domingo, 28 de julho de 2024

Eduardo Martínez (Os rabiscos da Ana Lúcia)

Ana Lúcia adorava fazer desenhos nos cantos dos cadernos. Sua mãe, no entanto, sempre que pegava a menina entretida com aquilo, não perdia a oportunidade de repreendê-la.

— Ana Lúcia, pare de rabiscar!

Teimosa que era, a garota, lápis na mão, parecia decidida a criar figuras diversas sobre o papel. Os amigos ficavam maravilhados, e a professora de artes, do alto de tanto conhecimento, afirmava que a aluna possuía talento incomum. Ana Lúcia sonhava acordada com o dia que seus desenhos seriam expostos em uma galeria, talvez até mesmo no Louvre, em Paris. 

O tempo passou, Ana Lúcia desenvolveu um estilo próprio. Tanto é que, não raro, alguém a convidava para ilustrar algum livro. Chegou a emoldurar alguns desenhos, que eram vendidos a preços módicos na feira do bairro, mas que a enchiam de esperanças de sobreviver da sua arte. 

Perto de completar 25 anos, a mulher conheceu João, um dos compradores dos seus quadros. O primeiro contato, apesar de agradável, não parecia nada mais do que a relação entre vendedora e cliente. Todavia, encantado com os traços produzidos por Ana Lúcia, o rapaz retornou à feira nas semanas seguintes, onde sempre comprava uma ou duas obras. 

Aconteceu no final de setembro, quando a primavera atiça os corações solitários. João, mesmo que tímido, convidou a artista para um café. Do café, foram ao cinema. Dali, foi um pulo até a cama, onde descobriram que não conseguiriam mais viver separados.

Juntaram os panos e, dois anos após, veio a pequena Lisa e, no ano seguinte, nasceram os gêmeos Francisco e José. Sem hora para desenhar, Ana Lúcia viu seus sonhos se perderem entre as pilhas de roupas e as fraldas para trocar. José, que precisou arrumar outro emprego, ainda lavava a louça, mas se sentia culpado por não poder ajudar mais a esposa. Faltavam-lhe forças.

As décadas seguintes voaram sem que Ana Lúcia tivesse tempo de perceber as rugas que se apossaram do seu rosto. Ela estava sentada no sofá, quando o marido chegou. Ele trazia um embrulho e, antes de entregá-lo à esposa, a beijou docemente nos lábios.

Que nem menina, a velha abriu o presente e se deparou com um bloco de folhas e um conjunto de lápis. Seus olhos cansados sorriram ao olhar o passado de maneira mais generosa. Tanto é que, pelos dias seguintes, Ana Lúcia voltou a desenhar compulsivamente. 

É verdade que, de vez em quando, imaginava sua saudosa mãe dizendo para ela parar de rabiscar. Seja como for, a desenhista já agendou uma exposição de seus quadros na garagem de sua casa. Parentes e amigos estão ansiosos para tal evento. 

Pois é, parece que os sonhos não têm data de validade.

Fonte: Blog do Menino Dudu. 27.02.2024

Francisca Júlia (Rei Fantasma)

(Balada alemã)

Quem é que cavalga a esta hora na escuridão da noite, sob a chuva que cai e o vento que uiva? As árvores agitam a folhagem desordenada, arrepiadas do terror da noite.

O velho passa apressadamente, apertando nos braços o filhinho amado, fazendo-lhe com o rosto e com as mãos um carinhoso abrigo.

— Oculta-me o rosto, pai.

— Para que queres que te oculte o rosto, filho?

— Não vês o rei envolvido em seu manto de púrpura, brandindo o cetro como um louco?

— Não tenhas medo, filho, é uma nuvem e mais nada. É uma nuvem que estremeceu diante da fúria do vento e se desfez em água.

"Linda criança, vem comigo! vamos gozar as riquezas do meu reino, embriagar a vista no esplendor do meu ouro, correr os meus campos onde há flores perfumadas e árvores vergando ao peso dos frutos".

— Pai, pai! Não ouves o que o rei me promete em voz baixa?

— Não é nada, meu filho, é o vento brando que murmura nas ramas e que resvala nas folhas, e mais nada. Filho, não tenhas medo.

"Criança linda, queres vir comigo? As minhas filhas são claras como a neve e têm cabelos louros como o sol, elas te conduzirão à dança noturna em companhia das fadas do bosque, elas te ensinarão brinquedos nunca vistos e te farão passear numa barquinha azul sobre as águas do lago. E tu hás de adormecer ao seu canto e sonhar sob seus afagos".

— Pai, pai! Não vês as filhas do rei dançando lá em baixo na planície, vestidas de branco, com os rostos escondidos nos cabelos?

— Meu filho, meu filho, eu vejo bem: são os salgueiros distantes, embranquecidos de neve, que o vento agita e balança, e mais nada.

"Amo-te, bela criança. Gosto do teu rosto pálido, dos teus olhos azuis como o céu e dos teus cabelos negros como a noite. Vem! Quero levar-te comigo para deslumbrar-te nas riquezas do meu reino. Se tentares resistir, arranco-te dos braços do teu pai".

— Pai, pai! O rei me leva, o rei me arranca, o rei me mata. Livra-me, pai! Ele é tão mau, ele é tão grande, ele é tão feio!

O pobre pai treme; fustiga o cavalo; atravessa a escuridão da noite sob a chuva que cai e o vento que uiva, aperta tanto o filho contra o peito que o sufoca.. Muito tempo depois, quando entrou em casa, tinha nos braços a criança morta.

Fonte> Francisca Júlia. Livro da infância. 1899. Disponível em Domínio Público

Recordando Velhas Canções (A camisola do dia)


Compositores: Herivelto Martins e David Nasser

Amor, eu me lembro ainda
Que era linda, muito linda
Um céu azul de organdi
A camisola do dia
Tão transparente e macia
Que eu dei de presente a ti
Tinha rendas de Sevilha
A pequena maravilha
Que o teu corpinho abrigava
E eu, eu era o dono de tudo
Do divino conteúdo
Que a camisola ocultava
A camisola que um dia
Guardou a minha alegria
Desbotou, perdeu a cor
Abandonada no leito
Que nunca mais foi desfeito
Pelas vigílias de amor
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 
A Camisola do Dia: Memórias de um Amor Passado
A música 'A Camisola do Dia', de Chico Buarque, é uma delicada e nostálgica reflexão sobre um amor passado. A letra descreve com detalhes a lembrança de uma camisola que simboliza um momento de felicidade e intimidade entre o eu-lírico e sua amada. A camisola, feita de um tecido fino e adornada com rendas de Sevilha, é uma metáfora para a beleza e a fragilidade do relacionamento que um dia foi pleno de alegria e amor.

Chico Buarque utiliza a camisola como um símbolo poderoso para evocar memórias de um tempo em que ele se sentia dono de um 'divino conteúdo', referindo-se ao corpo e à alma de sua amada. A descrição minuciosa da peça de roupa e a sensação de posse e admiração que ela traz ao eu-lírico revelam a profundidade do sentimento que ele nutria. A camisola, portanto, não é apenas um objeto, mas um receptáculo de emoções e lembranças que marcaram profundamente o eu-lírico.

No entanto, a música também aborda a passagem do tempo e a inevitável transformação das coisas. A camisola, que um dia foi símbolo de alegria, agora está desbotada e abandonada, representando a perda e o fim do relacionamento. O leito que nunca mais foi desfeito pelas 'vigílias de amor' sugere a ausência de momentos íntimos e a solidão que se seguiu ao término do romance. Assim, 'A Camisola do Dia' é uma canção que fala sobre a beleza efêmera do amor e a melancolia das lembranças que ele deixa para trás. https://www.letras.mus.br/chico-buarque/1339771/ 

sábado, 27 de julho de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 51

 

Mensagem na Garrafa = 129 =


SILVANA DUBOC

Trem da vida

Há algum tempo atrás, li um livro que comparava a vida a uma viagem de trem. Uma leitura extremamente interessante, quando bem interpretada.

Isso mesmo, a vida não passa de uma viagem de trem, cheia de embarques e desembarques, alguns acidentes, surpresas agradáveis em alguns embarques e grandes tristezas em outros.

Quando nascemos, entramos nesse trem e nos deparamos com algumas pessoas que julgamos, estarão sempre nessa viagem conosco: nossos pais. Infelizmente, isso não é verdade; em alguma estação eles descerão e nos deixarão órfãos de seu carinho, amizade e companhia insubstituível... mas isso não impede que, durante a viagem, pessoas interessantes e que virão a ser super especiais para nós, embarquem.

Chegam nossos irmãos, amigos e amores maravilhosos.

Muitas pessoas tomam esse trem apenas a passeio. Outros encontrarão nessa viagem somente tristezas. Ainda outros circularão pelo trem, prontos a ajudar a quem precisa. Muitos descem e deixam saudades eternas, outros tantos passam por ele de uma forma que, quando desocupam seu acento, ninguém nem sequer percebe.

Curioso é constatar que alguns passageiros que nos são tão caros, acomodam-se em vagões diferentes dos nossos; portanto, somos obrigados a fazer esse trajeto separados deles, o que não impede, é claro, que durante o trajeto, atravessemos com grande dificuldade nosso vagão e cheguemos até eles... só que, infelizmente, jamais poderemos sentar ao seu lado, pois já terá alguém ocupando aquele lugar.

Não importa, é assim a viagem, cheia de atropelos, sonhos, fantasias, esperas, despedidas... porém, jamais, retornos. Façamos essa viagem, então, da melhor maneira possível, tentando nos relacionar bem com todos os passageiros, procurando, em cada um deles, o que tiverem de melhor, lembrando, sempre, que, em algum momento do trajeto, eles poderão fraquejar e, provavelmente, precisaremos entender porque nós também fraquejaremos muitas vezes e, com certeza, haverá alguém que nos entenderá.

O grande mistério, afinal, é que jamais saberemos em qual parada desceremos, muito menos nossos companheiros, nem mesmo aquele que está sentado ao nosso lado.

Eu fico pensando se quando descer desse trem sentirei saudades ... acredito que sim. Me separar de alguns amigos que fiz nele será, no mínimo dolorido. Deixar meus filhos continuarem a viagem sozinhos, com certeza será muito triste, mas me agarro na esperança que, em algum momento, estarei na estação principal e terei a grande emoção de vê-los chegar com uma bagagem que não tinham quando embarcaram... e o que vai me deixar feliz, será pensar que eu colaborei para que ela tenha crescido e se tornado valiosa.

Amigos, façamos com que a nossa estada, nesse trem, seja tranquila, que tenha valido a pena e que, quando chegar a hora de desembarcarmos, o nosso lugar vazio traga saudades e boas recordações para aqueles que prosseguirem a viagem.

Laé de Souza (Férias)

Finalmente chegaram e, como sempre, ficaram umas coisas para a última hora. Do carro  calibrou pneus, abasteceu, deu aquela caprichada no som, arrumou umas fitas novas do Zezé di Camargo & Luciano e, para não ser chamado mais uma vez de machista, uma antiga do Roberto para sua mulher. Só não deu para trocar as pastilhas, mas também em estrada quase não se usa freio, matutava. Das coisas de uso coletivo e individuais, a mulher se encarregara e com certeza, como de hábito, ficariam algumas no esquecimento.

Já tinha falado; "Vamos sair na madrugada e não quero atraso." Dito e feito. Lá pelas dez horas, já estavam descarregando as coisas na casa alugada na Praia Grande. A caixa de isopor com cerveja, o litro de 51 e o limão ficaram no carro, já de frente para a rua. Antes das onze, o Arisco (nome dado carinhosamente ao Gol) estava estacionado na areia, com porta-malas aberto para expandir mais o som. No abrir das portas, o guri de cinco anos correu para o mar sem dar a mínima para os gritos de pavor e raiva da mãe. Garibaldini, normalmente nervoso, e ainda mais com umas na cabeça, arrastou o moleque da água até a mãe pela orelha, fora os cocorotes na cabeça jogando-o aos pés dela e dizendo a ela que aprendesse a agir e ensinar com mais rigor em lugar de ficar aos gritos sem resultado prático. 

Um gorducho, sentado na areia, que estava se sentindo incomodado com aquele barulhão da música e agora com o choro do garoto, olhou feio. Um outro com dedo em riste, falou-lhe sobre o direito e estatuto da criança, ameaçando encanar o Garibaldini por infringir o artigo 5° da Lei 8.069/90. Coisa que logo passou, pois o fulano percebeu em pouco tempo que o moleque não era brincadeira e aprontava uma atrás da outra. Como ele mesmo disse tomando um gole da caipirinha: "É, seu Garibaldini, esse pra educar, vai ter que ser nos trancos mesmo." Sob reprovação no olhar da Dona Tidinha que se ensaboava com o bronzeador. 

Com o sol já se pondo, Garibaldini reclamava que a mulher quase não tinha ido na água e estava toda vermelha. Com certeza não ia aguentar até o fim das férias. E se era só para tomar sol, que ficassem na represa. 

Tidinha que sempre ficava na dela, mas tinha tomado uns goles de batida de abacaxi, respondeu que nem se compara o sol de água salgada com o de doce. E tinha outra: que ele maneirasse nas olhadelas para uma fulana deitada numa esteira em frente, senão ela ia aprontar uma boa, ainda mais altinha como estava.

Ao cabo de dez dias de praia, chegaram de viagem tarde da noite. No dia seguinte, no banco, Garibaldini, não bastasse o ardor das queimaduras, abria a boca de sono e preguiça e pensava; que férias são estas, que cansam mais e ainda deixam preocupações em cobrir cartão de crédito e estouro de conta. E reclamava para o colega ao lado: "Vida de bancário não está fácil não."

Fonte: Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.

Fabiane Braga Lima (Ela se reconstruiu)

Todos os dias ela sonhava com ele. Ela tímida, nunca disse os seus verdadeiros sentimentos. Nem precisava ser perceptível o quanto ela queria. E a saudade era grande, mas fez com que ela caminhasse e pudesse se enxergar. Aliás viver de fantasia era exaustivo e inexato.

O tempo passou rápido e a saudade foi aumentando, também ela nunca se abriu com ele, seria tempo perdido. Certo dia, ela se olhou no espelho, olhou para dentro do seu interior e por fora, estava pálida. E por dentro indecifrável, não havia palavras para definir. Tudo que viveu, era um verdadeiro delírio. 

Bom! Acho que ela nunca quis a suposta paixão, queria mostrar somente a sua arte. Viver de arte. Mas com tanta mentira em sua volta, não havia outra esperança. Então, ela acordou para vida, com objetivos novos, e o mais resoluto de todos foi enxergar a mentira, na qual vivia.

Ninguém que seja lúcido engana- se por tanto tempo! E, o próprio tempo nos mostra. Não a conheci, mas admiro sua coragem de enfrentar seus demônios....! Enfim, viva a arte. A arte!

Fonte: Texto enviado por Samuel da Costa.

Recordando Velhas Canções (Retrato em branco e preto)


Compositores: Chico Buarque e Tom Jobim

Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar tanto pior
E o que é que eu posso contra o encanto
Desse amor que eu nego tanto
Evito tanto e que, no entanto
Volta sempre a enfeitiçar
Com seus mesmos tristes, velhos fatos
Que num álbum de retratos
Eu teimo em colecionar

Lá vou eu de novo como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado e você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Melancolia do Amor em 'Retrato Em Branco e Preto'
A música 'Retrato Em Branco e Preto', composta por Tom Jobim, é uma expressão lírica da melancolia e da resignação diante de um amor que persiste apesar da dor e da consciência de sua natureza infrutífera. A letra revela um eu-lírico que conhece bem o caminho do amor, suas dificuldades e armadilhas, mas que, mesmo assim, se vê incapaz de resistir ao encanto que esse amor exerce sobre ele.

A repetição dos 'passos dessa estrada' e o conhecimento dos 'segredos' e das 'pedras do caminho' sugerem uma relação amorosa que se repete em ciclos, onde o sofrimento é uma constante. A imagem do álbum de retratos serve como metáfora para as memórias que o eu-lírico insiste em guardar, mesmo sabendo que elas apenas reforçam a dor de um amor que parece condenado. A referência ao 'retrato em branco e preto' evoca uma sensação de algo antigo, imutável e desprovido de vida ou cor, simbolizando a estagnação emocional do protagonista.

A música também aborda a dificuldade de se libertar de um amor que já causou sofrimento, mas que ainda assim é objeto de desejo e inspiração para a poesia. O 'soneto' e o 'retrato em branco e preto' que o eu-lírico decide colecionar são representações desse amor que, apesar de tudo, continua a 'maltratar' seu coração. A canção é um retrato da complexidade dos sentimentos humanos, onde amor e dor coexistem e se entrelaçam de maneira inextricável.

Segundo sua irmã Helena, Tom Jobim compôs o tema “Zíngaro”, inspirado em um violinista cigano, que “na verdade era ele próprio, radicado naquele estranho mundo (os Estados Unidos) e sentindo saudade de seu país”.

Em 1965, a composição foi incluída no elepê A certain Mr. Jobim, gravado numa igreja transformada em estúdio, em Manhattan com a participação de um de seus arranjadores favoritos, o alemão Claus Ogerman.

O título “Retrato em Branco e Preto” surgiu depois, com a letra dramática de Chico Buarque, que trata de um amor desesperado (“Lá vou eu de novo como um tolo / procurar o desconsolo / que cansei de conhecer / novos dias tristes / noites claras / versos, cartas, minha cara / ainda volto a lhe escrever”).

Mais uma vez, Tom Jobim oferece uma lição de economia e inteligência. Os três primeiros compassos, criados sobre uma melodia de quatro notas vizinhas ré, dó sustenido, mi e dó natural — são idênticos, mas, com harmonizações diferentes. O intervalo inicial da canção, uma segunda menor, vai sendo ampliado e explorado de várias maneiras à medida que a melodia avança, aumentando a tensão, a dramaticidade, o que é muito bem aproveitado no poema do Chico.

Ritmicamente dos dezesseis compassos de “Retrato em Branco e Preto”, treze são absolutamente iguais, formados por oito colcheias. Tais observações podem primeira vista, levar à conclusão de que a canção é repetitiva e até pobre quando na realidade é exatamente o oposto, um tratado sobre o que possível fazer com um intervalo de duas notas. Tom Jobim sabia como ninguém partir de uma célula simples e enriquece-la ao máximo.

Em 1968, “Retrato em Branco e Preto” seria gravado pelo próprio Tom com o Quarteto 004. Esta foi a primeira de uma série de interpretações emocionantes como as de Chico Buarque, Elis e Tom, João Gilberto (em três registros diferentes) e a do trompetista Chet Baker, que em gravação filmada para o documentário “Let’s Get Lost”, feita pouco antes de sua morte, realizou num improviso comovente um autêntico hino de amor a Jobim (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “20”

 

Mensagem na Garrafa = 128 =


APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Traumas 

AS INCISURAS invisíveis da alma –, ou aqueles talhos sangrentos que não dimensionamos à olhos nus, são como terremotos internos que abalam as estruturas mais profundas do nosso ser. Elas não escolhem hora nem lugar, tampouco avisam que estão coladas em nossa pele. Sempre deixam cancelas profundas e marcantes que nem o tempo é capaz de apagar, pelo menos de uma maneira que acreditamos completa e sem melindres para reclames posteriores.                                                                               
 
Cada pessoa carrega dentro de si seus medos e aflições, assombros e espantos de maneira única, tipo assim, como se fosse uma ferida questionando a maneira de como vemos o mundo e interagimos com ele. São memórias dolorosas alojadas em cantos e desvãos esquecidos dentro da mente e, para o nosso desespero, emergem do corriqueiro nosso de cada dia, notadamente quando menos esperamos. 

As repugnâncias e as decepções, podem nascer de momentos de grandes dissabores, seja por perda ou por simples melancolia. Podem vir, em paralelo, tipo uma infância difícil, uma quadra de relações debilitadas sem motivos aparentes, ou seja, de palavras vazias que somente têm por objetivo ficarem mais profundamente visíveis que qualquer outro corte físico. Elas nos ensinam, apesar dos pesares, a sermos moderados, cautelosos e prudentes. 

Nós, brasileiros, de um modo geral, não somos, nem levamos a coisa à sério. Vivemos dispersos, voando em sonhos sem futuro lógico. Se estivéssemos ligados e atentos, unidos e agregados em um objetivo (vinte e quatro horas por dia), construiríamos muros altos ao redor do nosso coração e de suas fragilidades. Desse modo, olharíamos com mais atenção e carinho para o horizonte e, sobretudo, encararíamos o futuro com uma forte dose de esperança. Existe, por conta de tal imprevisto, pequenos outros entraves. Quais seriam?! As escoriações e os traumas. Referidas figuras também podem ser empecilhos, e sempre afloram com algo embutido no mesmo pacote. 

Outras situações rigorosas surgem a todo instante, nos ensinando lições valiosas sobre superação. Aprendemos a nos levantar após cada queda, a curar e tratar as feridas com compaixão e a transformar a dor em força.  A jornada de cura dos traumas é pessoal e muitas vezes solitária. Requer coragem para enfrentar de peito aberto e cabeça erguida, os fantasmas do passado. Atrelado a esses espectros, feito unha e carne, devemos alimentar a vontade férrea de buscar ajuda urgente quando ela se fizer necessária. 

Nessas horas, uma terapia ou o apoio de amigos e familiares são fundamentais no decorrer desse processo. É importante lembrarmos que, embora os percalços façam parte ativa do que somos, eles não nos definem. Tais imposições, nos ensinam apenas que somos muito mais poderosos que as nossas experiências, notadamente as doridas e amargas. Com o tempo, cultivando a paciência e o trabalho, poderemos aprender a conviver com os nossos piores pesadelos, sem permitirmos que eles destruam as nossas vidas ou a de nossas famílias. 

No final, os traumas, ou as crises, são apenas partes indistintas da complexa tapeçaria que nada mais é que a experiência humana disfarçada em outra roupagem. Eles, os traumas, nos ensinam, mais, ou melhor, nos mostram, nos orientam e nos falam abertamente sobre a vulnerabilidade e a força. Do mesmo modo, nos capacitam sobre a teoria do “se quebrar e se reconstruir.” Talvez, paralelamente, nos tornem mais empáticos e compreensíveis com as lutas e pelejas dos outros, todos, obviamente sem distinção de raça ou credo. 

O fato é que, de repente, sem que esperemos por algum resultado benéfico, poderemos ter diante de nosso cotidiano, as nossas batalhas internas, e, de roldão, as guerras particulares refreadas, saradas e apaziguadas, ou mesmo resultado, qualquer outro traumatismo que nos tente levar para o buraco da perdição, ainda que infâmias que no dia a dia, minuto a minuto pelejam arduamente para nos tirar o foco, ou a paz e o sossego da verdadeira jornada que intencionamos seguir trilhando... se faz mister termos os olhos abertos. A mente em alerta, o corpo todo em estado de vigilância total. Dessa forma, simples e corriqueira, conseguiremos a condução da tão sonhada, desejada e querida FELICIDADE.

(Texto enviado pelo autor)

Luís da Câmara Cascudo (O bem se paga com o bem)

A onça caiu numa armadilha preparada pelos caçadores e, por mais que tentasse escapar, ficou prisioneira. Resignara-se a morrer, quando viu passar um homem. Chamou-o e lhe pediu que a libertasse.

— Deus me livre! — disse o transeunte. – Se você ficar solta, devorar-me-á.

A onça jurou que seria eternamente agradecida, então o homem desatou as cordas que seguravam a tampa do alçapão e ajudou a onça a deixar a cova. Logo que esta se encontrou livre, agarrou seu salvador por um braço, dizendo:

— Agora você é o meu jantar.

Debalde o homem pediu e rogou. A onça, finalmente decidiu:

— Vamos combinar uma coisa. Ouvirei a sentença de três animais. Se a maioria for favorável ao meu desejo, comê-lo-ei.

O homem aceitou e saíram os dois. Encontraram um cavalo, velho, doente, abandonado. A onça narrou o caso. O cavalo disse:

— Quando eu era moço e forte trabalhei e ajudei o homem a enriquecer. Qual foi o meu pagamento? Largaram-me aqui para morrer, sem um auxílio. O bem só se paga com o mal.

Adiante depararam com um boi. Consultado, opinou pela razão da onça. Contou sua vida de serviços ao homem e, quando julgava que ia ser recompensado, soube que fora vendido para ser morto e retalhado pelo açougueiro. O bem só se paga com o mal.

O homem, triste, acompanhava a onça que lambia o beiço, quando viram um macaco. Chamaram o macaco e pediram o seu parecer. O macaco começou a rir. A onça ia-se zangando:

— Por que tanta risada, camarada macaco?

— Não é fazendo pouco, — explicou o macaco — é que eu não acredito que o homem caísse na armadilha que ele mesmo preparou.

— Ela não caiu. Quem caiu foi eu. — contava a onça.

— Foi você? Então como é que esse homem fraquinho pôde libertar um bicho tão grande e forte como a camarada onça?

A onça, despeitada pelo macaco julgá-la mentirosa, foi até o alçapão e saltou para o fundo do fosso, gritando lá de baixo:

— Está vendo? Foi assim!

Mais que depressa o macaco empurrou o engradado de varas pesadas que fazia de tampa e a onça tornou a ficar prisioneira.

— Camarada onça! - sentenciou o macaco — O bem só paga com o bem. E como você fez o mal, receba o mal.

E se foi embora com o homem, deixando a onça para morrer de fome na armadilha.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público. in Jangada Brasil, Abril 2011 - Ano XIII - nº 146 . acesso em 20 de dezembro de 2012. 

Recordando Velhas Canções (Mestre Sala dos Mares)


Compositores: João Bosco e Aldir Blanc

Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu

Conhecido como o Navegante Negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar
Na alegria das regatas

Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas
Jovens polacas
E por batalhões de mulatas

Rubras cascatas jorravam das costas dos santos
Entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro gritava então

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história

Não esquecemos jamais
Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

Mas salve
Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

Mas faz muito tempo
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Navegação pela História: A Ode a João Cândido em 'Mestre Sala dos Mares'
A música 'Mestre Sala dos Mares', composta por João Bosco e Aldir Blanc, é uma homenagem a João Cândido, figura histórica brasileira conhecida como 'O Almirante Negro'. A letra faz referência à Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, quando marinheiros se rebelaram contra os castigos físicos, então comuns na Marinha Brasileira. João Cândido liderou essa revolta, lutando pela dignidade e contra as condições desumanas a que eram submetidos os marinheiros, em sua maioria negros e pobres.

A canção utiliza metáforas náuticas e imagens festivas para descrever a figura de Cândido, comparando-o a um 'mestre-sala', personagem tradicional do carnaval brasileiro, que com sua elegância e liderança, guia a escola de samba. A menção às 'regatas' e ao aceno pelo mar simboliza a liderança e o respeito que Cândido conquistou. As 'rubras cascatas' podem ser vistas como uma representação do sangue derramado pelos revoltosos e a resistência dos oprimidos, que mesmo em condições adversas, encontravam motivos para celebrar a vida e a liberdade.

A música também faz uma crítica social ao mencionar que o 'Navegante Negro' tem como monumento apenas 'as pedras pisadas do cais', uma referência à falta de reconhecimento e valorização dos heróis populares na história oficial. A repetição do verso 'Mas faz muito tempo' no final da música sugere que, apesar dos anos, as lutas e injustiças sociais continuam presentes e não devem ser esquecidas.  https://www.letras.mus.br/joao-bosco/663976/

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 52: Infinitude

 

Mensagem na Garrafa = 127 =


por SILVANA DUBOC

Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário.

Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas.

Se achar que precisa voltar, volte!

Se perceber que precisa seguir, siga!

Se estiver tudo errado, comece novamente.

Se estiver tudo certo, continue.

Se sentir saudades, mate-a.

Se perder um amor, não se perca!

Se o achar, segure-o!

O. Henry (Noite Árabe em Madison Square)

 A Carson Chalmers, no seu apartamento perto da praça, Phillips trouxe o correio da tarde. Além da correspondência de rotina, havia dois envelopes tendo o mesmo carimbo postal estrangeiro. 

Em um dos envelopes recém-chegados continha uma fotografia de mulher. O outro, uma carta interminável, em cuja leitura Chalmers se absorveu muito tempo. A carta era de outra mulher, e encerrava farpas envenenadas, adoçadas com mel e emplumadas com insinuações referentes à mulher fotografada.

Chalmers rasgou a carta numa centena de pedacinhos e pôs-se a gastar o seu caro tapete andando de cá para lá sobre ele. Assim age um animal selvagem quando é enjaulado, e assim age um homem enjaulado quando se vê perdido numa selva de dúvidas.

Aos poucos, a inquietação se acalmou. O tapete não era mágico. Podia viajar sobre ele dezesseis pés; três mil milhas estavam além do seu poder.

Phillips surgiu. Nunca entrava; surgia invariavelmente, como um gênio bem azeitado.

– Vai jantar aqui ou fora, senhor? — perguntou.

– Aqui — disse Chalmers — e dentro de meia hora.

Prestou ouvidos, sombriamente, às rajadas de janeiro, que faziam da rua deserta um trombone eólio.

– Espere — disse ao gênio em vias de desaparecer. — Quando vinha para casa, vi no fim da praça, uma porção de homens formando fila. Havia um trepado sobre não sei que, falando. Por que esses homens fazem fila, e por que estão ali?

– São gente sem teto, senhor — respondeu Phillips. — O homem sobre o caixote procura arranjar alojamento para eles passarem a noite. As pessoas vêm ouvi-lo e dão-lhe dinheiro. Então, ele encaminha a alguma casa e cômodos tantos homens quantos o dinheiro possa pagar. Por isso fazem fila; são encaminhados para os alojamentos na ordem em que chegam.

– À hora em que o jantar for servido — disse Chalmers —, traga um desses homens aqui. Jantará comigo.

– Q-q-qual ? - perguntou Phillips, gaguejando pela primeira vez em todo o seu tempo de serviço.

– Escolha a esmo — disse Chalmers. — Veja que esteja razoavelmente sóbrio… e uma certa dose de limpeza não será de desprezar. É tudo.

Era coisa inusitada Carson Chalmers bancar o califa. Mas naquela noite sentia a ineficácia dos antídotos convencionais para a melancolia. A fim de melhorar o humor, carecia de algo caprichoso e chocante, algo de caráter extravagante e arábico.

Em meia hora, Phillips cumpriu os seus deveres de escravo da lâmpada. Os garçons do restaurante embaixo haviam trazido o deleitoso jantar. A mesa, posta para dois, fulgurava festivamente à luz dos círios com pantalhas rosas.

E então Phillips, como se introduzisse um cardeal - ou mantivesse sob custódia um assaltante -, impeliu suavemente para dentro da sala o tiritante conviva, que fora arrancado à fila de hóspedes mendicantes.

É coisa comum chamar-se naufrágios a tais homens;  se a expressão for aqui usada, sê-lo-á no caso específico de um barco desgraçado pelo fogo. Alguma combustão bruxuleante iluminava ainda o casco à deriva. Sua face e suas mãos haviam sido recentemente lavadas — rito no qual Phillips insistira como homenagem póstuma às convenções trucidadas. A luz das velas iluminava o recém-vindo, verdadeira aberração no decoroso ambiente. Sua face era de um branco doentio, coberta até quase os olhos por um restolho que tinha o tom do pelame avermelhado de um setter irlandês. O pente de Phillips não alcançara dominar o cabelo castanho claro, todo emaranhado, que se havia conformado ao contorno de um chapéu usado permanentemente. Seus olhos estavam cheios de desesperançado e ardiloso desafio, como o que se vê nos olhos de um animal acossado pelos seus algozes. O casaco surrado estava abotoado até em cima, mas um quarto de polegada de colarinho redentor se mostrava acima dele. Suas maneiras demostraram ser singularmente isentas de embaraço quando Chalmers se ergueu de sua cadeira do outro lado da mesa circular.

- Se me conceder a honra — disse o anfitrião — ficarei encantado com a sua companhia ao jantar.

— Meu nome é Plumer — disse o conviva estradeiro, em tom áspero e agressivo — Se você for como eu, gostará de saber o nome da pessoa com quem vai jantar.

— Eu estava a pique de dizer — continuou Chalmers, algo apressadamente — que o meu é Chalmers. Quer sentar-se ali?

Plumer, o das plumas amarrotadas, dobrou os joelhos a fim de que Phillips empurrasse a cadeira para ele sentar-se. Tinha aparência de quem frequentara antes mesas servidas por garçons. Phillips apresentou-lhe as anchovas e as azeitonas.

— Bom! — latiu Plumer —, vai ser servido à francesa, pois não? Está bem, meu jovial soberano de Bagdá. Serei sua Xerazade até o fim, até os palitos. Você é o primeiro Califa de sainete genuinamente oriental que encontro em pleno inverno. Que sorte! E eu era o quadragésimo terceiro da fila. Acabara de contar quando o seu bem-vindo emissário veio convidar-me para o festim. Eu tinha tanta possibilidade de arranjar uma cama hoje à noite quanto teria de ser o próximo Presidente. Gostaria de ouvir a triste história da minha vida, Mr. Al-Rachide? Prefere um capítulo a cada prato, ou a edição integral com os charutos e o café?

— A situação não parece ser inédita para você — disse Chalmers com um sorriso.

— Pelo cavanhaque do profeta, não! — respondeu o conviva. — Nova Iorque está tão cheia de Haruns Al-Rachides de fancaria com Bagdá de pulgas. Por causa da minha história, já me vi detido, com um lauto jantar suspenso sobre a cabeça, mais de vinte vezes. Veja se é capaz de descobrir em Nova Iorque alguém que lhe dê algo por nada. Escrevem curiosidade e caridade com o mesmo jogo de letras de armar. A maioria lhe pagará um chop-suey; uns poucos bancarão os califas na base do filé mignon, mas uns e outros não o deixarão em paz enquanto não lhe arrancarem a autobiografia completa, com notas, apêndices e fragmentos inéditos. Oh, já sei o que fazer quando vejo vitualhas à minha frente na velha e querida Bagdá-Sobre-o-Metropolitano. Toco o asfalto três vezes com a fronte e preparo-me para contar patranhas em troca da janta. Declaro-me descendente do falecido Tommy Tucker, que era forçado a propiciar harmonia vocal em troca da sua pré-digerida sopa de trigo com spoopju.

— Não lhe peço que conte a sua história — disse Chalmers — Digo-lhe, com franqueza, que foi um capricho repentino que me fez mandar vir um estranho para jantar comigo. Asseguro-lhe que nada tem a recear da minha curiosidade.

— Ora, que bobagem! — exclamou o conviva, atacando entusiasticamente a sopa — Não me importo nem um pouco. Sou uma revista oriental bastante razoável, com capa vermelha e folhas cortadas quando o Califa viaja. Na verdade, nós, gente que não tem cama para dormir, cobramos uma espécie de tarifa sindical para coisas dessa espécie. Há sempre alguém querendo saber o que nos fez cair tão baixo na vida. Por um sanduíche e um copo de cerveja, digo-lhes que foi a bebida. Por um bife com couve e café, dou-lhes uma dose da história do impiedoso-senhorio-seis-meses-no-hospital-emprego-perdido. Um bom filé e uns cobres para a dormida merecem a tragédia de Wall Street da fortuna evaporada e da progressiva decadência. Este é o primeiro banquete de classe que me acontece. Não tenho pronta nenhuma história que lhe faça jus. Pois, Mr. Chalmers, já lhe digo o que vou fazer: vou contar-lhe, em troca, a verdade, se dispuser a escutá-la. Será mais difícil de acreditar do que as histórias inventadas.

Uma hora mais tarde o conviva árabe recostou-se na cadeira com um suspiro de satisfação, enquanto Phillips trazia o café e os charutos e tirava a mesa.

- Já ouvia falar alguma vez em Sherrard Plumer? — perguntou, com um sorriso estranho.

— Lembro-me do nome — disse Chalmers — Creio que era um pintor bastante proeminente há uns anos atrás.

— Cinco anos — respondeu o convidado. — Desde então, afundei como um pedaço de chumbo. Sou Sherrard Plumer. Vendi o último retrato que pintei por dois mil dólares. Depois disso, não arranjaria quem posasse nem para um quadro grátis.

— Que foi que aconteceu? — não pôde Chalmers deixar de perguntar.

— Engraçado — respondeu Plumer, sombriamente, — Nem eu mesmo entendi bem a coisa. Durante algum tempo, nadei como uma rolha. Meti-me na roda grã-fina e arranjei encomendas a torto e direito. Os jornais me chamavam o pintor da moda. Então começaram a acontecer coisas engraçadas. Sempre que eu terminava um quadro, vinham pessoas vê-lo e punham-se a cochichar e a entreolhar-se.

“Logo descobri qual era o transtorno. Eu tinha uma grande destreza para externar, no retrato, o caráter oculto da pessoa retratada. Não sei como o conseguia... pintava o que via... mas sei que me arruinou. Alguns dos meus modelos ficaram terrivelmente zangados e recusaram seus retratos. Pintei o retrato de uma senhora de sociedade, muito bela e muito popular. Quando estava pronto, o marido dela olhou-o com uma expressão peculiar no rosto, e na semana seguinte entrou com um pedido de divórcio.

“Lembro-me do caso de um conhecido banqueiro que posou para mim. Enquanto o retrato dele estava ainda em exibição no meu atelier, apareceu um conhecido seu para examiná-lo. 'Deus meu', disse, 'ele tem mesmo essa aparência?' Respondi que o retrato fora considerado extremamente fiel. 'Nunca reparara antes nessa expressão nos olhos dele', declarou o visitante. 'Acho que vou dar um pulo até a cidade e transferir o meu depósito bancário.' Foi até a cidade, mas o seu depósito bancário desaparecera, juntamente com o Senhor Banqueiro.

"Não demorou muito para me forçarem a abandonar o negócio. As pessoas não gostam de ver suas mesquinharias secretas mostradas num quadro. Podem sorrir, contorcer as feições, e enganá-lo, mas o retrato não pode. Não houve jeito de eu arranjar encomenda para nenhum outro quadro, e tive de desistir. Trabalhei durante algum tempo como desenhista de jornal , e depois para um litógrafo, mas o meu trabalho com ambos acabou resultando na mesma encrenca. Se eu desenhava sobre uma fotografia, meu desenho mostrava características e expressões que você não poderia encontrar na foto; acho, porém, que estavam no original, sem dúvida alguma. Os fregueses provocavam brigas incríveis, especialmente as mulheres, e nunca consegui manter-me muito tempo num emprego. Assim comecei a repousar a minha fatigada cabeça no seio da Boa Garrafa, em busca de consolo. E não tardou muito, estava eu na fila do leito grátis e praticando ficção oral, por esmolas, nos bazares alimentícios. Será que a expressão da verdade vos entedia, ó Califa? Posso mudar para o desastre de Wall Street, se preferir, mas isso requer uma bebedeira, e receio que não possa suportá-la depois deste excelente jantar.”

— Não, não — disse Chalmers, gravemente —, você me interessa muito. Todos os seus retratos revelavam algum traço desagradável, ou havia alguns que passavam indenes pela prova do seu singular pincel?

— Alguns? Sim — respondeu Plumer. — As crianças, geralmente, muitas mulheres, e um número razoável de homens. Nem todas as pessoas são más, sabe? Quando eram boas, os retratos saíam bons. Como já disse, não sei explicá-los, mas estou-lhe relatando fatos.

Sobre a escrivaninha de Chalmers jazia a foto que recebera naquele mesmo dia na mala estrangeira. Minutos mais tarde, pusera Plumer a trabalhar num esboço, a pastel, da fotografia. Ao cabo de uma hora, o artista ergueu-se e espreguiçou-se fatigadamente.

— Está pronto — bocejou. - Vai perdoar-me por ter demorado tanto. Interessei-me pelo trabalho. Deus, como estou cansado! Não arranjei cama na noite passada, sabe. Acho que vou dar-vos as boas noites agora, ó Comandante dos Fiéis!

Chalmers acompanhou-o até a porta e enfiou-lhe um punhado de notas na mão.

— Oh, aceito! — disse Plumer. — Isso está incluído na queda. Obrigado. Especialmente pelo esplêndido jantar. Vou dormir sobre penas, hoje à noite, e sonhar com Bagdá. Espero que tudo não se revele apenas um sonho, amanhã de manhã. Adeus, excelentíssimo Califa!

De novo pôs-se Chalmers a passear, inquieto, pelo tapete. Mas seu itinerário se afastava da mesa onde jazia o esboço a pastel tanto quanto o permitiam as dimensões do aposento. Duas, três vezes tentou aproximar-se da mesa, mas em vão. Podia enxergar o castanho, o dourado e o marrom das cores, mas havia em torno da mesa uma parede construída pelos seus temores, que o mantinha à distância. Sentou-se e procurou acalmar-se. Ergueu-se e tocou a sineta chamando Phillips.

— Há um jovem artista neste edifício — disse — um certo Mr. Reineman... sabe qual é o seu apartamento?

— Último andar, em frente, sir — respondeu Phillips.

— Vá até lá e peça-lhe por favor que venha até aqui por alguns minutos.

Reineman veio imediatamente. Chalmers apresentou-se.

— Mr. Reineman — disse —, há um pequeno quadro a pastel naquela mesa lá. Ficar-lhe-ia muito grato se pudesse dar-me a sua opinião quanto aos seus méritos artísticos como retrato.

O jovem artista adiantou-se até a mesa e apanhou a pintura. Chalmers voltou-lhe as costas, apoiando-se ao encosto de uma cadeira.

— Que... que acha dele? — perguntou, lentamente.

— Como desenho — respondeu o artista —, não tenho palavras para louvá-lo. É trabalho de um mestre, um mestre audacioso, fino e veraz. Intriga-me um pouco; faz anos que não vejo um pastel tão bom assim.

— O rosto, homem... o tema... o original... que diria dele?

— O rosto — disse Reineman — é a face de um dos mesmos anjos do Senhor. Posso perguntar-lhe quem...

- Minha mulher! — berrou Chalmers, voltando-se, correndo para o atônito artista, agarrando-lhe a mão e batendo-lhe nas costas. — Está viajando pela Europa. Leve esse esboço, rapaz, pinte o melhor quadro de sua vida, e deixe o preço comigo.

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (O menino da porteira)


Toda vez que eu viajava pela estrada de Ouro Fino
De longe eu avistava a figura de um menino
Que corria abrir a porteira e depois vinha me pedindo
Toque o berrante, seu moço, que é pra eu ficar ouvindo

Quando a boiada passava e a poeira ia baixando
Eu jogava uma moeda e ele saía pulando
Obrigado, boiadeiro, que Deus vá lhe acompanhando
Pra aquele sertão afora meu berrante ia tocando

No caminho desta vida muito espinho eu encontrei
Mas nenhum calou mais fundo do que isto que eu passei
Na minha viagem de volta qualquer coisa eu cismei
Vendo a porteira fechada, o menino não avistei

Apeei do meu cavalo num ranchinho beira-chão
Vi uma mulher chorando, quis saber qual a razão
Boiadeiro veio tarde, veja a cruz no estradão
Quem matou o meu filhinho foi um boi sem coração

Lá pras bandas de Ouro Fino levando gado selvagem
Quando passo na porteira até vejo a sua imagem
O seu rangido tão triste mais parece uma mensagem
Daquele rosto trigueiro desejando-me boa viagem

A cruzinha do estradão do pensamento não sai
Eu já fiz um juramento que não esqueço jamais
Nem que o meu gado estoure, que eu precise ir atrás
Neste pedaço de chão berrante eu não toco mais
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

A Saudade e o Sertão: A História Contada por 'O Menino da Porteira'
A música 'O Menino da Porteira', interpretada por Sérgio Reis, é um clássico da música sertaneja brasileira que narra a história de um encontro entre um boiadeiro e um menino que vivia na estrada de Ouro Fino. A letra, carregada de emoção e simplicidade, reflete a vida rural e as relações humanas em um contexto de viagens e trabalho no campo. A figura do menino, que se alegra ao ouvir o som do berrante e corre para abrir a porteira, simboliza a inocência e a alegria simples encontradas nas pequenas ações do cotidiano rural.

A narrativa da canção toma um rumo trágico quando, na volta do boiadeiro, a porteira está fechada e o menino já não está mais lá para recebê-lo. A descoberta da morte do menino, causada por um 'boi sem coração', traz uma reviravolta emocional à história, transformando a memória do menino em uma lembrança dolorosa que assombra o boiadeiro. A cruz no estradão serve como um marcador físico e emocional da perda, e o lamento do boiadeiro se mistura com o rangido triste da porteira, que agora carrega o peso da ausência e da saudade.

A música se encerra com a promessa do boiadeiro de nunca mais tocar o berrante naquele pedaço de chão, em respeito à memória do menino. Essa decisão simboliza um juramento de honra e um tributo à vida que foi perdida. 'O Menino da Porteira' é uma canção que fala sobre a dureza da vida sertaneja, mas também sobre a humanidade e os laços afetivos que se formam mesmo nas circunstâncias mais simples. Sérgio Reis, com sua voz marcante e interpretação genuína, conseguiu eternizar essa história em forma de música, tocando o coração de muitos ouvintes com a narrativa desse encontro entre o boiadeiro e o menino da porteira.

Um dos maiores compositores da música caipira, Teddy Vieira teria em "O Menino da Porteira" o seu primeiro grande sucesso. Cantada em como manda a tradição do gênero, a composição foi gravada pelo por Luizinho (Luís Raimundo) em dupla com Limeira (Ivo Raimundo), acompanhados por viola caipira de cinco cordas dobradas, violão e o som de um berrante de chifre de boi.

A letra conta a história de um boiadeiro que sempre presenteava com uma moeda um menino que lhe abria a porteira para dar passagem ao gado e sempre queria ouvir o berrante. Tempos depois o menino é morto por um boi e o boiadeiro nunca mais volta a tocar o berrante.

Em 1973, "O Menino da Porteira" ressurgiu em gravações de Tião e Pardinho e do ex-cantor da Jovem Guarda Sérgio Reis. O sucesso foi tão grande que Sérgio decidiu utilizar o poema como enredo de um solidificou sua carreira de cantor sertanejo.

Fontes:
https://www.letras.mus.br/sergio-reis/68480/
https://cifrantiga3.blogspot.com/2006/05/o-menino-da-porteira.html