quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Hinos de Cidades Brasileiras (São Francisco de Itabapoana/RJ)


Autor: Roberto Pinheiro Acruche

São Francisco de Itabapoana
como eu gosto de você.
Sua beleza encantadora
há de sempre resplandecer.

Suas praias, sua grandeza,
seus campos e floração colorida,
obra prima da natureza
eu me orgulho de ter nascido aqui.

Salve seu povo hospitaleiro,
bom, amigo e trabalhador;
Salve terra abençoada
de São Francisco Nosso Senhor...

Abraçada pelos rios,
beijada pelo mar,
ornada com lagoas
você é linda , sempre vou te amar.

São Francisco de Itabapoana
onde o sol brilha mais o ano inteiro,
estrela de grandeza reluzente
do Estado do Rio de Janeiro.

Nilto Maciel (O Julgamento)

A desgraça, descarga megatômica, se abateu sobre nós, de forma impiedosa. Deus nos castiga com seu chicote de ferro, como se tivéssemos cometido infinitamente os pecados das Tábuas da Lei. E eu, que fiz eu, que não me lembro? Terá sido pecado tão terrível todo o sofrimento que sempre tive? Esta série incontável de malogros que não consigo esquecer? Ou, meu Deus, a rebelião que arquitetei e cometi contra o poder de meu pai? Mas nunca o ofendi publicamente, nunca o esbordoei, nunca sonhei a sua morte. Se o ofendi, o fiz em silêncio, nas longas noites de insônia, em sonhos e pesadelos, histórias horrorosas que jamais inventei, e apenas fluíam como águas da terra, incontrolavelmente. Ou terá sido aquela mancebia tão conscientemente esquecida, eu tão jovem e necessitado de amor, de três anos apenas, com a pobre Raquel, coitada, onde estará? Ou a prodigalidade vivida por tanto tempo, a esbanjar como não devia, a deixar de dar a eles, meus pais e irmãos, o tanto precisado? Ou esse casamento malfadado, com essa menina tornada adulta tão de repente? Ou essa fuga precipitada e alucinante, como um bandido caçado insistentemente, para este fim de mundo? Ou o abandono a que lancei meu querido Aécio, para morrer só como um leproso? Não sei, não sei. Ou terá sido tudo isso, todo esse rosário de erros? Estou desgraçado pelo resto da vida. Vou penar ainda mais como um vil pecador. Morrer e parar nas profundezas do Inferno. Não, vou cair eternamente nas labaredas infinitas, inteiro e consciente de minha perdição. Mas, meu Deus, tenha piedade de mim, ajude-me, socorra-me, livre-me dessa dor, desse tormento, desse momento e das dores maiores que me esperam. Dê-me um fim sem dor, perdoe-me todos os pecados e leve-me para sua morada. Seja piedoso! Sou um pobre ser humano ignorante do que faz e fez. Se errei, não foi por querer, mas por não saber. Eu queria ser bom, eu sempre quis ser bom. Eu juro, era assim.

Que desespero é esse, Manuel? Acalma-te. Aquieta-te. Isso não te livrará da solidão e do tormento. Homem, Deus não está contra ti. Ninguém está contra ti. Tu és homem e isso é apenas a vida. Apenas a dor. Não é nada de anormal. É muito normal até. A vida é isso: uma dor trágica e absurda para os incapazes de pensar coerentemente, mas, até certo ponto, cômica e perfeitamente admissível para os dotados de bom senso.

Manuel, pensa, medita, escuta a tua voz antiga. Tu eras um homem sensato, apesar das loucurazinhas que cometeste. Tu nunca desesperaste, mesmo nos momentos mais críticos, mesmo quando a tempestade levantava as patas negras. Tu eras tranquilo, como um lago. Tu eras, sobretudo, forte, corajoso, sonhador. Tu sonhavas castelos e reinados, embora sem ambição. Tu não usavas da violência para realizar teus pequenos sonhos de aventureiro, bandeirante, soldado. Tu seguias teu caminho, que era estreito e difícil, com tropeços aqui e ali, mas seguias. Destemidamente. Tu chutavas as pedras do meio do caminho e buscavas o lado limpo, reto e mais fácil, embora elas te machucassem as pontas dos dedos. E seguias, pisando o solo macio, a relva molhada e admiravas a beleza do teu mundo, já esquecido dos tropeços anteriores e das pedras passadas. Mesmo à noite, quando a escuridão te guiava pelos caminhos da perdição, tu sabias olhar para o alto e sorrir para a aurora que viria infalivelmente. Vinda, teus olhos faiscavam de esperança, tuas faces se avermelhavam de calor, teu corpo se enchia de vida. O sol vinha ao teu encontro e te mostrava os quatro pontos cardeais. Guiavas-te como os Reis Magos e buscavas o Menino-Deus. E gritavas loas ao Senhor, cheio de amor. E davas e recebias. Era a Fé. Que te sustinha, alimentava, saciava e rejuvenescia.

Manuel, se hoje estás no semi-outono, não é por acaso, é tão só pela necessidade de que assim seja. A primavera passou, mas isto não é razão para choro. Por acaso não crês no infinito e no eterno? Por acaso esqueceste a tua crença? Ou já mudaste? Ou já não és o mesmo Manuel cristão? Terás esquecido tão de repente os valores inegáveis que os Padres da Igreja de Roma te ensinaram? Recordo-te, então, que em tua cidade, aquela pequenina cidade onde viveste um pedaço importante de tua vida, tu foste o único, tu e tua mulher, a aplaudir, entusiasmado e no meio da rua, a Revolução e que, por isso, quase foste massacrado pelas turbas revoltadas. Lembras-te? Pois bem: um homem como tu, cristão, acima de tudo, não pode desesperar. Porque o desespero só existe na alma apodrecida dos renegados, dos blasfemos, dos hereges, dos incréus. Esses, sim, têm uma falsa felicidade. Usam máscaras para encobrir a extrema feiúra que suas almas revelam. Eles riem e até gargalham para sufocar o choro de condenados. De condenados ao patíbulo, à fogueira, ao Inferno. Tu, cristão, não cometeste pecado nenhum que mereça o Castigo. O que fizeste, durante toda a tua vida, foi por culpa dos outros. De teu pai, de tua família, de teus parentes, conterrâneos, falsos amigos, de tua mulher. Tu não mereces esse sofrimento. Essa auto-flagelação. Esquece e perdoa. Esquece e bebe. Bebe mais. Bebe, bebe. Afugenta o desespero. Esquece o passado. Tudo. Bebe. Amanhã, amanhã então, tudo será novo. O sol vai nascer. E tu vais em busca do Sol Nascente. Pode ser na Amazônia, nos pampas, nos gerais, nos sertões. Nada está perdido. Tu estás salvo. Toma a bússola. No mar a tempestade grita, mas Cristo caminhou sobre as águas. Lembras-te? E antes, muito antes, Deus separou as águas do Mar Vermelho para que seu povo o atravessasse. Lembras-te também? Por isso, bebe, bebe, bebe.

Fonte> Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. 
Enviado pelo autor.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 38

 

Mensagem na Garrafa – 70 –

Clarisse da Costa 
Biguaçu/SC

Simplesmente Mulher Guerreira

Eu sou do jeitinho que sou. Pra mim não tem essa de ser normal. O ser diferente é mais legal, até mesmo porque nunca quis ser igual a todos. Já digo logo, eu sou chata quando quero ouvir a melhor música. Eu pareço um disco arranhado ouvindo a mesma melodia.

Não consigo terminar o dia sem uma boa música. Eu tenho aquele sorriso de canto. Outras vezes aquele sorriso frouxo que sorri junto com os olhos. E faço as pessoas sorrirem sem intenção alguma. Gosto da alegria que me rodeia. Claro, nem tudo é flores, às vezes eu choro, nem sempre sou fortaleza, mas ninguém vai me ver pra baixo, abro aquele sorriso e passo o meu batom vermelho. E como dizem, sigo o baile. Eu sou menina, outras vezes mulher.

Vivo a vida como Deus quer. Eu sou sentimento e ousadia. Pego o meu andador e enfrento a vida. Quando amo é por inteiro, já até chorei no meu travesseiro. Não sei fingir, muito menos fugir. Sinto e pronto. Eu enfrento as batalhas da vida sozinha. Não deixo o medo me dominar. 

Sou guerreira, não paro de lutar. Sofro preconceito. Tentam me colocar pra baixo, mas não deixa de sonhar. Eu sou uma mulher que não para de acreditar no melhor. 

Laé de Souza (Atrevimento do Januário)

"Não. Não chegou ainda, senhora." Falou o porteiro, num tom de voz meio áspero, resultado do quinto telefonema.

"Não esqueça de avisar que ele não durma, sem antes me ligar e que estarei esperando", insistiu Gracilina.

Nunca havia acontecido do Januário ter aprontado uma dessas. Sempre foi um sujeito caseiro e temente à mulher. Aquela viagem a serviço com colegas não fora bem aceita por ela, mas, por fim concordou, diante dos argumentos de crise e do crescente desemprego, que ele deveria sacrificar-se por dois dias noutra praça.

Desde os tempos de namoro que o Januário passava aperto e sempre sujeito a prestar contas dos seus movimentos e ausências, mesmo que por tempo mínimo. O que ela dizia ser interesse por ele, para mim, era observação meticulosa de mulher desconfiada.

Januário nunca leu coisa qualquer que Gracilina não lhe interrogasse do assunto e esbugalhasse aqueles negros olhos a querer captar um mistério no motivo do livro nas suas mãos.

O domínio sobre seus interesses e o ciúme vinha de longe. Descobriu sua assinatura da revista Playboy e, tanto fez, até que ele cancelou. Nem por isso, deixou de lhe revirar as coisas, e acertou no pressentimento de que ele não resistiria a comprar a da pose da Vera Fischer. Teve longas noites de insónia quando alardeou-se que, de novo, posaria a Carla Perez e, embora não o tenha pego em flagrante (acredito que também por zelo do Januário), não lhe sai da cabeça que o fulano viu a Carla pelada. E não é para morrer de ciúmes?!

Não passou dos três primeiros capítulos de Hilda Furacão. Quando percebeu que o tema desandava para a leviandade e estímulos ousados, numa crise de ciúmes, Gracilina proibiu que adentrassem à sala tais cenas. 

Januário nunca levantou a voz ou contrariou Dona Gracilina. Nem bem pisou no degrau de entrada do hotel, o porteiro foi lhe avisando dos oito telefonemas da mulher, que ela estava brava e mandou lhe dar o recado que não estava gostando nem um pouco daquela palhaçada e que ele ligasse imediatamente para casa.

Não se ouvia outra coisa que não fosse gargalhada e via-se o riso malicioso do porteiro. Januário refletiu que fosse qual fosse o tamanho do seu aprontamento a mulher iria lhe comer o fígado quando lá chegasse de volta. Melhor ficar com um, do que dois problemas. Não se pode negar que a cachaça ajudou a não deixá-lo desmoralizado perante os colegas. Tomou do telefone e pela reabilitação, xingou a mulher como nunca fizera e que ela não tivesse novamente a ousadia de lhe importunar, sob pena de levar uma sova maior ainda, porque pelo menos uns sopapos ela levaria quando do seu retorno. Bateu o telefone, não dando tempo para Gracilina sair do espanto, dirigiu-se ao porteiro dizendo que fosse quem fosse, não lhe incomodasse.

Nunca ousara tanto, ele reconhecia. Tanto é que agora, de joelhos, pedia que ela lhe perdoasse o atrevimento. E concordava que os bofetes que estava recebendo eram merecidos, mas tinha a recompensa de não estar sendo alvo de gozações no escritório.

Fonte> Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor

Hinos de Cidades do Brasil (Maringá/PR)


Letra: Ary de Lima
 
I

Quem te avista, nos dias de agora,
Acenando ao porvir da esperança,
Adivinha a floresta de outrora
Que embalou tua vida criança.
Há em ti a grandeza imponente
De um passado que exemplos nos dá:
– Se és glória da Pátria contente,
És orgulho do teu Paraná.

Linda flor, a mais gentil,
Do norte do Paraná,
És orgulho do Brasil,
Nossa amada Maringá. (BIS)

II

O teu vulto traduz a mensagem
De um passado coberto de glória,
Arrancado à floresta selvagem
Para eterno viver na história.
Um poema de luz para o mundo
O teu nome sublime será,
E de nosso afeto profundo
Sempre filha serás Maringá.

Linda flor, a mais gentil,
Do norte do Paraná,
És orgulho do Brasil,
Nossa amada Maringá. (BIS)

III

Teu encanto de hoje é retrato
Das belezas que Deus espalhou
Como bênçãos do céu sobre o mato
Que a tua grandeza enfeitou.
Há em ti o perfume das flores,
A poesia de todos os ninhos,
E uma luz que acende fulgores,
Clareando teus novos caminhos.

Linda flor, a mais gentil,
Do norte do Paraná,
És orgulho do Brasil,
Nossa amada Maringá. (BIS)

Luís da Câmara Cascudo (Chico Rei)

(Folclore do sudeste)

UM REI africano foi derrotado em combate e feito prisioneiro. O vencedor destruiu aldeias, plantações e celeiros do vencido. Reuniu a Rainha e os príncipes-meninos, sacudiu-os na estrada, como um rebanho sem nome, vendendo-os a todos como escravos, para o Brasil.

Na travessia do Atlântico, o Rei negro perdeu um filho e viu morrerem seus melhores generais e soldados fiéis, de fome, de frio, de maus-tratos. Impassível na humilhação, majestoso na derrocada, o soberano, riscado de chicotadas, faminto e doente, pisou as areias do Novo Mundo, como o último dos homens.

Foi, dias e dias, exposto no mercado dos escravos, marcado com tinta branca, comendo uma vez por dia.

Um proprietário de minas de ouro, vindo ao Rio de Janeiro para adquirir reforço vivo para o trabalho esgotante das lavras, escolheu o Rei, como quem simpatiza como um forte animal que o cansaço definhou.

Apalpou-lhe os braços, os ombros, fê-lo abrir a boca, mastigar, tossir e andar, e comprou-o, num lote compreendendo mulheres e homens. Marcharam a pé para as Minas Gerais, ao sol, à chuva, num tropel inominado e melancólico de condenados sem crime.

O Rei, de calças de algodão, busto nu, abria a marcha, como se dirigisse suas tropas, ao alcance das cubatas, cercado de honrarias. 

Ficaram todos em Vila Rica.

O Rei negro fora batizado com o nome de Francisco. Os negros escravos, em voz baixa, juntavam os dois títulos supremos do ex- soba valoroso. Diziam-lhe o nome cristão e o predicamento real.

O escravo era Chico Rei.

Silencioso, tenaz, obstinado, o negro revolvia terra e balançava a bateia com a regularidade de uma máquina sem repouso e sem pausa. Feitor e amo distinguiam-no pela sua sobriedade, esforço invulgar e natural compostura de modos e de ações.

Derredor de sua figura agrupavam-se os escravos que tinham sido guerreiros valentes, curvados, teimosos, insensíveis ao tempo, multiplicando o trabalho.

Um dia, Chico Rei apareceu ao amo com o preço de sua mulher em pepitas de ouro. O fazendeiro aceitou o prêmio e assinou a carta de alforria da negra, que fora uma rainha.

Mais algum tempo, Chico Rei era livre. Ele e a mulher, ajudados pela fidelidade de uma Corte que a desgraça não apagara em valor, economizavam, noite e dia, o preço da liberdade dos filhos e dos vassalos.

Ano a ano Chico Rei retirava da massa cativa homens e mulheres, restituindo ao trabalho livre seus velhos companheiros de armas e de caçadas. Uma a um, reconstruía-se o reino perdido, agora nas terras americanas.

Comprou ele uma lata de terra na Encardideira. A terra era uma mina de ouro. Chico Rei ficou rico, e o ouro ampliou os limites do seu domínio que era a reunião de homens livres, presos por um liame de veneração e de esperança.

Rei de manto e coroa, aclamado nas festas de Nossa Senhora do Rosário, Chico Rei era realmente um Soberano, com o poder de um direito que fora conquistado com lágrimas, sofrimentos e martírios.

Nenhuma autoridade era superior à sua voz, voz de Rei no mando, sem esquecer os anos igualitários no eito da escravidão. Negros e negras viviam com conforto e tinham alegrias trovejantes nos bailes populares, nos batuques que se estiravam pelas noites, no círculo sem-fim das danças-ginásticas e coletivas.

No dia 6 de janeiro, da Encardideira, vinha aquele Reino da África, vistoso, empenachado, rutilante de pedrarias, bailando pelas calçadas de Vila Rica, a Outro Preto, aristocrática, povoada de igrejas e de palácios, em louvor da Padroeira dos Escravos.

A Rainha, suas filhas e damas de honra traziam a carapinha empoada de ouro. Depois da Missa, da Procissão, dos bailados públicos, antes que voltassem ao Reino que se erguia, disciplinado e tranquilo, na Encardideira, Rainha e vassalas banhavam a cabeça na pia de pedra que há no Alto da Cruz. No fundo da taça, brilhando na água trêmula, ficava todo o ouro que enfeitara os penteados.

Novos escravos iam sair do cativeiro, resgatados por aquela dádiva singular. Por isso ninguém esquece, nas terras livres das Minas Gerais, a fisionomia de Chico Rei, o negro soberano, vencedor do destino, fundador de tronos, pela persistência, serenidade e confiança nos recursos eternos do trabalho.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos. 
Disponível em Domínio Público. 

Dorothy Jansson Moretti (Trovas ao entardecer) – 7

A flor, de orvalho luzindo,
em minúsculas centelhas,
aos raios do sol se abrindo,
faz seu convite às abelhas.
= = = = = = = = = 

Altiva, entre seda e brilho,
desfilas na passarela,...
sem ver que o amor, maltrapilho,
ruma estrada paralela.
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A madressilva enroscada
do coreto à grade mestra,
é "tiéte" muda, extasiada
às mil cambiantes da orquestra.
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A vida, lição preciosa,
em conceito vário e certo,
contrapõe a espinho em rosa,
flor nas pedras de um deserto.
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Chego ao fim e em realidade,
não sei que rumo tomar -
Seguir, matando a saudade,
ou deixando-a me matar.
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Das alegrias passadas
que o tempo ingrato perdeu,
guardo lembranças mofadas,
relíquias do meu museu.
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Estrada velha e pressaga.
De rude casebre à porta,
desfia a saudade a saga
de sua esperança morta.
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Estranha sorte a da orquídea!
tão bela e tão desejada,
curvar-se à eterna perfídia,
vivendo a um tronco amarrada!
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Eu me faço de blindado:
"Amor? Bobagem! Pieguice!"
(Meu medo é que, apaixonado,
eu me envolva na... tolice).
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Gauchada hospitaleira
tem sobre o fogo de chão,
sempre a "caliente" chaleira
do acolhedor chimarrão.
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Goteja quieta a caverna,
sem cansaço, sem limite,
a erguer, na abstração eterna
sua eterna estalagmite.
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Guris brincando na praça...
Lá do alto espia a lua;
e a procissão, lenta, passa...
Que saudade, minha rua!
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Minha dúvida de outrora
só me deu felicidade;
a amargura veio agora,
no tormento da verdade.
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Mira o gaúcho as urtigas
das Missões... e ao céu azul
murmura as preces antigas
do seu Rio Grande do Sul.
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Num adágio popular
nos encanta a alegoria
tão singela e a revelar
tão vasta sabedoria!
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Num sussurro de acalanto
minha mãe põe-se a rezar,
e junto ao nome do santo,
ouço-a meu nome invocar.
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O dourado no poente
do sol a se despedir,
é como a alma da gente,
driblando a mágoa a sorrir.
= = = = = = = = =

Os reveses de costume
tão calma, enfrenta Maria,
que lhe chamam (e ela assume)
o nome de... cal-Maria.
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O sol descobrindo o manto
de bruma que envolve a serra,
reprisa a cena de encanto
no espetáculo da Terra.
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O teu perfume discreto,
assim como quem não quer,
disfarça um grito concreto:
"Eis-me aqui! Eu sou mulher!"
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Progrediu minha cidade...
Da magia do lampião
restou somente a saudade
de um romântico clarão.
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Quando a noite desce o manto
e mais escura se faz,
mais me achego ao acalanto
do lampiãozinho de gás.
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Que não chores a derrota
e o desânimo te traia.
O mar que engole uma frota
é o mesmo que leva à praia.
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Rola o tempo, bom ou adverso,
sem cansaço, sem ceder,
mais velho do que o universo,
sem tempo para morrer.
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Se admitimos o conceito
da "geração liberada",
assumimos que respeito
é coisa morta e enterrada.
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Se questiono o sim e o não
dos lances que a vida oferta,
o silêncio e a solidão
me dão a resposta certa.
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Sinais e placas no asfalto
não impedem que a desgraça
marque seu ponto mais alto
onde um “ás da estrada" passa.
= = = = = = = = = 

Ver-te com outro a teu lado,
desfrutando o teu carinho,
"é areia demais" (coitado!)
para o meu caminhãozinho.
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Vivemos longe, é verdade,
mas estejas onde for,
eu chego lá... de saudade,
a ponte aérea do amor.
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Fonte> Dorothy Jansson Moretti. Painel do entardecer. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2013.
Enviado pela trovadora. 

João do Rio (Pequenas profissões)

O cigano aproximou-se do catraieiro. No céu, muito azul, o sol derramava toda a sua luz dourada. Do cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho multiforme das ilhas verdejantes, dos navios, das fortalezas. Pelos boulevards sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuada da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios. O cigano, de fraque e chapéu mole, já falara a dois carroceiros moços e fortes, já se animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus gestos duros, pelo brilho do olhar, bem se percebia que o catraieiro seria a vítima, a vítima definitiva, que ele talvez procurasse desde manhã, como um milhafre esfomeado.

Eduardo e eu caminhamos para a rampa, na aragem fina da tarde que se embebia de todos aqueles cheiros de maresia, de gordura, de aves presas, de verduras. O catraieiro batia negativamente com a cabeça.

– Uma calça, apenas uma, em muito bom estado.

– Mas eu não quero.

– Ninguém lhe vende mais barato, palavra de honra. E a fazenda? Veja a fazenda.

Desenrolou com cuidado um embrulho de jornal. De dentro surgiu um pedaço de calça cor de castanha.

– Para o serviço! Dois mil réis, só dois!...Eu tenho família, mãe, esposa, quatro filhos menores. Ainda não comi hoje! Olhe, tenho aqui uns anéis...não gosta de anéis?

O catraieiro ficara, sem saber como, com o embrulho das calças, e o seu gesto fraco de negativa bem anunciava que iria ficar também com um dos anéis. O cigano desabotoara o fraque, cheio de súbito receio.

– É um anel de ouro que eu achei, ouro legítimo. Vendo barato: oito mil réis apenas. Tudo dez mil réis, conta redonda!

O catraieiro sorria, o cigano era presa de uma agitação estranha, agarrando a vítima pelo braço, pela camisa, dando pulos, para lhe cochichar ao ouvido palavras de maior tentação; ninguém naquele perpétuo tumulto, ninguém no rumor do estômago da cidade, olhava sequer para o negócio desesperado de cigano. Eduardo, que nessa tarde passeava comigo, arrastou-me pelo ex-Largo do Paço, costeando o cais até a velha estação das barcas.

– Admiraste aquele negociante ambulante?

– Admirei um refinado "vigarista"...

– Oh! meu amigo, a moral é uma questão de ponto de vista. Aquele cigano faz parte de um exército de infelizes, a que as condições da vida ou do próprio temperamento, a fatalidade, enfim, arrasta muita gente. Lembras-te de La romera de Santiago, de Velez de Guevara? Há lá uns versos que bem exprimem o que são essas criaturas:

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Saliendose a los caminos...

É quanto basta como moral. Não sejamos excessivos para os humildes.

O Rio tem também as suas pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo comércio; o Rio, como todas as grandes cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos desgraçados. Aquelas calças do cigano, deram-lhas ou apanhou-as ele no monturo, mas como o cigano não faz outra coisa na sua vida senão vender calçar velhas e anéis de plaquete, aí tens tu uma profissão da miséria, ou se quiseres, da malandrice – que é sempre a pior das misérias. Muito pobre diabo por aí pelas praças parece sem ofício, sem ocupação. Entretanto, coitados! O ofício, as ocupações, não lhes faltam, e honestos, trabalhosos, inglórios, exigindo o faro dos cães e a argúcia dos repórteres.

Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier: nada se perde na natureza. A polícia não os prende, e, na boêmia das ruas, os desgraçados são ainda explorados pelos adelos, pelos ferros-velhos, pelos proprietários das fábricas...

– As pequenas profissões!... É curioso!

As profissões ignoradas. Decerto não conheces os trapeiros sabidos, os apanha-rótulos, os selistas, os caçadores, as ledoras de buena dicha. Se não fossem o nosso horror, a Diretoria de Higiene e as blagues das revistas de ano, nem os ratoeiros seriam conhecidos.

– Mas, senhor Deus! É uma infinidade, uma infinidade de profissões sem academia! Até parece que não estamos no Rio de Janeiro...

– Coitados! Andam todos na dolorosa academia da miséria, e, vê tu, até nisso há vocações! Os trapeiros, por exemplo, dividem-se em duas especialidades – a dos trapos limpos e a de todos os trapos. Ainda há os cursos suplementares dos apanhadores de papéis, de cavacos e de chumbo. Alguns envergonham-se de contar a existência esforçada. Outros abundam em pormenores e são um mundo de velhos desiludidos, de mulheres gastas, de garotos e de crianças, filhos de família, que saem, por ordem dos pais, com um saco às costas, para cavar a vida nas horas da limpeza das ruas.

De todas essas pequenas profissões a mais rara e a mais parisiense é a dos caçadores, que formam o sindicato das goteiras e dos jardins. São os apanhadores de gatos para matar e levar aos restaurants, já sem pele, onde passam por coelho. Cada gato vale dez tostões no máximo. Uma só das costelas que os fregueses rendosos trincam, à noite, nas salas iluminadas dos hotéis, vale muito mais. As outras profissões são comuns. Os trapeiros existem desde que nós possuímos fábricas de papel e fábricas de móveis. Os primeiros apanham trapos, todos os trapos encontrados na rua, remexem o lixo, arrancam da poeira e do esterco os pedaços de pano, que serão em pouco alvo papel; os outros têm o serviço mais especial de procurar panos limpos, trapos em perfeito estado, para vender aos lustradores das fábricas de móveis. As grandes casas desse gênero compram em porção a traparia limpa. A uns não prejudica a intempérie, aos segundos a chuva causa prejuízos enormes. Imagina essa pobre gente, quando chove, quando não há sol, com o céu aberto em cataratas e, em cada rua, uma inundação!

– Falaste, entretanto, dos sabidos?

– Ah! Os sabidos dedicam-se a pesquisar nos montes de cisco as botas e os sapatos velhos, e batem-se por duas botas iguais com fúria, porque em geral só se encontra uma desirmanada. Esses infelizes têm preço fixo para o trabalho, uma tarifa geral combinada entre os compradores, os italianos remendões. Um par de botas, por exemplo, custa 400 réis, um par de sapatos 200 réis. As classes pobres preferem as botas aos sapatos. Uma bota só, porém, não se vende por mais de 100 réis.

– Mas é bem pago!

– Bem pago? Os italianos vendem as botas, depois de consertadas, por seis e sete mil réis! E o mesmo que acontece aos molambeiros ambulantes como o cigano que acabamos de ver – os belchiores compram as roupas para vendê-las com quatrocentos por cento de lucro. Há ainda os selistas e os ratoeiros. Os selistas não são os mais esquadrinhadores, os agentes sem lucro do desfalque para o cofre público e da falsificação para o burguês incauto. Passam o dia perto das charutarias pesquisando as sarjetas e as calçadas à cata de selos de maços de cigarros e selos com anéis e os rótulos de charutos. Um cento de selos em perfeito estado vende-se por 200 réis. Os das carteiras de cigarros têm mais um tostão. Os anéis dos charutos servem para vender uma marca por outra nas charutarias e são pagos cem por 200 réis. Imagina uns cem selistas à cata de selos intactos das carteirinhas e dos charutos; avalia em 5% os selos perfeitos de todos os maços de cigarros e de todos os charutos comprados neste país de fumantes; e calcula, após este pequeno trabalho de estatística, em quanto é defraudada a fazenda nacional diariamente só por uma das pequenas profissões ignoradas.

– Gente pobre a morrer de fome, coitados...

– Oh! não. O pessoal que se dedica ao ofício não se compõe apenas do doloroso bando de pés descalços, da agonia risonha dos pequenos mendigos. Trabalham também na profissão os malandros de gravata e roupa alheia, cuja vida passa em parte nos botequins e à porta das charutarias.

– E é rendoso?

– Rendoso, propriamente, não; mas os selistas contam com o natural sentimento de todos os seres que, em vez de romper, preferem retirar o selo do charuto e rasgar a parte selada das carteirinhas sem estragar o selo.

– Mas os anéis dos charutos?

– Oh! isso então é de primeiríssima. Os selistas têm lugar certo para vender os rótulos dos charutos Bismarck – em Niterói, na Travessa do Senado. Há casas que passam caixas e caixas de charutos que nunca foram dessa marca. A mais nova, porém, dessas profissões, que saltam dos ralos, dos buracos, do cisco da grande cidade, é a dos ratoeiros, o agente de ratos, o entreposto entre as ratoeiras das estalagens e a Diretoria de Saúde. Ratoeiro não é um cavador – é um negociante. Passeia pela Gamboa, pelas estalagens da Cidade Nova, pelos cortiços e bibocas da parte velha da urbs, vai até ao subúrbio, tocando uma cornetinha com a lata na mão. Quando está muito cansado, senta-se na calçada e espera tranquilamente a freguesia, soprando de espaço a espaço no cornetim.

Não espera muito. Das rótulas há quem os chame; à porta das estalagens afluem mulheres e crianças.

– Ó ratoeiro, aqui tem dez ratos!

– Quanto quer?

– Meia pataca.

– Até logo!

– Mas, ô diabo, olhe que você recebe mais do que isso por um só lá na Higiene.

– E o meu trabalho?

– Uma figa! Eu cá não vou na história de micróbio no pêlo do rato.

– Nem eu. Dou dez tostões por tudo. Serve?

– Heim?

– Serve?

– Rua!

– Mais fica!

E quando o ratoeiro volta, traz o seu dia fartamente ganho...

Tínhamos parado à esquina da Rua Fresca. A vida redobrava aí de intensidade, não de trabalho, mas de deboche.

Nos botequins, fonógrafos roufenhos esganiçavam canções picarescas; numa taberna escura com turcos e fuzileiros navais, dois violões e um cavaquinho repinicavam. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira do quiosque, meretrizes de galho de arruda atrás da orelha e chinelinho na ponta do pé, carregadores espapaçados, rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o corpo flexível dos birbantes, marinheiros, bombeiros, túnicas vermelhas e fuzileiros – uma confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxúria crescia.

De repente o meu amigo estacou. Alguns metros adiante, na Rua Fresca, um rapaz doceiro arriara a caixa, e sentado num portal, entregava o braço aos exercícios de um petiz da altura de um metro. Junto ao grupo, o cigano, com outro embrulho, falava.

– Vês? Aquele pequeno é marcador, faz tatuagens, ganha a sua vida com três agulhas e um pouco de graxa, metendo coroas, nomes e corações nos braços dos vendedores ociosos. O cigano molambeiro aproveita o estado de semi-dor e semi-inércia do rapaz para lhe impingir qualquer um dos seus trapos...um psicólogo, como todos os da sua raça, psicólogo como as suas irmãs que lêem a buena dicha por um tostão e amam por dez com consentimento deles.

Oh! essas pequenas profissões ignoradas, que são partes integrantes do mecanismo das grandes cidades!

O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de Paris, a geografia da Manchúria e o patriotismo japonês. A apostar, porém, que não conhece nem a sua própria planta, nem a vida de toda essa sociedade, de todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria da vasta Babel que se transforma. E entretanto, meu caro, quanto soluço, quanta ambição, quanto horror e também quanta compensação na vida humilde que estamos a ver.

Estos son algunos hombres De obligaciones, que pasan Necesidad, y procuran De esta suerte remediarla Saliendose a los caminos...

Mas o meu amigo não continuou o fio luminoso de sua filosofia. O catraieiro apareceu rubro de cólera, e sutilmente cosia-se com as paredes, ao aproximar-se do cigano.

De repente deu um pulo e caiu-lhe em cima de chofre.

– Apanhei-te, gatuno!

O cigano voltara-se lívido. Ao grito do catraieiro acudiam, numa sarabanda de chinelas, fúfias, rufiões, soldados, ociosos, vendedores ambulantes.

– Gatuno! Então vendes como ouro um anel de plaquete? Espera que te vou quebrar o queixo. Sacudiu-o, atirou-o no ar para apanhá-lo com uma bofetada. O cigano porém caiu num bolo, distendeu-se e partiu como um raio por entre a aglomeração da gentalha, que ria. O catraieiro, mais corpulento, mais pesado, precipitou-se também.

Os vagabundos, com o selvagem instinto da caça, que persiste no homem – acompanharam-no. E pelos boulevards, onde se acendiam os primeiros revérberos, à disparada entre as praças sucessivas, a ralé dos botequins, aos gritos, deitou na perseguição do pobre cigano molambeiro, da pobre profissão ignorada, que, como todas as profissões, tem também malandros.

Então Eduardo sentenciou.

– Tu não conhecias as pequenas profissões do Rio. A vida de um pobre sujeito deu-te todos esses úteis conhecimentos. Mas, se esse pobre sujeito não fosse um malandro, não conhecerias da profissão até mesmo os birbantes (patifes).

A moral é uma questão de ponto de vista. Para julgar os homens basta a gente defini-los segundo os seus sucessivos estados. Se te aprouver definir os profissionais humildes pela tua ultima impressão, emprega os mesmos versos de Guevara com uma pequena modificação:

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Corriendo por los cáminos…

Fonte> João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Publicado em 1908. Disponível em Domínio Público. 

Fabiane Braga Lima (Sete dias!)

O tempo estava nublado, mas eu precisava ir ao médico. Praticamente São Paulo sempre está nublado ou garoando. E eu não consegui arrumar um táxi. Então, pedi à vizinha que me levasse até a clínica. O doutor Lucas, como de costume, estava atrasado. Sentei-me e esperei ser chamada. O meu médico chegou três horas atrasado. 

— Eva! — felizmente a recepcionista me chamou. 

Levantei-me e entrei no consultório e lá estava o meu médico, o doutor Lucas. Ele me olhou com pesar e senti algo estranho no ar. 

— Hoje não é uma consulta de rotina, apenas lhe entregarei o diagnóstico do último exame que a senhora fez. — disse o médico de forma comedida.   

— Posso abrir, aqui? — perguntei com medo. 

— Fique à vontade! — respondeu tenso o médico.

Li trêmula o diagnóstico nas minhas mãos, e eu não acreditei, eu estava com câncer no intestino. O médico me confortou e disse que estava no estágio um. O doutor Lucas me encaminhou para fazer o tratamento que seria longo, lento e doloroso, então realizei várias quimioterapias. Sentia-me confiante. 

Os meses se passaram e lá estava eu de novo, na frente do doutor Lucas. Eu com os resultados dos exames, eu nervosa e trêmula, não consegui abrir os resultados dos exames. Eu devolvi os exames de volta para o meu médico, esperando que ele abrisse o envelope e lesse o que ele já sabia. 

— Nem uma melhora? — perguntei já intuindo o que eu já sabia.

— Infelizmente, não senhora Eva, o câncer se apostrofou, sinto muito.

 — Existe outro procedimento? — perguntei ao médico sem muitas esperanças. Eu não tinha um fio de cabelo no corpo, estava cansada e com o corpo cheio de remédios para aliviar as dores intermináveis.

— A senhora tem sete dias no máximo, aproveite a vida, faça tudo que sempre teve vontade. — disse o médico serenamente.  

Eu estava muito debilitada, eu não podia me locomover muito bem. Reuni todas as forças que eu ainda tinha, peguei meu seguro de vida, resolvi aproveitar os setes dias. Fui arrumar as malas, fui procurar Ezequiel, ele estava me esperando na frente da casa dele. 

— Como foi? Anda, diz!  — perguntou Ezequiel para lá de curioso com o óbvio.

— Por favor, mantenha a calma. Tenho sete dias. O câncer se espalhou, Ezequiel! — de pronto falei sem rodeios. 

Desesperado, ele desmaiou, logo pensei quem era, mesmo o lado mais frágil da relação. Eu queria gritar alto, mas não gritei, era o fim de uma relação dúbia e estranha. Não era o melhor jeito de acabar uma relação, eu bem sei, mas chega de fraquezas para o pouco tempo que tenho.  Agora, mais um problema brotou na minha cabeça, algo bem prático a bem da verdade. Eu precisava chamar um táxi, quero viajar, durante o pouco tempo que ainda me restava, somente sete dias. Deixei Ezequiel desmaiado e aproveitei o resto de meus dias. Resolvi ir a Búzios. Cruel? Talvez, pois não era tempo para ser leve e justa. Então lá estava ele, por fim a vida me era favorável, um táxi que estava vago, a poucos metros. Então não pensei duas vezes, levantei e o motorista me avistou e parou. Depois de uma breve discussão com o profissional do volante, entrei no carro de aluguel e parti. Eu queria ver o mar, por quê? Eu não sei dizer.   

Ao chegar no meu destino e que lugar lindo, o hotel era cinco estrelas, para minha sorte era baixa temporada e o local estava quase deserto. Nunca imaginei conhecer tanto luxo, sempre fui uma simples secretária. Só me lembro de estar diante da recepção do hotel, sem saber o que eu estava fazendo direito. E eu, esquálida, fui até o outro lado da rua, entrei na loja e comprei um biquíni. Eu queria me embainhar, adentrar no oceano e partir rumo à praia.  

  Sabe, eu nunca me senti tão feliz. Joguei a toalha na areia e me deitei perto dos rapazes, e logo se dispersaram. Logo notei, um deles dizendo: — Aquela estranha, estou enojado, vamos embora. 

Como não percebi, era a minha classe social estampada na minha, pensei, sem pensar na minha condição física. 

Havia somente poucos dias para aproveitar, esnobei e Ezequiel, que estava desempregado, pensei que o nosso amor era recíproco. Coberta de remorsos voltei para o hotel e arrumei as malas e voltei para casa, se fosse morrer eu queria morrer em casa. 

A viagem de volta não foi fácil, mil coisas passaram na minha cabeça, como seria a minha volta? Como eu seria recebida? E lá estava ele me esperando com os olhos rasos d’água. Ao descer do táxi Ezequiel me abraçou chorando como uma criança, então estava o lado frágil da relação de novo. 

— Eva meu amor, o médico precisa dizer algo importante. — disse Ezequiel soluçando e continuou. 

Fomos até a clínica. Entramos no consultório, e o Doutor disse-me: — Tenho uma boa notícia! 

— Pois me diga! — falei friamente.

— O diagnóstico não era seu, foi um erro da recepcionista, está curada, espero que possa perdoá-la. — ponderou Ezequiel, olhando os meus olhos em chamas  

— Perdoá-la, eu quero matá-la, me fez gastar o dinheiro por nada! — falei no meu desespero.  

Estávamos prestes a comprar um apartamento. Agora tenho que inventar uma desculpa para Ezequiel.

Chegando em casa, sentei-me e pensei rápido em meio à confusão mental que eu estava. 

— O tratamento foi caro, tive que gastar o dinheiro que a gente guardou...

— Esqueça isto, Eva, meu amor, arrumei um emprego, o salário é bom! — falou Ezequiel eufórico.

— Fico feliz! — falei desanimada 

— Vamos nos casar, Eva, eu quero casar contigo. Mas com uma condição, daqui a sete dias você arrumará outro emprego, sei de tudo querida. — disse Ezequiel sério, ele sabia que eu era infeliz no meu emprego.  

— Ezequiel. — falou colocando a mão no rosto dele.

— Eva meu amor! Sempre estive ao seu lado, lembra-se?

— Desculpa-me? – perguntei emocionada para Ezequiel.  

— Sete dias! – falou Ezequiel, olhando fundo em meus olhos. 

Ele sempre soube de tudo, me conhecia a mim mais que eu mesma. Mentiras, tem consequências. Devemos valorizar tudo o que for recíproco. 

Fonte: enviado por Samuel C. da Costa

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 16

 

Mensagem na Garrafa – 69 -

Mário Quintana
Alegrete/RS, 1906 - 1994, Porto Alegre/RS

Quem sabe um dia
Quem sabe um seremos
Quem sabe um viveremos
Quem sabe um morreremos!

Quem é que
Quem é macho
Quem é fêmea
Quem é humano, apenas!

Sabe amar
Sabe de mim e de si
Sabe de nós
Sabe ser um!

Um dia
Um mês
Um ano
Um(a) vida! Sentir primeiro, pensar depois
Perdoar primeiro,  julgar depois

Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois

Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois

Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois

Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois.