quarta-feira, 10 de julho de 2024

Vereda da Poesia = 56 =


Trova Humorística do Rio de Janeiro/RJ

MARIA NASCIMENTO SANTOS CARVALHO

No documento é solteira,
mas vendo a idade da dona,
diz a patroa encrenqueira:
solteira, não, solteirona...
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Poema do Estado de São Paulo

MIGUEL REALE 
São Bento do Sapucaí/SP, 1910 – 2006, São Paulo/SP

Colunas do tempo

Ardem meus pés na turfa da existência,
pés doridos de avanços e recuos,
nem há como atenuar a dor intensa
que é látego de nervos e perguntas.
Sinto-me planta um plátano partido
pés fincados no chão,
estaca lavrada e fria
relegada à beira do caminho.

É o que resta da vida em labirinto
esgalhada em mil aspirações,
vida barroca incerta e retorcida
à sombra de arabescos e ouropéis.
Como as colunas dóricas perduram!
Esguias retilíneas intocáveis
em sua heráldica forma para o alto,
sem frisos ou volutas perturbando
a serena ascensão vertical.

Quem já se lembra dos antigos ritos
à luz do templo - templo eleusínio
na secreta unidade da semente
donde brotam vitórias e derrotas
que são vaidade e cruz da espécie humana?

É tarde, é muito tarde!
Nem há mais púlpito ou monge que o proclame
para que as horas voltem à sua fonte
na comunhão dos homens e dos deuses.
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Trova de Portugal

AUGUSTO CÉSAR FERREIRA GIL
Lordelo de Ouro/Portugal, 1873 – 1929, Guarda/Portugal

Riquezas tenhas tão grandes,
e tal bondade também,
que ao redor donde tu andes
não fique pobre ninguém.
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Soneto de Maceió/AL

LÊDO IVO
Maceió/AL, 1924 – 2012, Sevilha/Espanha

Soneto de Outubro 

Se mais que a forma e mais que o pensamento
guardado na vigília, sem temor.
Fica no meu olhar, como no amor
verteria teu nome em verso atento.

Sê mais que a forma sempre em movimento
tornada mais humana pela dor.
Fica dormindo em mim, quando eu me for
e te deixar entregue ao desalento.

Sê minha mesmo que eu não te conheça
e te ame sem te ver, sempre te vendo
na forma que jamais fuja ou pereça.

Para tocar-te, eu sempre as mãos estendo
mas não te alcanço, e em minhas mãos transformas
teu corpo imaginário em puras formas. 
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Trova Premiada  em Rio Bonito/RJ, 2006

JOSÉ OUVERNEY 
(Pindamonhangaba/SP)

Não deixe que a vida o leve
por caminhos viscerais;
a vida já é tão breve!
Por que encurtá-la ainda mais?
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Poema de Itajaí/SC

SAMUEL DA COSTA

Afra

Um sorriso apenas!!!
Seduz-me.
Manda-me para casa.
Alegra o meu dia...
Embriaga-me de desejo.
Derrota-me por fim,
Esvanece-me!

Re-luz na minha treva diária.
Lança-me para luz...
Na minha luta diária!
Derrota-me...
Por fim.

Um sorriso apenas, e nada mais.
Beltia imortal!
Dos meus desejos mais profanos!
Visita-me no meu sonho, mais sagrado...
Na infinitude, de todo o meu ser.
Imperfeito!

Deusa sagrada.
Me da um sorriso apenas,
Evanece-me por fim!
Sorri e me derrota.
Manda-me para casa.
Sozinho e derrotado

Lança-me para minha treva diária.
Para a minha vida vazia.
Derrote-me...
Esvanece-me por fim.
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Trova Popular

Hei de fazer um relógio
de um galhinho de poejo,
para contar os minutos
do tempo que não te vejo.
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

BEATRIZ FRANCISCA DE ASSIS BRANDÃO
Vila Rica (atual Ouro Preto)/MG, 1779 – 1868, Rio de Janeiro/RJ

Soneto

Estas, que o meu Amor vos oferece,
Não tardas produções de fraco engenho,
Amadas Nacionais, sirvam de empenho
A talentos, que o vulgo desconhece.

Um exemplo talvez vos aparece
Em que brilheis nos traços, que desenho:
De excessivo louvor glória não tenho,
E se algum merecer de vós comece.

Raros dotes talvez vivem ocultos,
Que o receio de expor faz ignorados;
Sirvam de guia meus humildes cultos.

Mandei ao Pindo os voos elevados,
E tantos sejam vossos versos cultos,
Que os meus nas trevas fiquem sepultados.
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Trova de Santos/SP

CAROLINA RAMOS

Sempre que um tronco desaba,
sob o machado inclemente,
tarde ou cedo a gente acaba
sentindo a dor que ele sente!
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Poema de Porto Alegre/RS

ADÉLIA EINSFELDT

Desconhecida

Sou desconhecida
      irreconhecida
entre a multidão.
Minha luz é apagada
Sigo pela estrada
Seguindo trilhas
      caminhos
Perdida estou.
A lua clara
       brilhante
Me acompanha
Todo instante
       intrigante
Andante que sou.
O amanhecer
me pega cansada
Sombras ao longe
Tento reconhecer
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Haicai de Santos/SP

MADÔ MARTINS

Goiaba madura -
Aberta a competição
entre homens e larvas.
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Soneto do Ceará

FRANCISCA CLOTILDE
Tauá/CE, 1862 – 1935, Fortaleza/CE

Teu Nome

É bálsamo de amor que os lábios suaviza 
É cântico do céu... encanta, atrai, consola, 
Essência lirial que para Deus se evola, 
É hino de esperança e as dores ameniza. 

Maria! Ao repetir teu nome se matiza 
De bençãos meu viver que a dor cruel. 
Doce réstia de luz, confortadora esmola 
Da graça e do perdão que as almas sublimiza. 

Permite, oh! Mãe bondosa, oh! Virgem sacrossanta 
De teu nome ideal que a melodia santa, 
Vibrando dentro em mim as horas de amargura, 

Seja a nota eteral, a nota harmoniosa 
Que minha alma murmure, a te fitar ansiosa, 
Estrela que nos guia à pátria da ventura!
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Trova de Osório/RS

SUELY BRAGA

      Muitas rosas só não falam.
      Não nos ferem com espinhos.
      Um doce perfume exalam
      e nos cobrem de carinhos.
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Glosa de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

Mote:
As trevas se dissiparam 
quando apareceu uma luz 
que todos abençoaram, 
bendito nome... Jesus!
José Feldman 
(Campo Mourão/PR)

Glosa:
As trevas se dissiparam 
quando os anjos do Senhor, 
aos homens, anunciaram 
a vinda do Salvador! 

Ao mundo se fez presente, 
quando apareceu uma luz 
nos céus, vinda do Oriente, 
anunciando o Rei Jesus! 

Os homens glorificaram 
a vinda do Deus menino, 
que todos abençoaram, 
pelo seu nascer divino! 

Nasceu numa estrebaria 
pra morrer na rude Cruz; 
só assim nos salvaria: 
bendito nome... Jesus!
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Trova do Rio Grande do Norte

CLARINDO BATISTA DE ARAÚJO
Jardim do Piranhas/RN, 1929 – 2010, Natal/RN

Contra o perigo atual
já não há quem se previna
porque, do gênio do mal,
há um clone em cada esquina!
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Soneto de Poços de Caldas/MG

LAÉRCIO BORSATO

Tributo a Nilton Tuller
(homenagem ao Pastor maringaense)

Há muito ouvi falar de seu talento
Por todos caminhos por onde pisavas.
Ainda agora na cultura em que lavras,
Traze-nos total louvor... Encantamento!

Certo, na vivência e a cada momento,
Nas veredas do altíssimo trilhavas;
Com maestria no manejo das palavras,
Sempre a expor o mais puro sentimento.

Assim em sua missão de fiel e bom pastor,
Em versos, disse ESTOU PRONTO SENHOR,
Daí o reconhecimento de todo povo...

Numa prova de amor santo, verdadeiro,
Deus, como pediste, tal qual o oleiro,
Transformou sua vida, num VASO NOVO!
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Trova Premiada  em Caxias do Sul/RS, 2012 

ROBERTO TCHEPELENTYKY 
(São Paulo/SP)

Sobre a parreira, o luar 
no sereno te retrata… 
E os teus olhos a brilhar: 
“Duas uvas”… cor de prata… 
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Poema de Curitiba/PR

CERES DE FERRANTE
1928 – 2016

Simples Geometria

Caminhamos em busca de um encontro…
Nossas vidas eram apenas paralelas.
A curva de nossos braços
não chegou a completar
seu círculo de ternura…
nem eram perpendiculares
nossos caminhos…
por isso permanecemos
dois pontos no infinito.
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Triverso de Guarulhos/SP

ANTONIO LUIZ LOPES TOUCHÉ

A paixão revigora, 
Faz o outono primavera 
Na hora. 
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Setilha de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Pausa na chuva. Gostei.
Aproveitam-se as florinhas
para alegres se exibirem
quais festivas menininhas.
De múltiplas cores elas,
brancas, azuis, amarelas,
auspiciosas rainhas.
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Trova de Santa Rita do Sapucaí/MG

ANTONIO SIÉCOLA MOREIRA

As paredes que sustentam
meus sonhos, meus ideais,
são tão sólidas que aguentam
os mais fortes vendavais!
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Hino de Piracicaba/SP

Autor: Newton de Almeida Mello

Numa saudade, que punge e mata
Que sorte ingrata longe daqui,
Em um suspiro, triste e sem termo,
vivo no ermo, dês que parti.

Piracicaba que eu adoro tanto,
Cheia de flores, cheia de encantos...
Ninguém compreende a grande dor que sente
o filho ausente a suspirar por ti !

Em outras plagas, que vale a sorte ?
Prefiro a morte junto de ti.
Amo teus prados, os horizontes,
o céu e os montes que vejo aqui.

Piracicaba que eu adoro tanto,
Cheia de flores, cheia de encantos...
Ninguém compreende a grande dor que sente
o filho ausente a suspirar por ti !

Só vejo estranhos, meu berço amado,
Tendo ao teu lado o que perdi...
Pouco se importam com teu encanto,
Que eu amo tanto, dês que nasci...

Piracicaba que eu adoro tanto,
Cheia de flores, cheia de encantos...
Ninguém compreende a grande dor que sente
o filho ausente a suspirar por ti !
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Saudade e Amor à Terra Natal
O 'Hino de Piracicaba - SP' é uma ode à cidade de Piracicaba, expressando um profundo sentimento de saudade e amor por essa terra natal. A letra, repleta de emoção, retrata a dor de estar longe de casa e a constante lembrança dos encantos e belezas da cidade. A saudade é descrita como algo que 'punge e mata', uma dor intensa que acompanha o eu lírico desde que partiu de Piracicaba.

A cidade é personificada como um lugar cheio de flores e encantos, um refúgio de beleza e paz que o eu lírico anseia reencontrar. A repetição do estribilho 'Piracicaba que eu adoro tanto, cheia de flores, cheia de encantos...' reforça o amor incondicional e a conexão profunda com a cidade. A letra também destaca a incompreensão dos outros em relação à dor do 'filho ausente', enfatizando a solidão e a saudade que acompanham aqueles que estão longe de sua terra natal.

Além disso, o hino contrasta a vida em outras plagas com a vida em Piracicaba, sugerindo que, apesar das oportunidades e sorte que possam existir em outros lugares, nada se compara ao conforto e à felicidade de estar em casa. A preferência pela morte junto à cidade natal em vez de viver longe dela é uma metáfora poderosa que ilustra a intensidade do amor e da saudade. A letra também critica a indiferença dos 'estranhos' em relação aos encantos de Piracicaba, ressaltando a conexão única e insubstituível que o eu lírico tem com sua cidade de origem. (https://www.letras.mus.br/hinos-de-cidades/473057/significado.html
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Poetrix de São Paio de Oleiros/Portugal

ANTHERO MONTEIRO
(Antero Manuel Dias Monteiro)
1946 – 2022

morte

uma cadeira vazia na alameda
sentada numa tarde de outono
a olhar o meu ponto de fuga
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)

Ampulheta

Quem se concentra no volume da areia
Que se transporta ao outro lado da ampulheta,
Não sabe olhar a solidão da lua cheia
Nem vê o sangue escorrer da baioneta.
 
Quem se divide entre o sonho e a vida
Encontra tempo entre a dor e a fantasia,
Vê que é real o surgimento da ferida,
Mas faz da vida um motivo de poesia.
 
Quem exercita o amor de forma rara
Em um planeta onde a inveja vira a cara
Para o sucesso de quem crê no ser humano,
 
Sabe que o tempo da ampulheta entorpece,
Porém o tempo do amor sempre enternece
Quem sobrevoa a solidão em outro plano.
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Trova de Santos/SP

ANTONIO COLAVITE FILHO

As lágrimas das meninas,
 Deus, não podendo contê-las,
 recolhe nas mãos divinas
 e com elas faz estrelas…
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

A mosca e a formiga

Uma mosca importuna contendia (discutia)
Com a negra formiga, e lhe dizia:
«Eu ando levantada lá nos ares,
E tu por esse chão sempre a arrastares;
Em palácios estou de grande altura,
Tu debaixo da terra em cova escura.
A minha mesa é rica e delicada;
Tu róis os grãos de trigo e de cevada:
Eu levo boa vida, e tu, formiga,
Andas sempre em trabalho e em fadiga.»

A formiga lhe disse: «Tu me enfadas
Com essas tuas vãs fanfarronadas.
Que te importa que eu ande cá de rastos
Com desprezo das pompas e dos fastos?
Para amparo e abrigo não há prova
De valer mais palácio do que cova.
O palácio é do rei ou da rainha,
E não teu; mas a cova é muito minha;
Eu a fiz com a minha habilidade;
Porventura tens tal capacidade?
Para aqui. Tuas prendas afamadas
Não passam de zunir e dar picadas.
No que toca a comer, os meus bocados
Não me sabem pior que os teus guisados.
Teus lhe chamo? — os que furtas; nesta parte
Vais comigo, que eu uso da mesma arte;
Porém não vivo em ócio e em preguiça,
Como tu, lambareira, metediça;
Por isso te aborrecem e te enxotam
Com uma raiva tal, que ao chão te botam.
Fazem-me porventura esse agasalho?
Louvam-me em diligência e em trabalho:
Eu faço para inverno provimento;
Morres nele — ou por falta de alimento,
Ou por vir sobre ti algum nordeste,
Que para a tua casta é uma peste.»
(tradução: Couto Guerreiro)

Recordando Velhas Canções (Conversa de Botequim)


Compositores: Noel Rosa e Vadico

Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo      e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol

Se você ficar limpando a mesa
     Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão                  
Uma caneta, um tinteiro,
Um envelope e um cartão,
Não se esqueça de me dar palitos 
E um cigarro pra espantar mosquitos 
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas,
Um isqueiro e um cinzeiro

Seu garçom faça o favor de me trazer depressa...
Telefone ao menos uma vez
Para três quatro quatro três três três 
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório

Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o  bicheiro,
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente

Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
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A Crônica Musical do Cotidiano de Noel Rosa
A música "Conversa de Botequim" de Noel Rosa é uma crônica cantada que retrata o cotidiano dos botequins do Rio de Janeiro na década de 1930. A letra descreve um cliente fazendo uma série de pedidos ao garçom, que vão desde uma refeição simples até favores pessoais, como emprestar dinheiro e objetos. Através de uma narrativa humorística e irônica, Noel Rosa critica sutilmente a sociedade da época, expondo a malandragem e a esperteza do carioca comum.

Noel Rosa, conhecido por sua habilidade em compor sambas com letras inteligentes e cheias de duplo sentido, utiliza a figura do garçom como um ouvinte passivo para suas demandas, que são ao mesmo tempo triviais e absurdas. A música também reflete a informalidade das relações sociais nos botequins, onde tudo parece ser possível. Além disso, a canção destaca a cultura do futebol e do jogo do bicho, elementos fortemente enraizados no Rio de Janeiro daquela época.

"Conversa de Botequim" é uma obra que, além de entreter, serve como um documento histórico e cultural. Ela nos permite vislumbrar o estilo de vida e os hábitos dos cariocas nos anos 30, bem como a atmosfera dos botequins, que eram pontos de encontro e socialização importantes naquela sociedade.

Não existe em nossa música popular crônica mais espirituosa sobre uma cena do cotidiano que a realizada por Noel Rosa em "Conversa de Botequim". Localizada em um café, ambiente que o autor conhecia como ninguém, a crônica tem como personagem principal um freguês desabusado que, ao preço de uma simples média com pão e manteiga, acha-se no direito de agir como se estivesse em sua casa.

Assim, em ordens sucessivas, ele exige do garçom atendimento rápido e eficiente : "Seu garçom faça o favor / de me trazer depressa / uma boa média que não seja requentada/ um pão bem quente com manteiga à beça / um guardanapo / um copo d'água bem gelada..." -, que inclui ainda o fornecimento de "caneta, tinteiro, envelope, cartão, cigarro, isqueiro, cinzeiro, revistas, o resultado do futebol" e até "o empréstimo de algum dinheiro", pois deixara o seu com o bicheiro.

Tudo isso fiado, pois, para terminar, o sujeito ordena: "Vá dizer ao seu gerente / que pendure essa despesa / no cabide ali em frente". Completa esta obra-prima uma melodia sincopada de Vadico, que se casa com a letra de forma primorosa, como se as duas tivessem sido feitas ao mesmo tempo, por uma mesma pessoa. Noel Rosa é o melhor intérprete de "Conversa de Botequim", uma de suas composições mais gravadas. No seu jeito simples de cantar, ele "diz" a letra com a naturalidade com que um malandro daria todas aquelas ordens a um garçom de botequim.

Fontes:

segunda-feira, 8 de julho de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 50

 

Newton Sampaio (Desencanto de gente rústica)

Para quem viesse lá das bandas do Laranjinha, com destino à ponta da estrada de ferro, a fazendola de Seu Euzébio das Neves representava um verdadeiro achado naquela zona quase desabitada do sertão paranaense.

Depois de cavalgar horas e horas, suportando o inferno da soleira danada, e vencendo quilômetros e mais quilômetros sem encontrar sequer um ranchinho de caboclo, o viajante, por acostumado que fosse, não podia disfarçar nunca uma ruidosa manifestação de alegria ao ver repontar, no fundo azulado do Pico Agudo, o casarão branco onde morava o generoso Euzébio das Neves. E, pondo no “arre! Até que enfim!” usual todo o desabafo da cansativa, transpunha a porteira entoando mil “graças a Deus” à santa ideia do sertanejo pacato em estabelecer-se por aquelas alturas.

Muita razão tinham, na verdade, os caminhantes em desejar atingir, com tanto ardor, aquele ponto da estrada. Pois, a qualquer hora e em qualquer dia, a casa de Euzébio das Neves recebia a todos com a maior boa vontade, dispensando sempre uma cativante acolhida.

Cama fofa para pouso, se preciso, mesa farta de pitéus simples, mas cheios de sabor e de sustância, palestra agradável, tudo isso era ali encontrado e cedido despretensiosamente a quem passasse. 

Euzébio das Neves era mineiro de nascimento. E, vivendo embora, havia muitos anos, longe do Coroaci inesquecível, jamais perdera aquele jeito hospitaleiro que distingue, que faz estima ao povo das Alterosas.

Sua fama, por isso, corria de boca em boca, naquele pedaço do nordeste paranaense. E era mesmo um gosto a gente aportar à fazendola onde o Seu Euzébio fazia a vida engordando porcos, revolvendo a terra e passava os dias rodeado pelo carinho da mulher e dos filhos.

Num sábado que fora cheio de sol e fora cheio de serviço (o sol já ia mergulhando atrás do Pico Agudo, e o serviço, lá pelas cinco horas fora posto de banda) — num sábado como qualquer outro, a porteira da frente gemeu preguiçosa para deixar passar um cavalo resfolegante e um guapo cavaleiro.

O cavaleiro era Lauzinho, filho do compadre Cornélio. E o cavalo era zaino do mesmo compadre Cornélio. Esse Lauzinho não tinha mais que vinte e três anos. E acusavase, logo à primeira vista, com o tipo do rapagão nascido e criado no sertão. O mundo, para ele, não precisava ir além da ponta da linha de ferro em Barra Bonita (embora, já uma vez, tivesse praticado a violência de chegar até Tomazina, a cabeça da comarca), podia-se resumir na menina de Seu Euzébio — a Maria Rosa — por causa de quem, todo sábado, depois do meio-dia, punha uma roupa melhor, encilhava o zaino, e enveredava pelas estradas ásperas, sob o sol bárbaro.

Seu costume era pousar na fazendola do Euzébio, e só no domingo, de noitinha, retomar o caminho de casa, disposto às lidas da semana, e lavando no coração o alvoroço de uma grande saudade, e nos olhos a imagem sedutora da caboclinha querida.

Maria Rosa representava tudo para Lauzinho, que nunca se afeiçoara a outra moça, e, mesmo, não queria saber de outros amores. 

Uma vez que fora fazer compras em Barra Bonita, uma sirigaita qualquer, de vestidinho curto e beiços vermelhos, tentara, muito sinsinhora, namoricar o coitado do sertanejo. Lauzinho, porém, não quisera saber de histórias. E quando, no sábado seguinte, foi visitar a Maria Rosa, achou-a mais amorável que nunca, na pureza sem par de seus dezoito anos, e no encanto inigualável de sua timidez inata.

Tudo para Lauzinho se resumia em Maria Rosa. Por causa dela vivia a mourejar, de sol a sol, em um promissor pedaço de chão. Por causa dela vinha, toda semana, nem que chovesse canivete, até o casarão branco do Euzébio das Neves gozar algumas horas de convívio com a deusinha de seus sonhos rústicos. E Maria Rosa bem que merecia tudo isso. Seus olhos eram tão bonitos... E seu amor parecia tão grande, tão do fundo do coração...

Naquele sábado Lauzinho chegara mais cedo que de costume. O sol só mostrava um pedaço de sua rodela vermelha, e as primeiras sombras da noite iam avançando, já longas e invencíveis, a leste do Pico Agudo, como que abençoando a faina árdua dos sertanejos valorosos. Estivera percorrendo trechos do terreno de um compadre do pai e, em compensação, trazia no peito mais floridas esperanças de logo conseguir o necessário para o casamento.

Maria Rosa recebeu-o com os mesmos olhos de sempre. Lauzinho não fazia nada por mal. Em nada, portanto, havia razão de zanga.

Um dia, as portas do casarão branco abriram-se para receber um tal de Dr. Ernesto, um engenheiro que andava estudando a região.

O trato do velho Euzébio cativou-o. E como tivesse de permanecer algum tempo naquelas bandas, aceitou a hospitalidade que lhe era oferecida.

— Mas, senhor Euzébio. Creio que o vou cansar com tanta amolação. O meu serviço é um pouco demorado...

— Que nada, seu doutor! A casa de caboclo pobre é rica de bondade. Tudo aqui é seu. Faz de conta que o Dr. Ernesto é agora de minha familiagem. Depois... O que é mais uma concha de feijão na panela. Graças a Deus e a Nossa Senhora da Aparecida, as coisas vão melhorando...

— Fico-lhe muito grato, senhor Euzébio. Quando houver oportunidade, retribuirei seus favores.

— Nem é preciso, doutor. Nem é preciso.

O doutor não pôde ficar indiferente aos encantos caboclos de Maria Rosa. A sertanejinha, no atravessar dos seus dezoito anos banais, estava no auge da floração do sexo.

Beleza espontânea, beleza sem artifícios, beleza que surgira e se aprimorara aos raios de todos os sóis, à umidade de todas as chuvas, ao contato de todo o oxigênio puro do sertão, ao descanso de todas as noites longas e calmas, ao gozo de uma vida sem maiores sensações do que pular da cama às cinco, receber no dorso macio as águas da cachoeirinha, trabalhar numa coisa e noutra, esperar o sábado e a vinda do Lauzinho; beleza amiga da natureza e cheia de castidade, Maria Rosa não tinha conhecimentos das armas irresistíveis que possuía para incendiar o coração dos homens e prendê-los nas malhas das paixões perdidas. Por isso, não levava a mal os olhares do engenheiro quando, de manhãzinha, lhe servia o café. Por isso, não via nas gentilezas extremadas mais do que uma gratidão ao bom acolhimento do pai. 

Insone no leito fofo, o Dr. Ernesto revolvia-se, nervoso:

— Diabo de garota dinamite. E vá um pobre diabo ficar à vontade perto de um abismo destes.

No entanto, era preciso respeitar a casa do velho mineiro. Era preciso.

Certa vez — a vida gosta mesmo de jejuar com a gente, — certa vez, o engenheiro se viu a sós com Maria Rosa. O fogo do sol que lhe escaldara o sangue durante o dia, no meio do mato, deixara fagulhas nas veias. E disse da paixão que lhe andava no peito. E disse das seduções daquelas carnes magníficas. E disse da quebradeira que punha n’alma aquele olhar indefinível...

Maria Rosa, vermelhinha, vermelhinha, libertou as mãos e saiu correndo para o quarto, com o coração aos pulos. Viu-se em frente ao espelho de moldura feia que havia perto da cama da mãe. E só então começou a notar as linhas de seu corpo. E só então o sexo lhe bradou barbaramente do fundo das entranhas.

Quando Lauzinho apeou do cavalo, deu logo de frente com aquele rapaz de terno de casimira, bonito e passadinho, mal pôde disfarçar o enfado. Tinha um rancor invencível aos moços da cidade. Ainda mais no casarão branco do Seu Euzébio das Neves. Durante o domingo, causaram-lhe um aborrecimento imenso as maneiras gentis do doutor. E, pela primeira vez, voltou profundamente triste, montado no zaino do compadre Cornélio, e dentro da noite linda que as estrelas tornavam admirável com seu piscar malicioso.

No sábado seguinte, Lauzinho empurrou a porteira preguiçosa lá pelas quatro horas, quando o sol ainda estava impiedoso. Desencilhou o zaino, passou as costas da mão pela testa salpicada de suor, e ficou esperando a Maria Rosa, que ainda estava no córrego.

Quando chegou, ela lhe deu um cumprimento muito diverso do que ele estava acostumado a receber. A moçoila pareceu-lhe diferente, sem aquele olhar que demonstrava um amor muito sincero, muito do fundo do coração.

— Uai! Maria Rosa. Você parece que não ‘tava com saudade da gente...’

— Saudade? Como não? É que nem todo o dia tem pão quente. Não é toda a vez que eu posso estar aí, mostrando os dentes procê...

O engenheiro vinha chegando. Maria Rosa correu para dentro. E voltou depois com um vestido bonito, com o cabelo muito penteadinho, e até (pareceu a Lauzinho), e até de pintura no rosto.
O domingo foi insuportável. O moço sertanejo tinha ímpetos de esganar o tal Doutor Ernesto. Pois ele é que viera deixar indiferente a Maria Rosa, a deusinha de seus sonhos rústicos.

Ferido em seus brios, Lauzinho amarfanhou no coração o desejo de ser feliz um dia. E a sua despedida foi a coisa mais seca deste mundo. Tanto que saiu mais cedo do que de costume.

Quando a porteira gemeu preguiçosamente para deixar passar, pela última vez, um cavalo e um cavaleiro (o cavalo era o zaino do compadre Cornélio e o cavaleiro era o filho do mesmo compadre Cornélio) — o sol só mostrava um pedaço da rodela vermelha. E as primeiras sombras da noite iam avançando já, longas e invencíveis, a leste do Pico Agudo, como que amortalhando o desencanto que punha luto no coração do Lauzinho.

E o cavalo e o cavaleiro enveredaram pela estrada deserta, que leva pras bandas do Laranjinha, enquanto, lá no céu, as estrelas punham malícia no jeito de piscar...

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.