segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Asas da Poesia * 120 *


Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Caras Vitrines Espelhos

Viver não é sofrer de forma avara,
A tara de uma dor que o ser inventa,
É ver em cada espelho, nova cara
A cada vez que a dor nos violenta.

É rir, quando o espelho se depara
Com a cara que a tristeza nos empresta
Porque a flor que fere é a que sara
A dor de cada cara em cada aresta.

Viver é conviver com cicatrizes;
Felizes são aqueles que guardaram
As marcas do seu tempo de aprendizes
E tatuaram dores que sararam.

Espelhos são os olhos da razão;
Vitrines são desejos coloridos
Da alma que transforma em sedução,
Apenas sentimentos refletidos.

Amar implica dar algum sentido
Ao tempo que se tem, e transformar
O dom de abençoar o amor vivido
No brilho que abençoa o próprio olhar.
= = = = = = = = =  

Spina de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

Aos primeiros raios solares…

Páginas em branco
rumam em silêncio 
abrindo as janelas, 

descortinando o novo dia azul.
Repleta de paz sou esperança,
em linhas retas, sou paralelas. 
Sem pensar no amanhã, verso
risos ou prantos, sem mazelas.
= = = = = = = = =  

Trova Popular

A dor por maior que seja
se comprime, se contrai.
Eu nunca vi dor no mundo
que não coubesse num ai.
= = = = = = = = =  

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Somos
Um invólucro de barro
Onde a alma 
Se abriga.
Casulo frágil, frágil...
A seu tempo, 
A alma escapa
E entre as nuvens 
Voa...
= = = = = = = = =  

Soneto de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

Gangorra do Tempo

O tempo é um rio que nunca cessa,
desliza suave, em seu curso incerto,
leva os sonhos, o amor, o deserto,
e em cada gota, uma vida expressa.

As horas se vão, a saudade, a pressa,
deixando marcas em nós, imaculadas.
As rugas são contos, chibatadas
de um passado que em nós se confessa.

Mas há a beleza na sombra que arde,
no eco da risada que se dissipou,
e na memória que ainda se faz.

A vida é um ciclo que nunca vem tarde,
em cada lembrança, um brilho que clareou,
fazendo do agora uma eterna paz.
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Poema de
ANTONIO CASTILHO
Avaré/SP

Alzaimer

Hoje lembrei quando você partiu
Você me abraçou no portão e me deixou aqui
Você tem só 18 anos
Não sei como vai viver sem mim .
Todos os dias vou para estação para ver se está voltando...

É tanta gente chegando, é gente partindo
Mas você não está
A saudade vai me matando mas
tenho que seguir

Amanhã eu volto e talvez te encontre
Você só tem 18 anos ...
Meu medo é que você se perca por ai ...
As vezes olho no espelho e não me reconheço 
Poucos cabelos muitas rugas
Será que o tempo passou eu não percebi?

Todos os dias eu volto para a estação esperando você chegar
Você tem só 18 anos !
E nada ...
Só um senhor  vem me resgatar
Vem me buscar para casa me levar ...

Ele me abraça ...
As vezes lembro que ele me chama de pai, 
talvez para me agradar ...
Meu filho tem só 18 anos
Não vejo a hora dele voltar
Para poder de novo abraçar e comigo finalmente ficar
= = = = = = = = =  

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Sabedoria

Senhor, meu Deus, me dê Sabedoria,
é tudo o que eu mais peço ultimamente,
percebo agora o quanto eu não sabia
e preciso aprender de modo urgente!

São leis que não aprendi na academia,
não sei se por ser pouco inteligente,
ou não interpretei como devia
o Seu bondoso amor, mas exigente.

Eu quero, antes que fique bem tarde,
varrer o erro que em meu peito arde,
por míngua do saber santo e profano.

Almejo viver bem com o amor divino
e com o amor de um anjo feminino,
pois sou filho de Deus, mas sou humano!
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Poema de
ANDRÉ VASCONCELOS
Diadema/SP

E se não amanhecer

É o breu.
Sou eu.
Tempo ruim choveu.

Os planos ruíram.
Quando se apaga.
Os sonhos dormiram.

Não enxerguei.
Tateei o nada onde me vislumbrei.
Olhos sempre abertos.
Mas não significa que soube enxergar.

Respirei fundo.
Para puxar o ar que faltou.
A esperança roubou.
Sem ar sem fôlego sem acreditar.

Ouço meu nome.
Eu respondo.
Sou eu.
Desse lado.
A chuva o tempo e o breu.
= = = = = = = = =  

Trova Funerária Cigana

Envolto em tua mortalha,
meu coração tu levaste.
Antes contigo se fosse,
a vida que me deixaste.
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Poema de 
JESSÉ F. DO NASCIMENTO
Angra dos Reis/RJ

Fim

Não tente ressuscitar
os mortos que somos
para o amor.
Tudo acabou.
Restam as mágoas.
Não tente reacender
um fogo que se apagou.
Restam as cinzas.
Nada mais...
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Poema de 
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Paz

Vem de dentro para fora
caminho obstinado na nudez dos pés
imunes aos cardos crescendo descontrolados
passos dolentes que se recusam a parar.

Sábio silêncio do Homem que cala a voz
em guerras inúteis, ecos de palavras ocas.
Nobre missão em cruzada contra o tempo
numa luta sem decreto de vencedores ou vencidos

Paz semeada no campo da humanidade
tecida na brandura de alvos fios de linho
jardim-cultivo de amor e justiça, onde
nardos de esperança florescem no mais pleno viço.
Na presença da tua asa suprema
se tranquilizam os corações em desordem.
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Soneto de
JOSÉ TAVARES DE LIMA
Juiz de Fora/MG

Doação infeliz

Não me censures se não te procuro,
nem tentes entender meu desamor…
Mataram cedo o sentimento puro
que havia no meu peito sonhador!

Este meu jeito indiferente e duro
somente esconde um natural temor,
porque sofri demais; e, te asseguro:
morre a ternura em quem sofreu de amor…

Doei-me inteiro para alguém, um dia;
acreditei nas juras que fazia,
e em paga só colhi desilusão…

Hoje, ferido por tão rude espinho,
acostumei-me tanto a ser sozinho
que até me sinto bem na solidão!
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Soneto de
ISMAR DIAS DE MATOS
Belo Horizonte/MG

Diamantina

Tens o clima intraduzível;
cedo é sol, tarde é neblina...
Diamantina, Diamantina...
que natureza aprazível!

"Se é por demais incrível
e o meu dilema fascina,
inclina o ouvido, inclina,
ouve o tempo indescritível!

Se o sol que ora clareia
der lugar à lua cheia
e convidar à seresta;

deixa o sol, essa torrina,
calor e qualquer rotina,
vê a natureza em festa!"
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Hino de 
Lagoa da Pedra/MA

Lago da Pedra! Lago da Pedra!
Nascestes atraente e majestosa,
Circundada por riquezas naturais,
Rodeada de soberbos palmeirais.

Lago da Pedra!
Uma fonte de encanto e beleza
Para o Brasil uma esperança renovada
Pelo padroeiro São José abençoada!

Lago da Pedra!
Na dureza da paisagem do sertão
Marchando com bravura e decisão
Ao encontro de uma história triunfante.

Lago da Pedra!
Com sua juventude tão brilhante
Um sorriso alegre, um médio sertão.
Cidade de progresso do Maranhão.
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Poema de 
ATÍLIO ANDRADE
Curitiba/PR

Arrogância 

É  bom de vez em quando 
Descer da escada 
E dar uma olhada
No rodapé...
Amarrar, fixar 
Pois na ganância 
Um  tombo pode derrubar
Tua arrogância.
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Soneto de
JERSON BRITO
Porto Velho/RO

Juras sufocadas

A noite, quando exala nostalgia,
entrega-me ao calvário desumano 
de atravessar, em sonho, a galeria 
e amenizar a sede do cigano.

A inspiração, parceira na agonia,
marcada pelo sal do desengano,
às vezes me socorre e me alivia,
acolhe o desespero, o grito insano.

Rabisco juras, canto o sentimento,
imerso na saudade e, assim, enfrento 
as dores da pungente solidão.

No entanto, aos poucos, domo o desatino,
restauro a lucidez e não termino
mais um soneto escravo da ilusão…
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Soneto de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Magia interrompida

O imenso amor, outrora concebido,
eu traduzia em versos, no papel…
Narrando cada passo colorido,
punha a magia dada a um carrossel.

Tempos depois, ao vê-lo constrangido,
sem ter retorno ao seu ardor fiel,
fui recolhendo o amor desiludido 
que, desbotado, impôs o adeus cruel.

E, agora, sufocando o sentimento,
sou folha seca, só e solta ao vento,
sem o vigor do intrépido passado.

Ao ver desfavorável o desfecho,
na minha inspiração não mais remexo 
e cremo o meu soneto inacabado.
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

A rã e o rato

Trazendo viva guerra antigamente
Rãs e ratos, houve uma tão valente,
Que tomou em um choque prisioneiro
Um rato, que era entre eles cavalheiro.

Pediu-lhe este licença em certo dia,
Para acudir a um pleito que trazia.
Concedeu-lhe. Era o rato precisado
A passar um profundo rio a nado:

Deu indícios de medo; a rã lhe disse
Que se prendesse a ela e que a seguisse;
Que como no nadar tinha mais arte,
O poria sem risco na outra parte.

Aceitou, e de junco fabricaram
Uma boa tamiça a que se ataram;
Porém a falsa rã, que a má vontade
Encobria em finezas de amizade,

Desejava afogá-lo; e lá no meio
Puxava para baixo, e com receio
Puxava para cima o triste rato,
E faziam um grande espalhafato.

Passava acaso uma ave de rapina;
E vendo aquela bulha, o voo inclina;
Pilha ambos pelo atilho; e a tal contenda
Acabou em fazer deles merenda.

Ninguém creia em finezas de inimigo,
Porque o ódio se oculta e não se entende;
Dirá que de perigo nos defende,
Para haver de meter-nos em perigo.

Sabemos que não fica sem castigo;
Porque às vezes no laço em que pretende
Ofender-me, também a si ofende:
Mas que importa, se lá me tem consigo?

Se padecesse só o embusteiro,
Menos mal; porém vou com ele atado,
E posso no penar ser o primeiro;
Por isso nada fico aproveitado,
E talvez se aproveite algum terceiro
À custa do inocente e do culpado.
= = = = = = = = = 

Silmar Bohrer (Croniquinha) 147


Mundo velho sem porteira!

A afirmação nos transporta às palavras do contador de histórias quando, em certa viagem há exatos sessenta anos, acabou admirado com a variedade de imagens que os olhos e a memória apreenderam pelo caminho.

Realmente, nós, devoradores de paisagens, quando saímos de casa a andejar pelos caminhos, soltamos o espírito andarilho em busca das delícias oferecidas - os pequenos detalhes, grandes dádivas, os coloridos deslumbrantes que os céus e a terra oferecem. Até as pedras atraem. E as águas cristalinas ali jorrando... Os pássaros cantando...

Mas a gente lembra que o mundo tem suas dicotomias - os dois lados, dentro e fora da porteira. E o lado de fora tem estado em constante disposição de beligerâncias. Em todos os sentidos. Com a velocidade e a voracidade das informações, ficamos atordoados pelas imagens que chegam.

Guerras de um lado - algumas bíblicas -, desastres e tragédias naturais, inundações, furacões, queimadas, ciclones, secas. A ebulição é global. 

A porteira está escancarada... 

Então, bem lembro de Carl Sagan há quatro décadas: "Na nossa obscuridade em toda a vastidão do universo, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós mesmos". 

Será que a porteira caiu?! 
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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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Newton Sampaio (O ideal do clarinetista Valério)

(Contos do Sertão Paranaense)

Valério sentia-se imensamente jubiloso.

— Arre! Que hoje vou ser pago de todos os meus esforços. E ia de um lado a outro, apressado.

De minuto em minuto, quase, sacava do bolso um velho relógio, envolto em surrada capa de couro, que punha a descoberta apenas o mostrador.

— Sete e meia! Já era tempo de estarem aqui. E percorrendo nervosamente a saleta em diagonal. — Daqui a pouco a campainha começa a tocar. 

A impaciência aumentava:

— Que diabos estarão fazendo os rapazes? 

Uma voz de mulher partiu do quarto:

— Valério, não está na hora, já?

— Está sim, Nhana. Mas ninguém chegou ainda. Pipocas! 

E adoçando a voz:

— Venha cá, Quinzinho. Pegue o pacote e fique esperando sentado.

Aquele que atendera por Quinzinho desencostou-se do umbral donde, chupando um caramelo qualquer, olhava, as largas passadas do outro. E obedeceu à indicação. Era um menino de quatro anos e tanto, de pele trigueira, barrigudo por causa das bichas. Trajava roupinha de brim, e, no cocuruto, um boné avermelhado.

Valério tinha cor mais carregada que a criança. O ventre também lhe sobressaía no corpo agigantado. Por alguns instantes, em silêncio, contemplou o filho, com bondade, com doçura.

Chegou-se depois à porta da rua. Pôs a cabeça para fora e, esfregando as mãos:

— Aí vêm eles.

Quinzinho demonstrou alegria por aquela notícia. Enterrou um pouco mais na cabeça o bonezinho modesto.

— Boa noite, seu Valério. Demoramos um pouco, não?

Os recém-vindos penetraram na sala.

— Falta alguém?

— O Juca e o Benedito. Mas eles já vêm.

Minutos depois transpunham a porta mais dois rapazes.

— Sabe por que nós atrasamos, Valério? Estivemos ouvindo uma conversa ali na esquina.

— Que foi?

— O seu Otávio dizia aos companheiros que era preciso pagar alguma coisa pra nós depois do cinema.

Chegou nesse momento até a saleta o retinir incessante de longínqua campainha.

— Eh! Rapaziada. Toca a andar.

Quinzinho pôs-se de pé em três tempos.

— Pai. É só isto pra levar?

— Só, menino. Não vá derrubar nenhuma folha.

Movimentaram-se todos imediatamente.

Com presteza foram tirando de cima da mesa os instrumentos de música que cada qual executava. Um, o trombone. Outro, o bombardino de larga campana. O terceiro, o pistão luzidio com seu minúsculo bocal.

Valério, de seu turno, empunhou o clarinete.

Nhana surgiu do quarto.

— Já fechou a casa, Nhana?

E, sem esperar resposta, virou-se para os companheiros:

— Olhem lá. Não façam feio, hein? Se hoje nós tocarmos direito, estamos feitos.

— Ah! Isso vai ser uma barbaridade. Calculem só: a “furiosa” do mestre Valério...

E o Benedito soltou uma risada gostosa.

Um a um foram saindo os rapazes, enquanto Valério pontificava:

— Logo que se acabe a novena, subiremos a rua, tocando. O Quinzinho vai levando ali as partituras das peças mais importantes.

— Seu Valério, que é que vamos tocar?

— O meu dobrado, primeiro. Mas, Durvico, preste atenção. Não se esqueça daquele trecho do si bemol. Atenção, todos. A terceira parte é bem mansa. Só eu e o Juca faremos o dueto. Os outros reforçam o acompanhamento.

Minutos depois os que saíam da novena ouviram uns acordes de marcha e, em pouco tempo, a filarmônica do Valério estava envolvida em um círculo de curiosos.

Cessada a peça, adiantou-se um rapaz.

— Parabéns, Valério. Gostei de ver.

E outro:

— Para você ver que os moços da terra não são ingratos, nós lhe queremos fazer surpresa depois da função.

Valério atarantado pela felicidade com que fora executada a marcha (nem mesmo o Durvico destoara a harmonia no pedaço encrencado, como de costume), não sabia o que fazer. Sorria e, apenas enrugava a comissura dos lábios, adquiria já expressão séria. Tentava agradecer. Vinha-lhe à flor da boca uma fartura de palavras contentes. Mas, qual! A emoção fora tanta que até a voz não queria sair.

É que, naquela noite, experimentava o mulato uma sensação inigualável. Conseguira apresentar ao povo de Tomazina o fruto de seus esforços titânicos — uma banda musical.

Tempos atrás o mulato Valério aparecera ali. Originário não se sabe donde, pelo nomadismo de sua vida, precedia-o, contudo, insistente fama de exímio clarinetista.

Mal dele, nunca ninguém falara. Espírito humilde, adaptável, jamais dera serviço às línguas viperinas do lugarejo. Apenas uma ou outra comentava com benevolência o temperamento boêmio do Valério, que não fazia outra coisa senão assoprar o instrumento.

Procuravam-no constantemente os rapazes, para serenatas. E, nisto, o mulato ganhava apenas conhaque ou cachaça.

Onde colhia os meios com que pudesse atender às despesas de pequena família, ele, a mulher e o Quinzinho, era nos bailes.

— Uma noitada de música? Vinte mil réis!

A respeito de sua vida particular pessoa alguma criara hipóteses menos favoráveis. Ao chegar, já viera acompanhado do filho e da Nhana.

Se bem que não houvesse certeza de serem casados legalmente, a aparência de pacata vida conjugal repelira, às profissionais do fuxico, a ideia de qualquer pesquisa. Sabia-se apenas que a Nhana brigava com o Valério, por alguns minutos, quando ele voltava bêbado, depois de uma tocata noturna.

Ao tempo que ali aportara Valério, o lugar sofria flagrante decadência. E, retrogradando, ia perdendo todas as provas do antigo progresso. Até a banda musical (outrora respeitada em todos os municípios vizinhos), perdera um a um os elementos, e o instrumental azinhavrado, sem lustro existente nas épocas passadas, lá repousava, coberto de pó, nos armários toscos da Prefeitura.

Logo de chegada, Valério reclamou:

— Onde já se viu uma cidade como esta, sem banda nem orquestra? Falta de vergonha...

E, sem mais demora, se pôs a atalhar o “abuso”, como dizia. Arranjou violonistas aqui, tocadores de cavaquinho ali, e em poucas semanas exibia o pequeno conjunto muito bem ensaiado em valsas e sambas. A estreia foi de sucesso. Desde então o “chorinho” do Valério começou a ser procurado por toda a parte.

Personalizou-se assim o mulato. Adquiriu nome. Tocando mais pelo gosto à música que por interesse, caiu na simpatia dos rapazes.

E rara a noite em que não ganhassem os ares os sons vagabundos do velho clarinete.

Depois deste primeiro passo, Valério almejou mais ainda. Quis ressuscitar a banda. Onde arranjar, porém, músicos e instrumentos? Estes últimos, conseguiu-os do prefeito. Mas, os tocadores? Sem desacorçoar, Valério convidou alguns rapazes para estudar música. Foi tiro e queda. A ideia triunfou imediatamente. Por cúmulo de sorte, um moço do lugar, chamado Otávio de Morais, muito bem apessoado, dava-lhe todo apoio, animando-o constantemente.

Iniciou Valério, pois, as modestas lições. Depois de inumeráveis esforços, de dias e noites passadas em contato com mínimas e semínimas, com claves e campanas, percebeu que sua ideia surtira efeito. Todas as tardes reunia, na sala humilde de sua morada, os oito companheiros, cada qual mais entusiasta que outro.

Meses depois estava preparada a corporação. Pronta para mostrar-se em público. E naquele domingo, o Valério resolvera exibir o fruto de seus esforços.

Já muito tempo antes a notícia percorrera a cidade. E acrescida, ainda, de outra circunstância. A marcha escolhida para a estreia seria uma composição especial do Valério, composição que lhe custara várias semanas de pertinaz trabalho e na qual pusera o charadístico título de “Boi lavrado”.

Vitorioso, Valério afeiçoara-se ao lugar. Ali não precisava cuidar de outra coisa, a não ser da música.

Quando não tinha contratos para tocar, metia-se, apesar das iras da Nhana, em barulhentas serenatas.

Em certos dias da semana, entretanto, minguavam os companheiros de estroinice. O mulato, então, dispensava os ensaios e deixava-se ficar em mangas de camisa, pacatamente assentado à porta da casa.

Nessas ocasiões era seu maior contentamento pôr ao colo o Quinzinho, acariciar-lhe os cabelos muito levemente encarapinhados, pousar-lhe no rosto olhares impregnados de imensa ternura, e com voz brandar-lhe dizendo:

— Quinzinho. Daqui a dois anos você vai começar a aprender. Começando cedo, quando você estiver com quinze anos já será cuera na execução. Quinzinho, logo que inteire as economias, vou mandar buscar em São Paulo um instrumento bem novinho, de double dó. Você deve saber, antes de pôr calça comprida, variações difíceis como o do “Girimeu”. E deve também tocar todas as semicolcheias melhor que o Cláudio Barroso. E quando você souber contraponto, comporá um dobrado bem bonito, pondo-lhe o nome do pai, ouviu, Quinzinho?

O menino abria desmesuradamente os olhos. Depois fitava o pai, sorrindo.

Valério considerava aquele olhar e aquele sorriso com a prova irrefutável de que o Quinzinho seria, no futuro, um homem acorde com o seu ideal. E com maior ternura ainda punha-se a afagar-lhe a cabeça, continuando a balbuciar nos ouvidos do filho tudo o que lhe ditava o amor de pai.

Foi em uma tarde dessas que o Otávio Morais resolveu dar um tico de prosa com o Valério. Eram ambos muito acamaradados. Otávio percebia em Valério acentuada bossa musical, atrofiada embora pelo desregramento da vida e viciada falta de cultura, e não escondia sua simpatia, com resquícios visíveis de compaixão, ao humilde clarinetista.

Apenas parou em frente à casa de Valério, foi dizendo:

— Então, mestre? Boa vida, hein? E depois dizem que a música não dá em nossa terra.

O outro sorriu, tirando Quinzinho do colo e trazendo uma cadeira da sala.

— Não se incomode. Estou de passagem.

E puseram a conversar.

Quinzinho olhava ora para um, ora para outro, mudamente, muito tristinho, coçando o nariz de vez em quando e pondo as mãos sobre a barriga, que se lhe desenvolvera bastante. A conversa recaiu sobre ele, num dado momento. Dizia com orgulho o pai:

— Seu Otávio, este meu filho é ladino como só ele. Assiste a todos os ensaios com atenção. E só o senhor vendo a alegria dele quando alguém me vem contratar. Fica de prontidão, disposto a me seguir e a carregar as partituras. Não vai também às serenatas porque a Nhana faz pé firme. Senão... Calcule o senhor que um dia destes o Quinzinho me disse: “Pai. Por que não compõe uma valsa com o meu nome?” E eu, que remédio!, tive que comprar mais papel pautado e apertar a cabeça.

E concluiu, ufano:

— Dentro de poucos dias vou ensaiar a valsa “Quinzinho”.

— Bravos. O seu menino demonstra ter gosto pela música. O senhor deve instruí-lo o mais cedo possível. Quem sabe lá, Valério, não será ele no futuro um grande compositor ou, pelo menos, um ótimo executor?

O outro tentou uma pilhéria:

— E como é que não? Pois na noite em que o Quinzinho nasceu, eu estava tocando na serenata mais histórica que fiz em Itaberá...

Ao despedir-se, Otávio quis fazer uma carícia ao Quinzinho. E reparou:

— Valério. Dê algum remédio ao menino. Veja como está pálido e pançudo. São as bichas, pode crer.

O mulato agradeceu a indicação daquela amizade que o lisonjeava e, apenas o moço ganhou a rua, mergulhou na sala em penumbra, escarafunchando a papelada que estava sobre a mesa.

Antes de dobrar a esquina, Otávio ouviu sons estrídulos de clarinete. Era o Valério que examinava a combinação de acordes em alguns trechos da sua nova composição.

Alguns dias depois a humilde morada de Valério regurgitava de gente.

De dentro, vinham lamentos de cortar o coração.

Descia, nesse momento, a rua, seriamente, o Otávio de Morais. Chegou-se à porta.

Apenas o viu, Valério, sem paletó, mal presos os suspensórios, os olhos marejados de lágrimas que lhe molhavam o rosto trigueiro, abriu largamente os braços. E estreitando o amigo, foi dizendo com voz entrecortada de soluços:

— Seu Otávio. Vejo só que desgraça! Agora que o Quinzinho estava nas vésperas de completar cinco anos... agora que eu queria ensinar o meu filho... as bichas o atacaram, sem dó nem piedade. Bem que o senhor me tinha dito noutro dia, seu Otávio... mas eu me esqueci, por causa de tanta tocata... eu me esqueci de procurar o remédio... e hoje o coitadinho do Quinzinho foi-se embora pro céu. Ah! Que desgraça! Agora, quando é que eu vejo um filho meu tocando clarinete? Quando, meu Deus? Que desgraça, seu Otávio! Que desgraça...

E Valério chorava como criança, sentando-se no banco e pondo o rosto entre as mãos.

De tempos a tempos, aumentando o pranto espalhafatoso, levanta os olhos para pousá-los no pequeno cadáver posto à mesa — o Quinzinho, o corpo inocente velado por quatro círios modestos, as órbitas muito dilatadas, a pele brilhante, o ventre formando um bojo enorme nos lenços sem luxo que cobria, o Quinzinho, que levava para o túmulo o grande e único ideal do mulato, carregando consigo, também, os últimos acordes do surrado clarinete.

Valério, na verdade, nunca mais tirou a boquilha do instrumento, desistindo por completo de fazer serenatas. E devolveu ao prefeito, além do instrumental, de novo condenado a azinhavrar-se nos armários poeirentos da Prefeitura, o arquivo da filarmônica, acrescido, porém, de mais duas partituras: a marcha “Boi Lavrado” e a sentimental valsa “Quinzinho”.
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Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

domingo, 2 de novembro de 2025

Guirlanda de Versos * 44 *

 

Eduardo Martínez (Foi brincar com a Cuquinha)


Assim como há pessoas especiais que passam pela nossa vida, os cães também nos encantam de tal forma, que eles passam a ser assunto de conversas e lembranças. Tive a oportunidade de conhecer vários cachorros desde a minha tenra infância. Seria até injusto com alguns se eu não os mencionasse aqui. Todavia, vou falar especialmente de uma, a Cuquinha, uma cadela da raça Bull Terrier que foi a minha mais doce companheira por seis anos.

O mundo da Cuquinha era eu, tanto é que ela nem mexia as orelhas caso outra pessoa a chamasse. Isso, às vezes, acabava irritando alguém, mas eu achava o máximo. Ela passava o dia comigo na clínica e, ao final do dia, voltava para casa ao meu lado. 

Um dia, infelizmente, ela faleceu, ainda nova, nos meus braços. Fiquei sem chão nesse dia e por um bom tempo nem quis mais ter cães. Obviamente, acabei entregando os pontos, pois viver longe de um nariz gelado é um desalento. 

Não sei exatamente quando começou, mas um dia, logo após alguém ter falecido, eu falei: "Foi brincar com a Cuquinha". Isso, aliás, acabou sendo o comunicado sobre algum falecimento, não importa de quem quer que seja. Na minha família, portanto, nunca falamos que alguém morreu, faleceu ou partiu desta para melhor, mas foi brincar com a Cuquinha. 

E eis que um dia estava olhando algumas fotos da Cuquinha, quando um amigo se aproximou. Acabei lhe contando essa história. Ele, então, se virou para mim e disse: "Sempre tem uma Cuquinha esperando por todos nós em algum lugar".
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Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.
Fontes:

Dicas de Escrita (Qual é o preço de meu livro?)


Para precificar um livro, você deve calcular os custos de produção (impressão, revisão, ISBN) e somar uma margem de lucro desejada. Além disso, é fundamental pesquisar o mercado e a concorrência para entender o preço que os leitores estão dispostos a pagar. Outros fatores como a transformação que o livro oferece (especialmente em não-ficção) e o nível de autoridade do autor também devem ser considerados. 

O preço médio de um livro no Brasil ficou em torno de R$56,77 em março de 2025. Um livro de mais de R$100,00 é considerado de preço elevado no mercado nacional e, portanto, se enquadra em um nicho de consumidores mais específico, de poder aquisitivo melhor, mas a probabilidade de um grande volume de vendas é baixa em comparação com livros de preços médios, salvo sejam livros técnicos, pois se destina a um nicho de mercado específico e menos sensível ao preço, sendo livros de não ficção.

1. Calcule seus custos

Custos de produção: 
Inclua todos os gastos diretos, como impressão (que varia conforme a qualidade do papel, capa, etc.), design da capa, revisão, diagramação e registro (ISBN, ficha catalográfica). 

Custo unitário: 
Divida o custo total da publicação pelo número de livros produzidos para obter o custo por exemplar. 

Custos de venda: 
Lembre-se de incluir os custos de envio (frete e embalagem) e as taxas das plataformas de venda (como Amazon, que cobra comissões e taxas por item vendido). 

2. Pesquise o mercado e a concorrência

Análise de mercado: 
Verifique os preços de livros semelhantes no seu nicho para ter uma ideia do que os leitores consideram um preço justo.

Compare com autores: 
Observe livros de autores iniciantes e experientes para entender as diferentes faixas de preço dentro do seu gênero. 

3. Avalie o valor e a autoridade do autor

Valor do livro: 
Considere o valor que o livro entrega ao leitor. Livros de nicho ou que prometem habilidades práticas (não-ficção) geralmente podem ter um preço mais alto. 

Engajamento do público: 
Se você já tem um público engajado, é possível cobrar um preço mais alto. Autores iniciantes devem começar com preços mais baixos e ajustá-los conforme ganham mais leitores e avaliações. 

Desejabilidade: 
Crie desejo pelo seu livro. Quanto maior o desejo, maior a chance de os leitores se sentirem satisfeitos com o preço cobrado. 

4. Defina sua estratégia de precificação 

Margem de lucro: 
O preço final deve ser o custo total por unidade mais a sua margem de lucro. Você pode escolher precificar mais alto para obter maior lucro por livro, mesmo vendendo em menor quantidade, ou precificar mais baixo para incentivar um maior volume de vendas. 

Ajustes: 
Monitore suas vendas. Se o livro está vendendo muito bem, você pode considerar aumentar o preço. Se as vendas estiverem baixas, pode ser a hora de fazer promoções ou reavaliar seu preço. 

Plataformas: 
Adapte o preço para cada plataforma, se necessário. Algumas plataformas, como a Amazon, permitem que você defina preços sugeridos diferentes para cada marketplace. 

Fontes:
IA Google
Imagem criada por Jfeldman com IA Microsoft Bing 

Sebastião de Magalhães Lima (A fatalidade e o destino)


O sangue pede sangue. 
(Shakespeare — Macbeth)

Era por uma dessas noites tempestuosas e frias do mês de dezembro de 18... O vento soprava rijo e medonho. Lá fora, ouvia-se o rugir da procela. O ribombo do trovão ecoava tremendo e severo, como um castigo de Deus. As nuvens, prenhes de eletricidade, revolviam os ares, cada vez mais espessas e rápidas. A natureza parecera amesquinhar-se, perante o pavoroso espetáculo, que, em breve, teria de representar-se por sobre a superfície da terra.

Tudo cedia, sem remédio, à violência de tão possante e irresistível inimigo.

O carvalho altivo dobrava sua fronte majestosa ao ímpeto do vendaval raivoso. O cedro arrojava-se humilhado ante a sua impotência e frágil embaraço. No céu, mal se destacava o refulgir das estrelas, dentre a densidade das brumas e trevas espessas. A humanidade, em silêncio, parecera adormecida num leito de funeral tristeza, e o prazer profundamente engolfado num abismo de terrível melancolia.

Dir-se-ia a hora de eterna vingança, o dia de suprema verdade!

Em Lisboa, nessa cidade luxuosa e rica, era prolongado o silêncio. Apenas o vozerio confuso e indistinto de um ou outro pregoeiro poderia tomar-se, talvez, como um sinal de vida e movimento efêmeros, por entre o tumultuar daquele estranho labirinto.

Numa pequena e exótica habitação da rua dos Douradores, agitava-se violento e apressurado, de um para outro lado da casa, um vulto alto e nobre, de tez morena, barba preta, longa até ao peito, e com a fronte sulcada de profundas e salientes rugas.

De quando em quando, Lourenço Viegas corria pressuroso pela sala, abria a vidraça da janela, com ímpeto não vulgar, e observava impaciente aquele estado de coisas, que refervia, lá por fora, nas ondas da procela. Depois voltava para dentro, e continuava a passear agitado e trêmulo.

Num dos intervalos, porém, Lourenço caiu quase automaticamente sobre uma velha cadeira de espaldar, ali existente, único móvel que guarnecia aquele triste e humilde recinto, e que tivera a dita de escapar à sua espantosa prodigalidade.

Após alguns momentos, como se um pensamento estranho, de súbito, lhe houvesse subjugado a fronte intumescida pelo contínuo redemoinhar de ideias, quase sempre opostas, puxou por um punhal, que nunca esquecia ao seu lado esquerdo, e colérico arremessou-o para longe de si, sem outro instinto que não fosse o da própria salvação. A lâmina de aço fuzilou um instante e foi cravar-se numa porta fronteira onde bruxuleava ainda o clarão quase extinto de uma candeia, ali cravada. Ao contato de tão perigoso agressor, a porta estremeceu, e a luz, mal segura, caiu.

Nesse momento, estrugiu os ares o latir agudo de enorme rafeiro, inseparável companheiro deste nosso Otelo em miniatura. Lourenço apenas levantara a cabeça, para tornar a cair naquele mesmo estado de medonha letargia.

No entanto, a tempestade havia serenado algum tanto. As brumas começavam a dissipar-se no horizonte, e a estrela d'alva rompia bonançosa e feliz.

Lourenço levantou-se então, alumiado ainda pelo contínuo e rápido fuzilar dos relâmpagos, e foi arrancar o punhal do lugar em que, momentos antes, se tinha cravado. Olhou para ele com a firmeza de um herói, e introduziu-o no bolso.

Tu me salvarás!... — dizia ele, empurrando cautelosamente a portinhola daquele cubículo, que nem chave já possuía. Acompanhava-o o seu Terra Nova.

Mas o que iria ele fazer às horas da madrugada? Que desígnio era o seu? Veremos mais tarde. Por agora, limitar-nos-emos a seguir seus passos incertos, se tal nos aprouver.

Da rua dos Douradores, Lourenço Viegas caminhou até o Cais do Sodré, onde parou junto do Grand Hotel-Central.

— É preciso partirmos já, sem mais demora. Remos ao mar, e nada de hesitações. Vamos a isso. O teu prêmio está nas minhas mãos.

Isto dizia Lourenço Viegas, dirigindo-se a um desconhecido, que há muito o esperava naquele mesmo lugar.

— Receio muito pelo mar, meu amo. Mas, enfim, uma vez que é da sua vontade, vá lá. A Virgem Nossa Senhora nos acompanhe.

Assim falava o arrais, saltando, prestes e desimpedido, para dentro de um pequeno escaler, que se vergava submisso sobre as ondas enfurecidas.

Após várias e perigosas peripécias, no todo inúteis à curiosidade do leitor, o escaler embicou finalmente à praia de Cacilhas. De um pulo, estava Lourenço em cima do cais, tendo exposto de antemão ao arrais todo o plano de seus futuros desígnios.

Vejamos, pois, o que sucedeu.

Lourenço subiu apressado a longa e dificultosa encosta, que conduz à vila de Almada, e parou no cimo, lá, onde alveja uma casinha graciosa, rodeada de espesso arvoredo, e fragrâncias sem conta.

A um sinal convencionado, abriu-se uma das janelas daquela airosa e solitária vivenda, e logo após assomou a ela uma figura de mulher, que mal se destacava ainda por entre as sombras quase desvanecidas da madrugada.

— És tu, Lourenço? — perguntou Beatriz num tom receoso e baixo.

— Sim, meu anjo, é o teu amante, que te espera. Convém não demorar, de modo algum, a nossa partida. A claridade começa a romper, e os nossos esforços serão frustrados, se não fugirmos antes do dia.

— Então já, meu amigo. Fujamos, enquanto é tempo. Meu pai dorme profundamente, e creio até que ninguém mais vela nesta casa.

Neste interim, Beatriz atou um lençol à beira da janela, procurando ter nele um esteio seguro para a sua rápida fuga. Desceu, em seguida, até uma certa altura, em que Lourenço a pôde suster em seus possantes braços, não consentindo, por este modo, que seu pesinho aristocrata tocasse sequer esta terra ingrata e rebelde, que só pisam humildes mortais.

Momentos depois, as pedras da calçada incendiavam-se ao rápido perpassar de um brioso alazão, que tomara o caminho do cais com celeridade inaudita.

Quem era o cavaleiro, ou antes, quem eram os cavaleiros, já o leitor, de certeza, o terá imaginado. E como Lourenço pôde haver à mão aquele meio de transporte, fácil nos será também conjecturar, mormente se nos lembrarmos de que ele havia transmitido, muito antes, as suas ordens ao arrais João.

Apearam-se no cais. Beatriz, quase desmaiada, dando apenas acordo de si, foi conduzida ao escaler nos braços de Lourenço, que a envolveu solicitamente no seu xale-manta, para evitar que sua melindrosa saúde, de algum modo, se alterasse com os rigores do tempo e intempéries da estação.

O escaler, depois, remou ao largo e foi atracar a um brigue, que estava ancorado, defronte da torre de Belém, para onde Beatriz foi levada, a custo, com o salutar auxílio de Lourenço Viegas. Daí a duas horas, já o navio se fazia de vela, com destino a Nova Iorque.

Mas, enfim, é tempo de sabermos quem são estes dois personagens, — dir-nos-á a amável leitora, já um tanto agrilhoada por desesperadora curiosidade.

Pois tem v. exa. muita razão, minha senhora. E para o que vou procurar, desde já, sanar este inconveniente, apresentando, o mais ligeiramente possível, a fotografia dos nossos viajantes.

Lourenço Viegas era bacharel formado em direito pela Universidade de Coimbra e exercia, há dois anos, um lugar de professorado em Lisboa. Procurando debalde obter a mão de sua adorada Beatriz, filha única do abastado lavrador — José de Brites Lencastre Serrão —, Lourenço resolveu-se, por fim, a sacrificar toda a sua vida e paz de espírito, intentando o rapto daquela angélica sabina, em que se estreou evidentemente feliz, como acabamos de ver.

Beatriz, que, a princípio, vacilara em aceitar a temerária e audaz proposta do exímio professor, não pôde abafar, mais tarde, o grito espontâneo do seu apaixonado coração, consentindo, de boa mente, nos sinistros desejos de tão aleivoso amante.

Eis aqui, pois, como, por uma natural coincidência, nos foi lícito assistir aquele espetáculo, deveras comovente e fatal para ambos, que, ainda há pouco, vimos ser representado dentro dos muros da vila de Almada.

Chegado que foi à América, Lourenço procurou logo empregar-se; e conseguiu efetivamente uma posição modesta e decente, sobejamente capaz para antecipar toda e qualquer eventualidade, que, inopinadamente, lhe pudesse sobrevir pelo decorrer dos anos.

A saúde, porém, não lhe fora de todo favorável, sob a influência daquele clima. Por isso, ao cabo de alguns meses, jazia ele enfermo, no leito da desgraça e da miséria.

Beatriz bem lhe quis valer com o seu trabalho, é verdade. Mas, coitada!... Como poderia ela fazer, se todo o tempo lhe era pouco para velar pelo moribundo e saudoso amante?

Portanto, quando Lourenço obteve algumas melhoras, os seus recursos estavam completamente esgotados. Era dolorosa a posição daquele desventurado! As suas forças mal lhe consentiam ainda qualquer gênero de trabalho, por menos violento que ele fosse.

Um dia, Beatriz, após ter vendido e sacrificado tudo o que possuía de seu, lembrou-se de apelar para a ação da caridade pública, como único e verdadeiro recurso no extremo daquela aterradora indigência. Lourenço, porém, apenas soube a fatal nova de que os alimentos, que ela lhe ministrava diariamente, com tanta bondade e doçura, eram colhidos de porta em porta, mediante as suas lágrimas e contristante humilhação, não ousou suportá-los por mais tempo.

Daí em diante, tudo o que ela podia trazer-lhe para alentar o seu vigor físico e robustez intelectual era arremessado à rua irremissivelmente. Nunca o seu orgulho e independência poderiam conceder tal baixeza e opróbrio à mulher que ele desejara por esposa. Desde então, o tédio começou a apossar-se violentamente de seu angustiado espírito, e Beatriz, a seus olhos, tornara-se um ente desprezível e vil.

Assim, pois, neste estado atrofiante e sensibilizador, pensou ele muitas e longas horas. A loucura parecia dominá-lo fortemente. E já não havia de valer-lhe, talvez, se, por acaso, uma circunstância imprevista, o não obrigasse subitamente a abandonar aquela imobilidade e desoladora situação, em que, mau grado seu, o haviam encerrado suas forças e abominável desesperança.

Por um acaso inexplicável de manifesta loucura, Lourenço Viegas não pôde mais prolongar a febre vertiginosa, que lhe abrasava a mente enlouquecida: levantou-se de salto, como se o desespero, de súbito, lhe houvesse alentado o corpo, enervado pela doença, e aproximou-se de Beatriz, cujos cabelos beijou sofregamente:

— Ao menos, morrerás com o meu amor, anjo bendito do Senhor! — exclamava ele, afagando-lhe com delírio sua fronte mimosa.

Já não havia remédio que lhe pudesse abrandar o seu feroz instinto. Que valeriam as súplicas da pobre mulher, em face da hediondez daquele tigre asqueroso e repelente... se, minutos depois, ela tinha de jazer a seus pés, vítima expiatória de um pensamento infernal?!...

Consumou-se o sacrifício!...

Lourenço, cego de raiva, sem atinar mesmo com a enormidade do crime que praticara, deu-se pressa em fugir para terras longínquas, passando sempre incólume às mãos da polícia vigilante daquele país.

Decorridos alguns anos, voltava ele a Portugal, em demasia opulento, para poder granjear quaisquer desses títulos ou comendas, que tão malbaratados andam por este nosso malfadado país. Onde ele conseguira tão rápida transformação, isso ainda hoje passa como mistério insondável para todos os que o conheceram outrora pobre e sem meios de vida. Diziam alguns que ele se associara a uma quadrilha de bandidos na América do Sul; outros afirmavam ter sido roubada aquela fortuna a um abastado proprietário, ao serviço do qual ele se conservara por muito tempo.

Em conclusão, o que se sabe ao certo é que, estando ele um dia, muito descansado, pacificamente encostado ao portal de sua casa, respirando docemente as exalações fragrantes das mil florinhas, que, então, apenas começavam a vegetar, de súbito parou junto dele um vulto desconhecido, sopeando galhardamente um brioso e folgazão ginete.

— É o sr. Lourenço Viegas a quem tenho a honra de falar? — dizia o cavaleiro, dirigindo-se para ele com delicadeza e urbanidade.

— Um seu humilde servo. — replicou Lourenço, admirado.

— Pois, senhor, saiba que aproveito esta ocasião para vir pagar-lhe uma dívida antiga, que até hoje não tenho podido satisfazer.

— Uma dívida?!... A mim?! Isso há de ser engano, forçosamente. Creio que v. sa. nada me deve.

— Pois saiba mais que me chamo José de Brites Lencastre Serrão, e que tinha uma única filha chamada Beatriz, a quem um infame assassinou e roubou para sempre aos meus carinhos e afeições.

Palavras não eram ditas, e já Lourenço Viegas caía moribundo no chão com um tiro de bacamarte, que lhe varara o peito de lado a lado.

Lourenço caiu exclamando: — Mataram-me!... Fez-se a justiça de Deus!...

Quando, algumas horas depois, acorreu a gente da terra aquele sítio, já ele havia exalado o ultimo suspiro.

No dia imediato alguns dos seus poucos amigos conseguiram, a grandes rogos, que o pároco da freguesia desse o seu consentimento para ele ser sepultado no adro da igreja.

Hoje a sua lousa jaz quase ignorada. Algumas florzinhas solitárias, que derramam aromas nas horas do crepúsculo, ou quando muito um cipreste erguendo-se melancólico e severo, com as cores sombrias e esverdeadas da sua eterna primavera, e uma cruz silenciosa e triste indicando que ali repousam os ossos de um desgraçado!… 
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Sebastião de Magalhães Lima nasceu em Santos/SP em 1850 e faleceu em Lisboa/Portugal em 1928. Foi advogado, jornalista, político, escritor, fundador da Liga Portuguesa dos Direitos do Homem e dos jornais "O Século" e "Comércio de Portugal". Republicano, maçon e pioneiro do socialismo português, fez parte da Geração de 70 e dirigiu os periódicos republicanos "A Folha do Povo" e "A Vanguarda". Em 1909 foi indicado para o Prémio Nobel da Paz e em 1919 foi Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Foi grão-mestre do Grande Oriente Lusitano Unido, com o mais longo mandato na história maçónica portuguesa, de 1907 até 1928. Magalhães Lima estreou-se como escritor publicando, durante os seus anos iniciais de estudo em Coimbra, um conjunto de obras de pendor romântico, com títulos como Miniaturas românticas, Martírio de um anjo, Amour et Champagne ou Um drama íntimo. Tais obras, inseridas na corrente tardia do romantismo português, não faziam adivinhar o apologista do republicanismo revolucionário em que o seu jovem autor se transformaria.

Fontes:
Sebastião de Magalhães Lima. Miniaturas românticas. Publicado originalmente em 1871. Disponível em Domínio Público.  
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sábado, 1 de novembro de 2025

Autor desconhecido (Clementine)

(recolhi este texto do facebook, intitulado “Vivendo na Baixada”, mas não consegui localizar o nome do/a autor/a para lhe dar o devido crédito)


Ela estava deitada quieta na beira da calçada, sua cabeça gentilmente assentada no concreto frio, seus olhos meio fechados, como se o sono tivesse finalmente alcançado com ela.

Mas ela não dormiu. A verdade era muito mais cruel - ela estava exausta de tentar sobreviver por muito tempo.

Seu pequeno corpo, embora marcado por belos pontos pretos, alaranjados e brancos, não podia mais esconder a extensão de seu sofrimento.

Cada carro que passava fazia o chão ao lado dela tremer – mas ela não se movia.

Ela compreendeu há muito tempo que o mundo não fica parado para gatos como ela.

As pessoas passavam, davam-lhe um vislumbre e continuavam o seu caminho.

Para ela era apenas mais um gato de rua - mais uma sombra na imagem de um mundo apressado e indiferente.

Mas algo nela me fez parar.

Talvez fosse a maneira como ela se encolhia - como se quisesse proteger algo que não estava por perto há muito tempo.

Ou o sopro quieto, como se ela tivesse medo de que mesmo sua existência fosse demais.

Eu me ajoelhei ao lado dela, com muito cuidado para não assustá-la. Ela não se moveu.

Seus olhos se abriram, apenas um pouco.

Um estava preso, o outro olhou para mim sem medo – Não porque ela confiava em mim, mas porque ela não tinha mais nada a temer.

Sussurrei em silêncio e perguntei se ela estava bem, mesmo sabendo a resposta.

Ela não miou. Ela não ronronou. Ela piscou lentamente, como se dissesse:

– Onde você estava quando eu ainda tinha esperança?

Ao olhar mais de perto, vi suas costelas salientes sob o pelo emaciado.

Suas patas estavam rachadas e doloridas. Ela provavelmente não tinha comido nada por dias.
Mas pior que a fome era a solidão.

Ela não era apenas um gato abandonado - ela era uma alma esquecida.

Um ser vivo esperando por uma bondade que nunca veio.

Ofereci-lhe um pedaço de frango do meu almoço.

Ela sentiu o cheiro, olhou para mim.

Ela levou um minuto inteiro para ousar – não por ganância, mas por dúvida.

Ela sequer se lembrou de como era a ternura?

Quando ela finalmente começou a comer, foi lento e hesitante. Como se seu corpo tivesse esquecido o que era receber comida.

Fiquei com ela por uma hora ali mesmo sem tocar nela, sem forçar a confiança.

E quando me levantei para sair, ela levantou a cabeça.

Ela não me seguiu. Ela não chorou.

Mas seu olhar me fez uma pergunta que nunca esquecerei:

– Você está indo agora também? 

Não consegui dormir bem naquela noite. A foto dela não me deixou ir.

Na manhã seguinte voltei.

Ela ainda estava lá - no mesmo lugar, na mesma posição, inclinando a cabeça contra a pedra fria como se fosse tudo o que lhe restasse.

Mas desta vez ela levantou a cabeça quando me viu.

Desta vez ela se levantou - fracamente - e deu alguns passos cambaleantes em minha direção.
Embrulhei-a numa toalha e levei-a para casa.

O veterinário disse que ela estava desidratada e anêmica, presumivelmente de frio e fome. Tudo o que precisava era tempo, comida e amor – algo que ela tinha sido negada por muito tempo.

Eu a chamei de Clementine, por causa da gentileza que ela mantinha apesar de toda sua dor.

As semanas passavam. Seu pelo tornou-se macio novamente.

Seus olhos recuperaram seu brilho.

E quando ela ronronou pela primeira vez, eu chorei.

Ela tinha sobrevivido ao abandono, as noites geladas, a fome, a dor. Mas agora ela tinha algo que nunca tinha tido: Uma razão para viver.

Então, se um dia você ver um gato amontoado na beira da estrada, não olhe para longe. Porque às vezes eles não dormem. Às vezes eles silenciosamente suplicam que alguém reconheça que eles ainda estão vivos.

Fonte:

Nilto Maciel (Pândegas e peripécias)


Fazíamos bagunça o tempo todo. Até durante as aulas. Turma maravilhosa, alegre, inteligente: Severiano, Edinardo, Jonas, Vicente, Célio, Osvaldo e outros. O primeiro, apesar de baixinho, moreno, narigudo, magrinho, exercia sobre os colegas grande influência. Parecia o mais experiente: fumava, bebia, conhecia mulheres, cantava e, sobretudo, viera de outra cidade. Vivia na casa de uma irmã casada com o gerente do Banco do Brasil, e isso lhe dava mais ares de superioridade. Meu irmão morreu aos 32 anos, num acidente automobilístico, em Salvador. O terceiro enlouqueceu. Desde menino já falava rindo, articulava mal as palavras, não queria estudar. Vicente, seu irmão mais novo, tornou-se militar. Célio ria de tudo, sem nunca brigar com ninguém. Um de seus irmãos, Lívio, que estudara conosco, morreu ainda adolescente, afogado, num rio. Osvaldo, magrelo, cabeçudo, falava macio e baixo.

Nossa vida parecia uma contínua pândega. Não ouvíamos os professores. Ora coaxávamos, ora cricrilávamos, ora urrávamos. E lançávamos bolotas de papel às cabeças dos mestres. Um dos castigos consistia na expulsão do insubordinado da sala. Não só isso: deveria permanecer de pé, até o término das aulas do dia, diante de uma das colunas internas do edifício.

Certa feita recebemos castigo mais enérgico. Fomos proibidos de frequentar as aulas durante uma semana. Ou praticamos travessuras em demasia, ou o professor e o diretor quiseram dar um basta naquilo.

Durante toda a semana agimos como se nada tivesse acontecido. Acordávamos à mesma hora de sempre, vestíamos o uniforme, pegávamos livros e cadernos, e seguíamos rumo à escola. Diante do portão, despedíamo-nos dos colegas e seguíamos para cá e para lá. Íamos ao Potiú, o bairro das prostitutas, às Lajes, ao cemitério, aos arredores da pequena cidade. No terceiro dia, já não havia mais para onde ir. Além disso, a qualquer momento seríamos reconhecidos. E nossos pais não poderiam saber daquilo.

Num desses dias, resolvemos subir a serra. Ir aos Jesuítas, como chamávamos o sítio onde se situava a antiga Escola Apostólica dos Jesuítas de Baturité. Só assim passaríamos mais facilmente outra manhã. Pois andávamos então feito fugitivos, amedrontados, vendo "inimigos" por todos os lados. No meio do caminho tivemos a sorte de encontrar um ônibus. Pedimos carona. Nele iam estudantes conhecer a escola jesuítica. Contamos algumas mentiras e, assim, passamos mais uma manhã.

Levando vida tão voltada para o descaso pelos estudos, nenhum de nós poderia ter sido aprovado. Porém, eu lia tudo, adorava as fábulas latinas, gostava de francês. É dessa época minha dedicação aos livros, à literatura. Por mais que parecesse um garoto estroina. Ora, enquanto ria da cara do professor de geografia, lia com sisudez trechos de Garret, Herculano, Camilo e outros. E compunha sonetos líricos.

É também desse tempo as noitadas num banco da Praça de Santa Luzia. Reuníamo-nos três ou mais amigos, após o jantar, para conversar e cantar. Organizava esses encontros Severiano. Cantávamos, sobretudo, as canções gravadas por Nelson Gonçalves. Especialmente, "A flor do meu bairro". Severiano morria de paixão por uma garota que morava num bangalô bem diante daquele banco. Ela, porém, nunca aparecia à janela. Parecia viver prisioneira na casa. Como as princesas dos contos de fadas, presas em castelos, nas torres.

Quando as portas e janelas das casas iam se fechando e só restavam nossas vozes na rua, voltávamos para nossas casas. Na noite seguinte, voltávamos ao banco da praça, para recordar as peripécias do dia no colégio, planejar outras maluquices e cantar sambas-canções e boleros.
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Nilto Maciel nasceu em Baturité/CE em 1945. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Em parceria com outros escritores, no ano de 1976 criou a revista Saco. Transferiu-se no ano seguinte para Brasília, trabalhando na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Em 2002 foi para Fortaleza/CE onde residiu até a sua morte em 2014. Venceu inúmeros concursos literários, e escreveu diversos livros, tendo contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. Além de contos e romances publicados, também Panorama do Conto Cearense, Contistas do Ceará, Literatura Fantástica no Brasil. Alguns livros publicados: Contos Reunidos vol. I, são os 66 contos escritos por Nilto em seus livros Itinerário (1974 a 1990), Tempos de Mula Preta (1981 a 2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). O volume II conta com 122 contos dos livros As Insolentes patas do cão (1991), Babel (1997) e Pescoço de Girafa na Poeira (1999). 
“Nilto possui esta capacidade de fazer com que nossas almas percorram desde um estado de profunda tristeza ao de êxtase. Não é apenas um escritor, são muitos escritores dentro de um só. A cada conto terminado, aflora o anseio pelo próximo. Aonde Nilto nos conduzirá agora? Cada conto é um conto, que faz com que nossa imaginação nos leve às vezes a adentrar dentro dele e participar, deixando que nos levemos pelo seu encanto, pela sua linguagem simples e deliciosa.” (José Feldman, em Nilto Maciel o mago das almas, 18/12/2010)

Fontes: 
http://www.niltomaciel.net.br/226.htm (site desativado)
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing