terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Laé de Souza (Atrevimento do Januário)

"Não. Não chegou ainda, senhora." Falou o porteiro, num tom de voz meio áspero, resultado do quinto telefonema.

"Não esqueça de avisar que ele não durma, sem antes me ligar e que estarei esperando", insistiu Gracilina.

Nunca havia acontecido do Januário ter aprontado uma dessas. Sempre foi um sujeito caseiro e temente à mulher. Aquela viagem a serviço com colegas não fora bem aceita por ela, mas, por fim concordou, diante dos argumentos de crise e do crescente desemprego, que ele deveria sacrificar-se por dois dias noutra praça.

Desde os tempos de namoro que o Januário passava aperto e sempre sujeito a prestar contas dos seus movimentos e ausências, mesmo que por tempo mínimo. O que ela dizia ser interesse por ele, para mim, era observação meticulosa de mulher desconfiada.

Januário nunca leu coisa qualquer que Gracilina não lhe interrogasse do assunto e esbugalhasse aqueles negros olhos a querer captar um mistério no motivo do livro nas suas mãos.

O domínio sobre seus interesses e o ciúme vinha de longe. Descobriu sua assinatura da revista Playboy e, tanto fez, até que ele cancelou. Nem por isso, deixou de lhe revirar as coisas, e acertou no pressentimento de que ele não resistiria a comprar a da pose da Vera Fischer. Teve longas noites de insónia quando alardeou-se que, de novo, posaria a Carla Perez e, embora não o tenha pego em flagrante (acredito que também por zelo do Januário), não lhe sai da cabeça que o fulano viu a Carla pelada. E não é para morrer de ciúmes?!

Não passou dos três primeiros capítulos de Hilda Furacão. Quando percebeu que o tema desandava para a leviandade e estímulos ousados, numa crise de ciúmes, Gracilina proibiu que adentrassem à sala tais cenas. 

Januário nunca levantou a voz ou contrariou Dona Gracilina. Nem bem pisou no degrau de entrada do hotel, o porteiro foi lhe avisando dos oito telefonemas da mulher, que ela estava brava e mandou lhe dar o recado que não estava gostando nem um pouco daquela palhaçada e que ele ligasse imediatamente para casa.

Não se ouvia outra coisa que não fosse gargalhada e via-se o riso malicioso do porteiro. Januário refletiu que fosse qual fosse o tamanho do seu aprontamento a mulher iria lhe comer o fígado quando lá chegasse de volta. Melhor ficar com um, do que dois problemas. Não se pode negar que a cachaça ajudou a não deixá-lo desmoralizado perante os colegas. Tomou do telefone e pela reabilitação, xingou a mulher como nunca fizera e que ela não tivesse novamente a ousadia de lhe importunar, sob pena de levar uma sova maior ainda, porque pelo menos uns sopapos ela levaria quando do seu retorno. Bateu o telefone, não dando tempo para Gracilina sair do espanto, dirigiu-se ao porteiro dizendo que fosse quem fosse, não lhe incomodasse.

Nunca ousara tanto, ele reconhecia. Tanto é que agora, de joelhos, pedia que ela lhe perdoasse o atrevimento. E concordava que os bofetes que estava recebendo eram merecidos, mas tinha a recompensa de não estar sendo alvo de gozações no escritório.

Fonte> Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor

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