outra direção.
Grita em mim
O amor ainda latente
Vulcão em cinzas quentes
Cavando um sim pra ressurgir.
Ah! Como grita em mim,
O silêncio do teu olhar.

Fonte:
AVIPAF (Facebook)

Carolina Ramos (A Família Abano)



Seu Abano nascera de sete meses. Mirradinho. Pernas e braços finos, que nem caniço de bambu. Todo olhos e orelhas. Na pia batismal, recebeu o nome de Felizberto. Bertinho, para os pais. E, mais adiante, Abano, para quantos lhe medissem, com espanto, as orelhas avantajadas, que lembravam duas ventarolas. Orelhas teimosas. Levaram a mãe do menino ao desespero, na ânsia de vê-las fixas mais próximo da cabeça. Inúteis os esparadrapos, as fitas adesivas, as toucas de meia, as ataduras de gaze, que davam ao garoto a aparência de alguém fugido às trincheiras ou sobrevivente a alguma catástrofe.

Catástrofe mesmo, eram a tais orelhas! Rebeldes, insubordinadas, resistentes a qualquer medida disciplinatória! Por causa delas, Fellzberto, que a partir do nome, tinha tudo para ser feliz, não era. Vivia cercado de chacotas e deboches e piparotes. Alvo frequente das impertinências da molecada do bairro e, mais tarde, dos colegas de classe. Quem mais sofria, por ver sofrer o filho, era a infortunada mãe. Morreria sem se conformar! Felizberto, ou Bertinho, teve cedo o nome trocado. O apelido — Abano — impôs-se por força das circunstâncias. Ou, melhor dizendo, das evidências. Que bastava olhar, para aceitá-lo. E ninguém, jamais, questionou a troca de nomes. Abano cresceu carregando nos ombros o peso da alcunha.

O amor que nele eclodiu, por Giovana, foi paixão à primeira vista! A garota tímida, cabelo puxado para atrás, intencionalmente prendendo as pontas das orelhinhas rosadas, exerceu sobre ele uma atração irresistível. As orelhinhas, sempre escondidas, intrigavam-no. Despertavam-lhe suspeitas que o levaram a ousadias. Tão logo teve oportunidade, desvendou o mistério. A pretexto de um carinho, libertou uma das conchinhas rosadas que saltou, lépida como asa de borboleta, livre de amarras! Constrangimento por parte da moça. Emoção e íntimo júbilo iluminaram os olhos de Abano. Identificação total! Perfeita! Se duvidara, antes, dos próprios sentimentos, nada mais havia a temer!

Casaram-se pouco depois. Mais nove meses e nascia o primeiro filho, trazendo a marca registrada da família — orelhas de abano. Um após outro, no total de cinco, chegaram novos rebentos portando, sempre, as características inconfundíveis do pai e da mãe. Em consequência, a prole dividia entre si os mesmos desgostos, as mesmas angústias dessa herança indesejável, impossível de ser descartada.

E assim foi, até que preocupação maior assumiu o primeiro plano. Abano I, ou seja, o primeiro filho do casal, não mais escondeu o macabro interesse por bichos mortos. Virou esquartejador de primeira! Não havia gato, ou cachorro atropelado, que lhe escapasse. Nem rato morto. Nem passarinho. Não raro, horrorizava quem o surpreendia a abrir a barriga desses bichos, vasculhando o mórbido conteúdo, com minuciosidade alarmante! Isto custou-lhe muito pescoção. — "Que porcaria é essa, menino?!" E tome tabefe, E tome beliscão e castigo. — "Seu coisa ruim! Você matou o gato!"

— "Matei, não! Eu só tava vendo que recheio ele tinha!" — a defesa não convencia e lá vinham as palmadas e ameaças. O que não acontecia, era puxação de orelhas. Isso, não! Questão de honra familiar. Não se agride um patrimônio. Tudo, menos puxão de orelhas! A preocupação da família cresceu, até que veio o esclarecimento. Abano I decidira-se profissionalmente: — queria ser médico. Caso de vocação explícita, que tudo esclarecia. Alívio geral!

De pronto, o jovem passou de malfeitor a herói. As economias foram carreadas para o seu lado. Os esforços, não medidos. Tudo é nada, quando a meta é a concretização de um sonho! Diploma na mão, Dr. Abano I conquistara o título de Cirurgião Plástico, disposto a embelezar o mundo. E não perdeu tempo. Começou pela família, dando um jeito nela. Um ponto lá, outro cá, e as orelhinhas rebeldes da mãe, dos irmãos e do filho recém nascido, ocuparam, definitivamente, o lugar devido.

O velho Abano, origem de toda essa rebelião auricular anti-estética, foi o único que não se submeteu à técnica. Acostumara-se com o visual da família. Por isso mesmo, estranhou a mulher. Estranhou os filhos. Estranhou o neto. E, quando, afinal, se foi, levou consigo, conformado, aquelas mesmíssimas insubordinadas orelhas que Deus lhe dera e que, aos trancos, conseguira amar!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Zé Ramalho (Universos de Versos Diversos)


CHÃO DE GIZ

Eu desço dessa solidão
Espalho coisas
Sobre um Chão de Giz
Há meros devaneios tolos
A me torturar
Fotografias recortadas
Em jornais de folhas
Amiúde!

Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes
Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes

Disparo balas de canhão
É inútil, pois existe
Um grão-vizir
Há tantas violetas velhas
Sem um colibri
Queria usar, quem sabe
Uma camisa de força
Ou de vênus

Mas não vou gozar de nós
Apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom

Agora pego
Um caminhão na lona
Vou a nocaute outra vez
Pra sempre fui acorrentado
No seu calcanhar
Meus vinte anos de boy
That's over, baby!
Freud explica

Não vou me sujar
Fumando apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom

Quanto ao pano dos confetes
Já passou meu carnaval
E isso explica porque o sexo
É assunto popular

No mais, estou indo embora!
No mais, estou indo embora!
No mais, estou indo embora!
No mais!

AVÔHAI

Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde quarava
Sua camisa e seu alforje de caçador

Oh meu velho e invisível
Avôhai
Oh meu velho e indivisível
Avôhai

Neblina turva e brilhante
Em meu cérebro, coágulos de sol
Amanita matutina
E que transparente cortina
Ao meu redor

E se eu disser que é mei sabido
Você diz que é mei pior
E pior do que planeta
Quando perde o girassol

É o terço de brilhante
Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo da porteira
Nem também da companheira
Que nunca dormia só

Avôhai!
Avôhai!
Avôhai!

O brejo cruza a poeira
De fato existe um tom mais leve
Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos
Que amargam as pessoas que fitar

Mas que bebem sua vida
Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas
Cabelos de avôhai

Na pedra de turmalina e no terreiro da usina eu me criei
Voava de madrugada e na cratera condenada eu me calei
E se eu calei foi de tristeza você cala por calar
E calado vai ficando só fala quando eu mandar

Rebuscando a consciência com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta no jogo de improvisar
Entrecortando eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa
Pra doutor não reclamar

Avôhai! Avôhai!
Avôhai! Avôhai!

MISTÉRIOS DA MEIA-NOITE

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada se apaixonou

Naquele mesmo tempo
No mesmo povoado se entregou
Ao seu amor, por quê?
Não quis ficar como os beatos
Nem mesmo entre Deus
Ou o capeta
Que viveu na feira

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada, se apaixonou

Naquele mesmo tempo
No mesmo povoado se entregou
Ao seu amor, por quê?
Não quis ficar como os beatos
Nem mesmo entre Deus
Ou o capeta
Que viveu na feira

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada, seu professor

Naquele mesmo tempo
No mesmo povoado se entregou
Ao seu amor, por quê?
Não quis ficar como os beatos
Nem mesmo entre Deus
Ou o capeta
Que viveu na feira

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada, seu professor

O GOSTO DA CRIAÇÃO

Somos o mundo girando no meio da imensidão
Algo que tem a verdade e o gosto da criação
Somos o muito e o pouco na múltipla sensação
Quando sacode a poeira do sagrado chão

Luzes explodem além do espelho que refletiu
Ao se afastar a imagem de alguém que você não viu
Não adianta mudar o destino que prosseguiu
Nem afastar o desejo que você sentiu

Como saber da final esperança pra saber
Que há fartura e muita bonança pra dizer
Onde fica o mágico fim é assim
É você e o gosto de mim

Pra saber onde fica o mágico fim é assim
É você e o gosto de mim

PORTA DE LUZ

De onde vem
Essa mania de saber
Como é bom
Quando estou perto de você
Parece o mundo
Que acabou de começar
Num movimento
De paixão e de silêncio

De onde foi
Que essa estrela apareceu
Que oceano ou que céu iluminou
A minha estrada tão comprida
Vai chegar ao seu final
Quando abraçar você

Só agora compreendi
Que o caminho que segui
Veio dar na sua porta de luz
Tudo agora está tão fácil
E seguro para nós
Minha voz está bem dentro da sua

Se for buscar
Aquele sonho
Eu vou
Para provar
Que amo só você

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Trova 349 - André R. Rogério


Contos e Lendas do Mundo (Índia: A Divindade dos Homens)

Houve um tempo em que todos os homens eram deuses. Mas eles abusaram tanto de sua divindade que Brahma, o mestre dos deuses, tomou a decisão de lhes retirar o poder divino. Resolveu então escondê-lo em um lugar onde seria absolutamente impossível reencontrá-lo. O grande problema era encontrar um esconderijo. Brahma convocou um conselho dos deuses menores, para juntos resolverem o problema.

- Enterremos a divindade do homem na terra, foi a primeira ideia dos deuses.

- Não, isso não basta, pois o homem vai cavar e encontrá-la.

Então os deuses retrucaram:

- Joguemos a divindade no fundo dos oceanos.

Mas Brahma não aceitou a proposta, pois achou que o homem, um dia iria explorar as profundezas dos mares e a recuperaria. Então os deuses concluíram:

- Não sabemos onde escondê-la, pois não existe na terra ou no mar lugar que o homem não possa alcançar um dia.

Brahma então se pronunciou:

- Eis o que vamos fazer com a divindade do homem: vamos escondê-la nas profundezas dele mesmo, pois será o único lugar onde ele jamais pensará em procurá-la.

Desde esse tempo, conclui a lenda, o homem deu a volta na terra, explorou escalou, mergulhou e cavou, em busca de algo que se encontra nele mesmo.

Fonte:
Contos de encantar

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) IX


EU ABRI OS MEUS OLHOS

Eu abri os meus olhos para a noite
e o céu se debruçou sobre minhas retinas...

Eu abri os meus olhos para a noite
e a claridade entrou pela minha alma escura
como gritos de festa...
-e a escuridão ao rasgou-me ante os punhais da luz
cravados na minha alma,
como as clareiras cravam lâminas de luz
no corpo da floresta...

Dos profundos mistérios do meu Ser
num estranho rumor de asas rufando
veio uma sombra que era luz na sombra
e que brotou do chão,
- veio... pousou nos meus olhos abertos
e voou buscando o céu que viu lá fora
batendo as asas da imaginação. ..
..................

Senti-me como a estátua de mim mesmo...
O meu corpo ficou como uma catedral
sonâmbula e vazia
onde se co'a a luz mortiça dos vitrais...
E a minha alma fugiu
(pobre alma sonhadora !)
pelos raios de luz dos vitrais dos meus olhos,
- tal como foge sempre
na ilusão de subir e não pousar jamais! . . .

EU TE QUERIA TÃO DIFERENTE

Há muito eu te esperava...

Mas eu queria que quando chegasses
trouxesses nos teus olhos vultos de bonecas;
e a tua boca sorrisse o sorriso dos botões
apenas entreabertos;
e as tuas mãos fossem como as folhas fechadas
de um livro que ninguém leu;
e a tua alma fosse mais pura do que a fonte
que canta dentro da pedra
e ainda por sobre a terra as águas não correu. . .

E tu chegaste...

Mas trouxeste nos olhos sombras estranhas
nuvens dentro de um céu;
e a tua boca sorri o sorriso das rosas encarnadas
cheias de sol e mel;
e as tuas mãos guardam vestígios de carícias que murcharam,
e a tua alma, apesar de ser grande e ser bela,
nos momentos de nossa exaltação,
às vezes me parece pálida e amarela,
como uma folha lida
e já relida
de um romance que andou talvez, numa outra mão.
.....................

Ah! Ninguém saberá nunca o quanto eu sou
desgraçado e infeliz na minha dor,
quando ao te amar assim, como louco
um doente,
encontro em teu amor, às vezes, casualmente,
os restos de outro amor!

EU... E ARVERS

Hás de ler estes versos algum dia
e mais ou menos pensarás assim:

"- ele ainda sofre muito, e esta poesia
escreveu-a, bem sei, pensando em mim...
Sou a mulher que a inspira e que a anima,
pensava em mim no instante em que compôs,
e na incógnita sutil de cada rima
há um pedaço da história de nós dois...
Sinto-me em cada verso, em cada frase,
e as palavras que leio são as minhas...
- Sou eu essa mulher!... Vejo-me quase
na expressiva mudez das entrelinhas..."

E sorrirás... Eu sei que sorrirás
ante a certeza do meu sofrimento,
- é o teu prazer, sorrir desse tormento
que me causaste... e que não finda mais...

Ah! Feliz foi Arvers, bem mais do que eu!
Ao menos, essa a quem ele escrevia,
perguntou certa vez depois que o leu:
- "que mulher será essa..."

E não sorria...

EXALTAÇÃO AO AMOR

Sofro, bem sei...Mas se preciso for
sofrer mais, mal maior, extraordinário,
sofrerei tudo o quanto necessário
para a estrela alcançar...colher a flor...

Que seja imenso o sofrimento, e vário!
Que eu tenha que lutar com força e ardor!
Como um louco, talvez, ou um visionário
hei de alcançar o amor...com o meu Amor!

Nada me impedirá que seja meu,
se é fogo que em meu peito se acendeu,
e lavra, e cresce, e me consome o Ser...

Deus o pôs...Ninguém mais há de dispor...
Se esse amor não puder ser meu viver,
há de ser meu para eu morrer de Amor!

EXAUSTÃO

Falta essência... A minha alma trêmula vacila
como  um astro a faiscar, distante, na amplidão...
Vai no ocaso o meu sol... como rubra pupila
a se afundar na noite em plena escuridão

Às descargas de luz de cada sensação
e os sísmicos abalos, minha pobre argila
na carne exausta e exangue aos poucos se aniquila
como um monte de palha que entra em combustão!

Vou rolando em meu Ser de nevrose em nevrose
e como um sol que morre estourando luz
minha morte há de ser uma grande apoteose...

Despencarei nas trevas assim como um meteoro
deixando o turbilhão dos versos que compus
como estrelas de um céu esplêndido e sonoro!

FADA
 
Tua figura suave, delicada
nem parece que vive, parece bordada,
- como a boneca de seda de um desenho
de uma antiga almofada que eu tenho...

Teus gestos, teus embaraços
fazem lembrar finos traços
de uma filigrana,
e tão frágeis me parecem, tuas mãos, teus braços,
que nem sei se és de carne ou se és de porcelana...

Bonequinha de louça
linda moça,
tua alma é um fio de seda, estou bem certo,
e a minha imaginação
criou para o teu destino uma lenda encantada:

- jura que tu fugiste de algum livro
e que eras a ilustração
de uma história de fada !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

domingo, 5 de maio de 2019

Arthur de Azevedo (A Viúva do Estanislau)


Por ocasião da morte do marido, aquele pobre Estanislau, que, depois de uma luta horrível, foi afinal vencido pela tuberculose, Adelaide parecia que ia também morrer. Dizia-se que ela amava tanto o marido, que fizera o possível para contrair a moléstia que o matou e acompanhá-lo de perto no túmulo. Emagreceu a olhos vistos, e toda a gente contava que, mais dia menos dia, Deus lhe fizesse a vontade; mas o tempo, que tudo suaviza e repara, foi mais forte que a dor, e ano e meio depois de enviuvar, Adelaide estava rubicunda e linda como não estivera jamais.

O Estanislau deixou-a paupérrima. O pobre rapaz não contava arrumar a trouxa tão cedo, ou, por outra, não teve com que preparar o futuro.

Enquanto viveu, nada faltou em casa; depois que ele morreu, tudo faltou, e Adelaide, que felizmente não tinha filhos, aceitou a hospitalidade que lhe ofereceram seus pais. 

– Vem outra vez para o nosso lado, disseram-lhe os velhos; façamos de conta que te não casaste.

Não tardou muito que aparecesse um namorado à viúva. Era um excelente moço, o Miranda, que frequentava a casa dos velhos por ser funcionário da mesma secretaria onde o pai de Adelaide era chefe. Foi com muita satisfação que este notou a simpatia que o Miranda manifestava pela moça, e pulou de contente quando o rapaz, um dia, na repartição, se abriu com ele, dizendo-lhe que ser seu genro era o que mais ambicionava neste mundo. O velho foi para casa alegre como um passarinho, e disse tudo à mulher.

– Sabes, Henriqueta? O Miranda confessou-me hoje que gosta da Adelaide e quer casar-se com ela. Estou satisfeitíssimo, porque nossa filha não poderia encontrar melhor marido! Que me dizes?

– Digo que seu Miranda é uma sorte grande, mas duvido que Adelaide aceite.

– Duvidas, por quê?

– Porque ela só pensa no Estanislau: é uma viúva inconsolável. Engordou, tomou cores, goza saúde, mas aposto que não admite que lhe falem noutro casamento.

– Deixe-a comigo; vou sondá-la. O velho sondou-a, efetivamente, e reconheceu que D. Henriqueta calculava bem.

– Não me fale em casamento, papai! Eu considerar-me-ia uma mulher indigna se desse um substituto ao meu pobre Estanislau!

Mas o velho que não era peco, não se deixou vencer e insistiu, lançando mão de quanto argumento lhe sugeriu a sua longa experiência do mundo.

– Minha filha, numa terra de maldizentes como este Rio de Janeiro, a reputação de uma viúva moça e bonita corre tantos perigos, que a melhor resolução que tens a tomar, para fazer respeitar a memória honrada do teu Estanislau, é casares-te em segundas núpcias. Uma única dificuldade haveria para isso: o marido; mas neste particular, minha filha, foste de uma fortuna fenomenal. O Miranda caiu-te do céu! Olha, eu, se tivesse que escolher um genro, não escolheria outro -, e tu, se te casares com ele, darás muito prazer a tua mãe, e tornarás feliz a minha velhice.

Essas palavras, que acabaram molhadas de lágrimas de enternecimento, calaram no ânimo de Adelaide, e na mesma noite, como a família se achasse reunida na sala de jantar, e o Miranda presente, ela dirigiu-se a este nos seguintes termos:

– Meu amigo, sei que o senhor gosta muito de mim e deseja ser meu marido; sei que o nosso casamento daria muita satisfação a meus pais; mas devo dizer-lhe que ainda amo o Estanislau como se ele estivesse vivo, e não posso amar dois homens ao mesmo tempo.

Os velhos morderam os beiços; o Miranda remexeu-se na cadeira, sem responder.

– Sei também que o senhor é um perfeito cavalheiro e que nada lhe falta para ser um marido ideal; aprecio o seu caráter, a sua bondade, a sua inteligência; mas, se nos casarmos, não poderei levar-lhe o sentimento que todo o homem tem o direito de exigir no coração da sua noiva. Se depois desta declaração leal e honesta, persiste em querer ser meu esposo, aqui tem a minha mão.

– Aceito-a! respondeu prontamente o Miranda, tomando a mão que lhe estendeu Adelaide. - Aceito-a, porque, perdoe a minha vaidade, tenho alguma confiança no meu merecimento, e espero conquistar o seu amor!

Casaram-se, e hoje, que estão unidos há um ano, podem gabar-se – ela de ter tido verdadeiras surpresas fisiológicas, e ele de ser amado como o Estanislau nunca o foi.

– És então feliz, minha filha?

– Muito feliz, mamãe; o Miranda é tão bom marido, que, lá no outro mundo, o Estanislau, se meteu a mão na consciência, com certeza me perdoou.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos) 4


AMORES
Amor de segunda-feira
perdido em filas e pagamentos
amor de terça-feira
cansado da correria da semana
amor de quarta-feira
breve descanso após o expediente
amor de quinta-feira
alegria e glória pela sequência
amor de sexta-feira
lobos e cordeiros em seus lugares
amor de sábado
caseiras tarefas semanais
amor de domingo
agradecer aos céus e aos deuses

amores de todos os dias
                        cansados
            sem brincadeiras.

DIVISÕES

Ainda
divididos em raças
cores
credos
filosofias
políticas
virtudes
e vícios

diferentes histórias
religiões
medos
bandeiras
e línguas

tanto nos separamos
por árduos caminhos
que ao nos reencontramos
não nos reconhecemos
iguais como irmão.

PASSAGEM

Lodo
barro

a primeira impressão
na extração da costela
ao estratificar a marca

lama
barro

dificuldades e sujeiras
impedem o livre andar
para haver sentimentos
através da multiplicação
do pensamento

superar a lama que resseca
a herança marcada no solo
pela passagem.

PRINCÍPIO

Os que vieram
na primeira leva
nada trouxeram
além de suas vidas

pobres
paupérrimos: vidas
estagnadas vindas
de lugares pobres
paupérrimos

os que vieram
na primeira vez
não trouxeram
medo ou raiva

suas vidas eram pobres
para terem medo ou raiva

trouxeram suas vidas
e na vida foram os primeiro.

RECOMEÇAR

Recomeçar
deste ponto
recarregado
em energias
revolvidos
pensamentos
reescritas
palavras
resolvidos
problemas
recorrentes
saudades

deste ponto
o recomeço
viável
ou o salto
repetido.

SEM MEMÓRIA

Nada vale o ser
sem sua memória recente
perdido em antigas histórias
que repete
em antigos amores
amortecidos
deslumbrado com novidades
envelhecidas
deslocado em ambientes
irreconhecíveis

nada vale o passado
desacompanhado
nem o futuro
não vislumbrado
em antigas passagens
fechadas pelo tempo
fossem túmulos.

VINGANÇA

Tanta raiva traz o homem
em sua vingança: mais
do que o inverno e o verão
de polos opostos em atração
da noite pelo dia
                na madrugada

tanta ira traz o homem
em sua vingança: o barco
emborcado no porto
enquanto animais ferozes
sobre a presa no irônico
gargalhar do surdo

quanto de santidade há no homem
em sua vingança: o direito pelo revide
na mão que soca o inimigo e o caroço
cuspido no prato

tantas razões irracionais
no homem em sua vingança.

Fonte:
Pedro Du Bois

Vinícius de Moraes (Com o pé na cova)


Segunda-feira última, ao entrar no Golden Room do Copacabana para a estreia do novo espetáculo de Carlos Machado, tive a mão vivamente apertada por um dos maitres da casa, velho chapa meu. Notei que me olhava com um ar ansioso.

- Como é? - perguntei-lhe. - Tudo em ordem?

- Puxa, dr. Vínícius... O senhor nem sabe como estou satisfeito! Imagine que hoje de tarde andou correndo que o senhor tinha morrido...

Fiz, por via das dúvidas, a minha figa, com o pai-de-todos e o furabolos, pensando na mãe do autor da gracinha. Mas a real satisfação do maitre meu amigo compensou-me de um certo mal-estar deixado pela notícia. Fiquei considerando que ela realmente vai acontecer um dia e … - mas deixa pra lá. Entrei na boate lembrando-me de que, se há um homem que pode dizer já ter estado "com o pé na cova", literalmente, esse homem sou eu.

Foi em Los Angeles, aí por 1947. Com o cônsul em férias, achava-me eu encarregado do nosso Consulado e um belo dia eis que me aparece por lá um marinheiro brasileiro: um bom paraibano, com um sotaque pastoso, que havia fugido de um navio, no porto de São Francisco, e depois de viajar de carona até Los Angeles, esfaimado, resolvera se apresentar. Tomei os necessários dados, dei-lhe um dinheirinho para que comesse num drugstore embaixo e arrumasse um hotel, e pedi-lhe que se mantivesse em contato comigo, enquanto tratava de sua repatriação.

Dia seguinte, surge-me um cidadão da polícia de San Diego, porto vizinho a Los Angeles, para dizer-me que um brasileiro havia sido esmagado por um trem, por se encontrar deitado na linha férrea. Reconheci, na carteira profissional que me foi apresentada, o retrato do meu bom paraibano. Tinha-se "mandado". Fiz um telegrama ao Itamaraty, pedindo autorização para fazer embalsamar o corpo e proceder o enterro, e três dias depois, dirigidos por dois agentes da companhia funerária que havíamos tratado, eu e o então auxiliar contratado Maurício Fernandes - que posteriormente entrou firme no negócio de hotéis, e continua sempre um bom amigo - dirigimo-nos para o cemitério de Forest Law: cenário do famoso romance The Loved One, de Evelyn Waugh; cemitério onde se ouve música piegas sair de todos os lados e que, no meu tempo, mantinha cartazes de publicidade nas ruas de Los Angeles com os seguintes dizeres: "Sleep under the stars..." ("Durma sob as estrelas").

Uma vez chegados, um dos agentes acionou um mecanismo que fez o caixão sair automaticamente do coche, já em posição de ser retirado. E assim o levamos nós, com Maurício Fernandes e eu nas alças de trás, até a cova que havíamos adquirido para o nosso bom paraibano. Mas de uma coisa não sabia eu: que com essa mania de disfarçar a morte que têm os americanos (maquilar os defuntos, etc.), existe também o curioso costume de tapar o buraco da cova, até a hora da descida do caixão, com um tapetinho de um material verde parecendo chenile - o que a integra na relva circundante.

E foi exatamente onde eu pisei e desapareci, deixando o caixão sobre mim, por um momento, em posição bastante precária, devido ao desequilíbrio causado pela minha queda. Aí veio todo mundo me ajudar a sair da cova, mas eu, apesar de um pouco arranhado nas pernas, ao dar com a cara entre aflita e irônica de Maurício Fernandes, a me estender a mão, desabei numa tal gargalhada que foi uma luta para me tirarem dali. Dobrava-me de tanto rir. Meu riso contagiou-o, e nós não podíamos mais olhar um para o outro. Ríamos, ríamos, e foi rindo assim, em frouxos alternados, que demos sepultura ao nosso pobre patrício. E não sem muitos olhares de censura dos dois agentes funerários, absolutamente imperturbáveis no exercício do seu piedoso dever.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

sábado, 4 de maio de 2019

Trova 348 - Odenir Follador


Dorothy Jansson Moretti (Andorinhas em Desespero)


Conheço o Rio Itararé desde quando conheço a mim mesma. Conheço-o em trechos entre a mata, manso e de águas calmas. Conheço-o entre praias brancas e luminosas. E conheço-o melhor ainda, em razoável extensão de seu trecho subterrâneo, com suas grutas famosas e belas.

Centenas de vezes "fui à Barreira", passeio tradicional de todo itarareense, e de todo o visitante que por aqui aparece. Centenas de vezes desci as escadas que levam às grutas e sempre observei o rio aquele seu aspecto habitual; fundo, entre altos paredões escarpados, sumindo e reaparecendo, ora parado e sombrio, ora borbulhante, claro e encachoeirado.

Por tudo isso, nunca poderia imaginar (mesmo conhecendo as fotos que meu pai bateu dos estragos causados por duas de suas mais catastróficas enchentes) que, em pessoa, eu iria presenciar a cena com que me deparei no sábado, ante-véspera do Ano Novo.

Chovia muito, mas mesmo assim meu filho quis mostrar à noiva essa maravilha da natureza, quem sabe a maior de nossa querida terrinha. Já de longe, vimos que a pequena queda d'água adjacente, que se avista na descida para a ponte que dá acesso às grutas, estava suja e incrivelmente aumentada em seu volume. Mas ainda assim, deixamos despreocupadamente o carro, pensando que o rio apenas estivesse mais cheio do que o habitual.

Foi um susto! As águas haviam subido até encobrir totalmente a "Gruta da Santa", submergindo também a maior parte das escadarias, e passando sob a ponte um torvelinho vermelho e bravio. A escada de pedras naturais que levam à margem esquerda do rio, submersa até as grades de proteção, lá embaixo, impossibilitavam o acesso até mais perto, amedrontando a gente numa sensação de horror.

O "Poço da Cruz" também estava encoberto, mal deixando entrever as aberturas cruzadas que lhe dão o nome. E os paredões verticais de granito tinham-se reduzido a uma altura quase insignificante. Em suma, as soturnas águas subterrâneas corriam agora livres, caudalosas e barrentas, quase ao nívei das margens, como as de um outro rio qualquer. 

Que surpresa e que espetáculo aterrador para mim, que tantas vezes desci até aquelas cavernas!

O zelador da ponte, receoso e preocupado, pediu-me que telefonasse ao Prefeito. Havia muita formicida no pequeno depósito embaixo da ponte, e toda a água ficaria envenenada se o rio continuasse a subir. O Prefeito prometeu providências.

E as andorinhas?

Pobres aves! Em penosas tentativas procuravam atingir seus ninhos nas cavernas, a essa altura já totalmente arrasados pelo turbilhão. A tradicional revoada em nuvem negra, para a descida em flecha até os grotões, espetáculo que Lhes deu nome e fama, simplesmente tornou-se em evoluções desordenadas e atônitas por sobre o que restava visível dos altivos e escarpados paredões.

Que quadro doloroso! Que tristeza imensa saber que nada, nada mesmo, poderia ter sobrevivido à voragem daquelas águas turvas e descomunalmente furiosas em que se transformara o belo e misterioso Rio Itararé! '

(Tribuna de Itararé-24/01/1990)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos.  São Paulo/SP: Dialeto, 2012.

Adélia Prado (Nuvens Poéticas) III


ANÍMICO

Nasceu no meu jardim um pé de mato
que dá flor amarela.
Toda manhã vou lá pra escutar a zoeira
da insetaria na festa.
Tem zoada de todo jeito:
tem do grosso, do fino, de aprendiz e de mestre.
É pata, é asas, é boca, é bico, é grão de
poeira e pólen na fogueira do sol.
Parece que a arvorezinha conversa.

BILHETE EM PAPEL ROSA

A meu amado secreto, Castro Alves.

Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio.
Vê estas olheiras dramáticas,
este poema roubado:
"o cinamomo floresce
em frente ao teu postigo.
Cada flor murcha que desce,
morro de sonhar contigo".
Ó bardo, eu estou tão fraca
e teu cabelo tão é negro,
eu vivo tão perturbada, pensando com tanta força
meu pensamento de amor,
que já nem sinto mais fome,
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus,
caldos quentes, me dão prudentes conselhos,
eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vias ligadas.
Antônio lindo, meu bem,
ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio.
Para sempre tua.

O INTENSO BRILHO

É impossível no mundo
estarmos juntos
ainda que do meu lado adormecesses.
O véu que protege a vida
nos separa.
O véu que protege a vida
nos protege.
aproveita, pois,
que é tudo branco agora,
à boca do precipício,
neste vórtice
e fala
nesta clareira aberta pela insônia
quero ouvir tua alma
a que mora na garganta
como em túmulos
esperando a hora da ressurreição,
fala meu nome
antes que eu retorne
ao dia pleno,
à semi-escuridão

MEDITAÇÃO À BEIRA DE UM POEMA
Podei a roseira no momento certo
e viajei muitos dias,
aprendendo de vez
que se deve esperar biblicamente
pela hora das coisas.
Quando abri a janela, vi-a,
como nunca a vira
constelada,
os botões,
Alguns já com rosa- pálido
espiando entre as sépalas,
joias vivas em pencas.
Minha dor nas costas,
meu desaponto com os limites do tempo,
o grande esforço para que me entendam
pulverizam-se
diante do recorrente milagre.
maravilhosas faziam-se
as cíclicas perecíveis rosas.
Ninguém me demoverá
do que de repente soube
à margem dos edifícios da razão:
a misericórdia está intacta,
vagalhões de cobiça,
punhos fechados,
altissonantes iras,
nada impede ouro de corolas
e acreditai: perfumes.
Só porque é setembro

OBJETO DE AMOR

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, eu amo.

O VESTIDO

No armário do meu quarto
escondo de tempo e traça meu vestido
estampado em fundo preto.

É de seda macia desenhada em campânulas
vermelhas à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.

Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.

Luiz Poeta (Diamante Bruto)


Foi às radículas. Chegou aos ápices de retomar aos dias menos felizes na casa de sapê. Via a irmã mais nova com a boneca de pano, feia, mal costurada, desconjuntada soltando palha, apertando-a no pálido e pneumônico peitinho, cuspindo saliva e catarro tísico numa tosse seca, pés imersos no barro amarelo do arrozal tão raro de grãos.

No riacho descendo cautelosa como serpente, à água cristalina murmurando silêncios.

E já o sol ardia vermelho queimando a colina, sobre os bois que pastavam preguiçosos do outro lado da cerca que separava o rancho pobre do rancho rico, numa calma de dar sono.

A mão girava o leme sobre o poço de água salobra e aquele ruído era um punhal nos seus ouvidos, tiquetaqueando a presença da morte.

O último boi haviam-no sacrificado na última seca, pesarosos de ver o animal definhar, língua de colher clamando um gole no córrego pantanoso, lamacento, seco, estéril, triste.

Com a chuva, teve-se que cultivar um novo arrozal, plantar mais mandioca e abóbora, comprara um capadinho.

Mas quedê dinheiro ? A carne do esquálido bovino dera parcas tigelas de míseros músculos para a família e mínimas outras para a venda.

Vida miserável aquela.

Começara cedo a conhecer das coisas da dor; primeiro, com dois anos, o ferrão da lacraia no pé, que foi preciso muita reza e muito mato para salvar-lhe a vida; depois, a jararaca na folha da bananeira e tome fumo de rolo e cachaça pra vedar o veneno. Afora isso, fome, sede e prece à tardinha pras coisas melhorarem. Mas nada melhoravam mesmo. Depois, a barreira soterrou o velho, o mais moço foi com o tétano do arame farpado e a mãe morreu de incredulidade e susto, restando só ele, a tísica e alguns vizinhos de palavras miúdas na boca e muitos tapinhas de consolação em suas costas anestesiadas pela dor.

- Bebe, Célia, chá de losna que Nhô Chiquinho te fez. - Mas Célia não bebia e nem falava mais nada, apenas olhava, os seus imóveis olhinhos fitando sei-lá-o-quê, enquanto o fiozinho róseo de sangue descia destamainho pela boquinha inerte e lilás dela.

Enfim ficou só; ele, a sabiá e a cachorra magrela e pulguenta se coçando num canto, a bonequinha de pano no chão, olhos em cruz, mortinha também, vazia de palha no ventrinho sujo e amarelo.

E na barreira que matou seu pai, escavando, dia-a-dia, olhos embotados, vermelhos pela cachaça, amarelos pela cirrose, estavam as pedras brilhando ao sol do meio-dia, um espelho só de dourado e prata, fogo e mel. Nhô Chico, preto velho, fumo-de-rolo socado no cachimbo de angola, puxando um pito, cuidou para que as pedras fossem vendidas e o dinheiro empregado no bem-estar do moleque precoce de dor e mágoa.

E veio a dúzia de bois gordos e nutridos, as hortaliças e os pés de manga no sítio quadruplicado pela inteligência e perspicácia do velho.

- Se aveche não, Nhô Mininu - dizia sorrindo - preto veio carcomido qué nada introca docê, só sua compreensão pros úrtimos dia.

Nhô Chico, oitenta e cinco anos, cabelos brancos e ralos, o pé descalço na água barrenta descendo da barranqueira, não queria mesmo nada, não nascera - como ele mesmo dizia - para a opulência, para ser dono de boi. Preferia, sim, guiar manada, laçar, marcar, matar e cortar o animal. Nada como um bom burrico, uma vara de pesca e uma sombrazinha de pé-de-Jamelão-beira-de-rio.

E foi assim: um dia o peixe beliscou, mas o bambu tombou na água barrenta. Nhô Chico morreu dormindo. Num canto da boca, o inútil cachimbo de cinzas inertes, como seu corpo.

Sua alma... incolor voava... quem sabe para o céu africano onde o sangue do seu povo riscava sua história na como um passarinho.

O telefone tocou, ele atendeu. Alguém o parabenizava pelo aniversário.

- Aniversário ? - interrogou-se - Puxa... tinha até esquecido.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Carolina Ramos (Duas Vidas)


I

Maria Plácida fazia jus ao nome. Plácida como um lago em tempos de calmaria. Nem a brisa mais sutil lhe arrepiava a pele. Nada, ou quase nada, perturbava a serenidade que lhe servia de escudo. O que nem sempre seria sinônimo de virtude. Talvez que até o próprio nome tivesse influído no seu modo de ser, absolutamente horizontal e passivo. Quantas oportunidades perdera em consequência dessa placidez contumaz e sem tamanho? Não se demorava em responder, mas, sem dúvida alguma, inúmeras! Os planos mirabolescos, sempre calcados em datas remotas, com base em hipotéticas situações mais favoráveis à realização, eram geralmente postergados para depois da aposentadoria, lá no fim da carreira.

Houvera, sim, um dia especial. E como especial, só daquele dia Maria Plácida se recordava. O dia em que se tornara mulher, ou melhor, o dia em que se sentira mulher, pela primeira vez! Não biologicamente falando, é evidente. Tinha, então, quinze anos. E apesar dos seus dourados e completos quinze anos, se não houvesse recebido aquele presente, seria ainda a menina tímida, que fugia ao convívio social e olhava os rapazes, da sua idade, furtivamente, temperando-lhes o calor das investidas com a aura fria de geladeira aberta.

A magia do pequeno frasco de perfume francês, oferecido pela madrinha, fizera o milagre. Revirara-o entre os dedos, maravilhada! Consultara o espelho, sentindo-se valorizada. Nem feia, nem bonita. Contudo, naquele instante, o brilho especial do olhar a tornara bela. E bela se sentira, como se uma fada madrinha a houvesse tocado com sua varinha mágica. Como por encanto, rompera-se a humilde crisálida, nascendo, vaidosa e volúvel, a exuberante borboleta! Aspirou, deliciada, as emanações do pequenino frasco, deixando-se embriagar pela volúpia da extraordinária essência. E, num impulso imperceptível, galgou o primeiro degrau que a arrancava da plácida adolescência, para a incógnita realidade de sentir-se mulher.

Um último minucioso exame, tendo por inquiridor o espelho, aprovou-a. Os contornos rijos cada vez mais arredondados, davam-lhe o diploma de feminilidade que seus olhos buscavam. Mulher!...

Maria Plácida sorrira para a imagem do cristal, recebendo um sorriso de volta. Tudo não passara, no entanto, de reação passageira., 

Com carinho todo seu, guardara o pequena frasco para ser usado num momento propício, especialíssimo, que saberia reconhecer quando chegado. Poderia, então usufruir todo o mago potencial contido no minúsculo recipiente. O perfume seria usado com o mais requintado esmero! — Aquelas gotinhas, sutis, atrás da orelha, nos pulsos e no sulco dos seios. Coisas que qualquer menina aprende, quase que por intuição, e aperfeiçoa, com arte instintiva, ao correr dos tempos.

A partir daquele presente, Maria Plácida virou mulher, de verdade. Sonhou. Fez planos. Muitos! Aqueles sonhos e aqueles planos que apenas um futuro remoto, sempre adiado, poderia por em pauta.

Menina, sonhava ser moça, para viver cm plenitude. Moça, esquecia do presente para sonhar com o que o porvir lhe poderia dar.

Apesar de tudo, refinou-se. Instruiu-se. E lutou com afinco para ter direito à almejada aposentadoria.

E a vida fugiu-lhe ligeira como água corredeira a caminho do irremediável despencar em cascata, pulverizador dos sonhos mais sólidos e mais belos. Sem o menor impulso para detê-la, a moça deixou-a fugir, placidamente, até a aproximação do instante inexorável da queda, quando o espelho, friamente, mostrou-lhe os sulcos das primeiras rugas. Não teve, então, vontade de sorrir. Sem saber porquê, deixou-se arrastar peia força da evocação que a levou de volta ao dia, muito especial, em que o pequenino frasco de perfume francês a tornara mulher. Procurou-o apaixonadamente, revolvendo a gaveta da penteadeira entre lencinhos rendados e cambraias bordadas, parte de um enxoval jamais solicitado para uso.

Pela primeira vez, conscientizou-se da urgência e fugacidade do tempo. A partir daquele instante, não lhe importava mais a ausência de motivação ou a ansiada presença de uma data relevante. A hora era aquela, sem programações nem adiamentos tolos ou românticos.

Decepção! O pequeno frasco estava completamente vazio! E nem era possível esperar outra coisa. O perfume evaporara-se igualzinho à felicidade, que, se passara pela vida de Maria Plácida, teria sido tangencialmente, sem deixar o menor vestígio.

Tornou a guardar o frasco vazio, mecanicamente. Gostava de colecionar coisas que lhe sugeriam momentos agradáveis, mesmo não realizados. Lembrar, por intermédio delas, tudo de bom que lhe poderia ter acontecido, chegava a ser algo compensador.

O espelho devolveu-lhe a imagem da mulher triste que o fitara à procura de apoio. Sentiu que, inadvertidamente, descera o indesejável degrau que dava acesso ao primeiro patamar da velhice.

Maria Plácida fechou a gaveta. Sepultava nela o frasco, vazio, de perfume francês e os planos teimosos, chegados ao futuro em fase de deteriorização. Não queria mais tratos com o amanhã e nem tinha mais tempo para viver o hoje. Torceu a chave e deixou-se arrastar pela correnteza da vida, melancólica, mas, como sempre, placidamente, rumo ao nada.

II

Maria Expedita fora colega de Maria Plácida, na Escola Normal. Eram água e vinho, ou melhor, água e azeite, que não se misturam. Tinham fusos horários contraditórios. E, quando era primavera na casa de uma, já vicejavam os frutos do outono no pomar da outra. Tão logo o clima outonal se anunciava junto a Expedita, Maria Plácida, janelas fechadas, tiritava o seu inverno.

Miúda e ligeira, Maria Expedita também fazia jus ao nome.

Erguia-se, cada manhã, lamentando o tempo perdido com as horas de sono. Movia-se em tempo de música, com ralentandos e afretandos intercalados, seguindo as circunstâncias, mas, sempre dentro de um ritmo agitado e vivaz, difícil de ser acompanhado pelas pessoas de andamento normal.

Assim como o maestro parece arrancar do espaço notas musicais, Expedita, batuta na mão, parecia reger com maestria a sinfonia da vida, de acordo com a partitura por eia mesma composta. Não desperdiçava uma só nota! O tempo era dividido em compassos elásticos, prontos a admitir uma quiáltera, ou apogiatura, sempre que necessário introduzir mais uma nota. Se preciso, desmembrava tranquilas semibreves, multiplicando-as, substituindo-as por fusas e semi-fusas irriquietas, num sobe e desce de escalas ligeiras, a ondular-lhe a vivência, que, longe de parecer lago plácido, mais lembrava perene mar revolto!

Vivia, apaixonada e intensamente, cada instante sem deixar nada para depois. Se houvera paralelismo na fase estudantil entre as duas meninas, vivencialmente falando, situavam-se agora em polos opostos.

Casada por duas vezes, que a primeira não dera certo, Maria Expedita concebeu três filhos, acrescentando à rumorosa existência, novas primaveras, a intercalar semeadura e colheita com a exuberância de uma festiva floração.

Trabalhou, sim, e muito! Em casa e fora dela, sem permitir que a atividades cotidianas lhe abafassem os impulsos criativos.

Com esforço e pertinácia, conseguiu espaços só seus, logrando expandir dotes artísticos acalentados com carinho.

E quando as primeiras neves se abateram sobre sua cabeça, estranhou: — Já?í Com decisão inabalável, negou-se à depressão decorrente. Ajeitou os cabelos, ignorando as cãs, e empurrou para mais longe o alçapão da velhice. Com sessenta e poucos anos, bem vividos, e alguns netos, acumulava expressiva bagagem literária. Vários livros editados e outros prestes a vir à luz; que o espírito independe do corpo. Só envelhece, quando, conscientemente, se aceita que envelheça.

Maria Expedita recusava-se a envelhecer.

Com tintas, pincéis e algumas noções de arte, coloriu dias ameaçados de se agrisalharem depois da aposentadoria.

E não parou aí: — injetou força à própria voz, engajando-a a um grupo coral bastante atuante. Escancarou, assim, os últimos escaninhos da alma, deleitando a si mesma com um hino de amor à vida, num vibrante e caloroso canto de vitória!

*      *      *

 Maria Plácida morreu, certo dia, durante o sono. Bem de acordo com a placidez com a qual convivera.

Maria Expedita, por sua vez, morreu cantando. E, lá por cima, deve continuar cantando! Deve continuar vivendo, naquele mesmo ritmo prestíssimo! Tão do seu jeito... e tão do sou gosto!

__________________________
Nota de rodapé:

A autora retiniu o papel da máquina, relendo o que escrevera. Sorriu...
Se na fusão das duas personagens havia muito de si mesma, embora parecesse paradoxal, absolutamente não teria sido mera coincidência!


Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Franz Kafka (Comunidade)


Somos cinco amigos; uma vez saímos um atrás do outro de uma casa; primeiro veio um e pôs-se junto à entrada, depois veio, ou melhor dito, deslizou-se tão ligeiramente como se desliza uma bolinha de mercúrio, o segundo e se pôs não distante do primeiro, depois o terceiro, depois o quarto, depois o quinto. Finalmente, estávamos todos de pé, em uma linha. A gente fixou-se em nós e assinalando-nos, dizia: os cinco acabam de sair dessa casa. A partir dessa época vivemos juntos, e teríamos uma existência pacífica se um sexto não viesse sempre intrometer-se. Não nos faz nada, mas nos incomoda, o que já é bastante; porque se introduz por força ali onde não é querido? Não o conhecemos e não queremos aceitá-lo. Nós cinco tampouco nos conhecíamos antes e, se quer, tampouco nos conhecemos agora, mas aquilo que entre nós cinco é possível e tolerado, não é nem possível nem tolerado com respeito àquele sexto.

Além do mais somos cinco e não queremos ser convivência permanente, se entre nós cinco tampouco tem sentido, mas nós estamos já juntos e continuamos juntos, mas não queremos uma nova união, exatamente em razão de nossas experiências. Mas, como ensinar tudo isto ao sexto, posto que longas explicações implicariam já em uma aceitação de nosso círculo? É preferível não explicar nada e não o aceitar. Por muito que franza os lábios, afastamo-lo, empurrando-o com o cotovelo, mas por mais que o façamos, volta outra vez.

Fonte:
Franz Kafka. Contos.

IV Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul (Prazo: 31 de Agosto)


O IV CONCURSO DE TROVAS DE CACHOEIRA DO SUL, promovido e realizado pela UNIÃO BRASILEIRA DE TROVADORES, Seção de Cachoeira do Sul, obedecerá a seguinte regulamentação:

Para efeito deste concurso, entende-se por TROVA a  composição poética (poema) de quatros versos (linhas) setissilábicos, rimando o 1° com o 3° e o 2° com o 4°, expressando um sentido completo.

Temas:
Nacional/internacional
Veteranos e novos trovadores: CHUVA (L/F) -           

Estadual:
VENTO (L/F) Máximo de 2 trovas por autor. 

Remessa exclusivamente por e-mail: tudoepossivelw7@gmail.com
Prazo: 31 de agosto de 2019 

A festa de entrega de prêmios ocorrerá em data e local a ser designada pela entidade. Haverão 3 trovas vencedoras, 3 menções honrosas e 3 menções especiais em cada tema.
    
O corpo de jurados será formado por trovadores de reconhecido valor literário, já premiado em diversos concursos, indicados pela entidade promotora do evento.

 7. Os casos omissos serão resolvidos pela diretoria da entidade promotora do evento.

 Jaqueline machado
 Presidente da UBT Seção de Cachoeira do Sul

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Leonilda Yvonneti Spina (Jardim de Trovas)


Acredito piamente
que o destino Deus nos traça,
já que generosamente
soprou-nos da vida a graça.

A garota muito esperta
conquistou o seu patrão
e agora quer ver se acerta
a senha do seu cartão.

Ajudar o semelhante
sem pensar em si primeiro
é atitude edificante:
- Revela amor verdadeiro!

Amar na maturidade
faz da vida uma canção,
pois o afeto, na verdade,
refloresce o coração.

A muralha de Belém
tombada e reconstruída
vem simbolizar também
a ressurreição e a vida!

Antes, a família à mesa,
em sagrada comunhão.
Hoje, silêncio e frieza,
por conta da evolução.

Ao enterrar o pinhão
com o bico, a gralha-azul
vai repovoando o chão
dos verdes pinhais do sul.

Aquele que menos tem
ajuda mais que o abastado.
É a caridade de quem
sabe o que é ser rejeitado.

Baixa o nível da represa.
Fica a terra ressequida.
Corre risco a natureza,
pois água é fonte de vida!

Com fé e calor de abraços,
partilhando o amor e o pão,
a família estreita os laços
em perfeita comunhão.

Comunhão - ato sagrado,
que conforta o coração.
Corpo de Deus transformado
através do vinho e pão.

Contempla com alegria
cada novo amanhecer
e agradece a cada dia
a dádiva de viver.

Cuidemos bem da floresta,
da fauna, pássaros, flores.
A natureza é uma festa,
cheia de encanto e primores.

Desfrute o Outono da vida,
feliz, em cada estação,
conservando a alma florida,
quer seja Inverno ou Verão!

Despertando a fantasia
no espírito da criança,
o livro traz alegria,
semeia sonho e esperança.

Deus é a divina vertente
de luz e conhecimento.
Ele está sempre presente
em nosso discernimento.

Deus pregou paz, altruísmo,
tolerância e caridade,
mas o ódio e o terrorismo
arrasam a humanidade.

Eis os dons que só na idade
madura, por fim, se alcança:
prudência, serenidade,
equilíbrio e temperança!

Entre outonos bem vividos
não teremos solidão,
se mantivermos floridos
os sonhos no coração.

É o amor divina graça
que conforta o coração,
mas a paixão breve passa
como chuva de verão.

Já no Inverno da existência,
quem traz Deus no coração
desfruta da vida a essência
e não teme a solidão.

Lembrando a felicidade
que desfrutei com meus pais,
a dor de imensa saudade
arranca-me tristes ais.

Meninos, de braços dados,
não pensam em raça ou cor,
pois são todos irmanados
pelas correntes do amor.

Muitos sonhos se arrefecem
no Inverno do coração.
Aos poucos, porém, se aquecem
para a nova floração.

No alto da cruz, o Senhor,
em dolorosa aflição,
aos algozes, sem rancor,
ofereceu seu perdão.

Nos reveses desta vida,
o otimista não se ilude.
Busca sempre uma saída,
com ousadia e atitude.

Nossa vida é uma passagem.
Nessa longa travessia
é preciso ter coragem
e muita sabedoria.

O amor é a seiva sagrada,
que o coração fortalece.
A pessoa que é amada
e ama, rejuvenesce.

O amor é cumplicidade,
respeito e compreensão.
Quem sabe amar de verdade
tem aberto o coração.

O calor de teu carinho,
de teus beijos, meu amor,
embriagam-me qual vinho
de raríssimo sabor.

O livro é silente amigo,
que nos fala ao coração
e nos oferece abrigo
nas horas de solidão.

O médico, meus senhores,
é sacerdote em missão.
Salva vidas, cura dores
- Bendita essa profissão!

Pregar a boa vontade
e o entendimento entre os povos
é levar a humanidade
a descobrir rumos novos.

Pressinto sempre ao meu lado
a presença do Senhor,
quando um conselho é ditado
por minha voz interior.

Primavera, quem me dera,
que como renasce a flor,
depois de uma longa espera
reflorisse meu amor.

Quem com fé vive seus dias
e semeia paz e amor,
colherá sempre alegrias
na seara do Senhor.

Quem em todos os momentos
age com sinceridade,
revela bons sentimentos
e preza o bem e a verdade.

Quem tem por lema viver
com fé, trabalho e ousadia,
com certeza irá vencer
as lutas do dia a dia.

Saiba sempre perdoar
ao sofrer ingratidão.
Seu coração vai ficar
mais leve com o perdão.

Sempre em versos de saudade
há uma confissão de amor.
Ninguém sabe se é verdade
ou fantasia do autor.

Se passo pelo jardim,
onde a sorrir me acenaste,
floresce dentro de mim
a saudade que plantaste.

Se queres vencer na vida,
que não te falte ousadia!
Prepara a tua subida:
- Escala um degrau por dia!

Siga firme na jornada,
sem se afligir com tropeço.
Importa na caminhada
a decisão do começo.

Só com paciência se alcança
o que se espera da vida.
Siga com mais esperança
a cada meta vencida.

Só quem pauta seu viver
sem assomos de vaidade
é que sabe compreender
o que é autenticidade.

Teu beijo é precioso vinho
de inigualável sabor.
Quem prova do teu carinho
logo entontece de amor.

Tratemos a ecologia
com respeito e seriedade.
Trabalhemos cada dia
pelo bem da humanidade!

Fonte Principal:
União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. Trovas de Leonilda Yvonneti Spina e Eno Teodoro Wanke. Coleção Terra e Céu. vol. XCVI. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Jorge Americano (Casamentos)


Começavam umas conversas íntimas, quase inconvenientes.

— O namorado passa todos os dias. Mas você sabe, estas coisas... — Ela espia pela veneziana. — É preciso não encorajar.

Depois "acontecia" que ela e ele estavam num baile. Ele pedia apresentação. O amigo apresentava e dançavam.

— Dançar uma vez, está direito. Duas, ainda vá. Mas três vezes!?

A mãe ralhava, a filha insistia, o pai fechava a cara. A moça "podia ficar falada".

Entretanto, já não espiava pela veneziana. Ou olhava atrás da vidraça, ou abria a vidraça.

No próximo baile, o rapaz se "declarava". A moça dizia que era preciso falar ao pai.

Enquanto isso, corriam boatos: "Estão noivos? Não. Namorados. Disseram que ia ficar oficial, mas não se sabe. Parece que o pai dela não quer".

O rapaz falava ao pai dela. Quando se tratava de gente importante, era o pai do rapaz que falava.

Falado, havia a reunião na família da noiva, para apresentar o noivo e os pais. Depois, a reunião na família do noivo, para apresentar a noiva e os pais.

Seguia-se a comunicação às pessoas de amizade ou parentesco:

A Sra......... A Sra.........
e o Sr........ e o Sr........

têm a honra de comunicar

o contrato de casamento de seus filhos

F. e G.

São Paulo,... de.......de.....

Se as coisas não corriam bem e os noivos desmanchavam o casamento, era quase um escândalo:

— Você sabe quem desmanchou o casamento?

— Não diga? Por que?

— Diz que ele é muito mal-educado.

— É?

— E ela não tinha descoberto que ele tinha uma tia-bisavó meio esquisita.

— Ah!

Se as coisas davam certo, marcava-se o casamento, faziam-se os convites para a igreja (subentendido que era também para casa).

Todos os convidados mandavam presentes, flores, cartas, cartões e telegramas.

Vinha no jornal a lista dos presentes:

"Dos pais da noiva, um rico aparelho de jantar, de fina porcelana Limoge e uma rica mobília de quarto, em pau-marfim com incrustações em ouro; dos pais do noivo, um rico serviço de talheres, em prata D. João V; do Sr. F. (padrinho) um cheque; da Sra F. (madrinha) uma bandeja de prata e um necessaire de ouro (uma espécie de carteira, contendo pó de arroz e perfume). Do casal F. (tios) uma "trousse" bordada em "petit-point" para a noiva (qualquer, coisa como uma bolsa semelhante ao necessaire, porém maior, cabendo lenço, chaves e dinheiro) e um rico tinteiro em bronze e madrepérola, para o noivo".

E assim se enchiam a página do jornal.

* * *

Realizado o casamento, os convidados recebiam, entre quinze dias e um mês, a comunicação:

"F. e G. participam seu casamento e oferecem sua residência à rua ..."

(Quando tinha mandado presentes, acrescentava-se: agradecem penhorados a gentileza do brinde enviado).

* * *

Os casamentos religiosos celebravam-se à noite.

Os trajes eram "grande toilette" para as senhoras e casaca para os homens.

O número de convidados não excedia de quarenta a sessenta, entre parentes chegados e amigos íntimos.

Vinham à casa da noiva, meia hora antes da solenidade, para formar o cortejo.

No primeiro carro, um cupê enfeitado com flores de laranjeira, a noiva e pai. No segundo, o noivo e sua mãe. No terceiro, o pai do noivo e a mãe da noiva. No quarto e quinto os padrinhos da noiva e do noivo. Depois parentes e convidados.

Ao desembarcar, na igreja, encontravam um criado da família da noiva, que ia recebendo os capotes dos homens e as capas das senhoras, que eram guardados em carro vindo especialmente para esse fim, e restituídos no fim do casamento religioso.

Entravam na ordem de chegada, pelo corredor central da nave. Os bancos laterais estavam literalmente cheios de curiosos, todo o grupo do casamento entrava aos pares, de braço dado, acompanhando os noivos, na ordem em que desembarcaram. Subiam ao altar-mor.

Terminada a celebração, ali mesmo os noivos recebiam os cumprimentos, e recompunham-se os pares para sair.

Dos curiosos, nos bancos laterais, escutava-se: "Olha o vestido dela, que lindo!" "O noivo é baixinho, não orna!" "Gente, que cauda comprida" "Quem é aquele, alto, de nariz grande?"

Aproximavam-se os carros na ordem exata, e seguiam, em cortejo, para a casa da noiva.

Depositavam-se numa sala ou quarto as cartolas e agasalhos. Havia uma mesa de doces e champagne. Primeira mesa, segunda e terceira, conforme o número de pessoas e o tamanho da mesa.

Na primeira sentavam-se os noivos, os pais, os padrinhos e os convidados de mais idade e categoria. Trocavam brindes.

Meia hora depois levantavam, recompunha-se o arranjo e começava a segunda mesa. Os noivos continuavam sentados. Brindes.

Levantavam, recompunha-se o arranjo, terceira mesa. Os noivos continuavam sentados. Brindes.

A casa está quase vazia. A noiva trocou o vestido, o noivo também já está em traje comum, houve troca de beijos com os pais, e partiram.

Fonte:
AMERICANO, Jorge. São Paulo naquele tempo.