quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Luís da Câmara Cascudo (Os Três Companheiros)

Um bombeiro, um soldador e um ladrão eram muito amigos e resolveram viajar por este mundo para melhorar a vida. Tinham eles um cavalo encantado que respondia todas as perguntas.

Chegaram a um reinado onde toda a gente estava triste porque a princesa fora furtada por uma serpente que morava no fundo do mar. Os três companheiros acharam que podiam fazer essa façanha e consultaram o cavalo. 

Este mandou o soldador fazer um bote de folha de flandres. Meteram-se nele e fizeram-se de vela.

Depois de muito navegar, deram num ponto que era o palácio da serpente. Quem ia descer? O bombeiro não quis nem o soldador. O ladrão agarrou-se na corda que os outros seguravam e lá se foi para baixo. Pisando chão, viu um palácio enorme guardado por uma serpente que estava de boca aberta.

O ladrão subiu depressa, morrendo de medo. Voltaram e foram perguntar ao cavalo o que era possível fazer. O cavalo ensinou que a serpente dormia de boca aberta e quando estava acordada ficava com a boca fechada. Debaixo da cauda tinha a chave do palácio. Quem tirasse a chave, abrisse a porta, encontrava logo a princesa. 

Os três amigos tomaram o bote de folha de flandres e lá se foram para o mar.

Chegando no ponto os dois não queriam descer. O ladrão desceu e, como estava habituado, furtou a chave tão de mansinho que a serpente não acordou. Abriu a porta, entrou, foi ao salão, encontrou a princesa, disse que vinha buscá-la e saíram os dois até a corda. Agarraram-se e os dois puxaram para cima. Largaram vela e o bote navegou para a terra.

Quando estavam no meio dos mares a serpente apareceu em cima d’água, que vinha feroz. 

Que se faz? Era a morte certa.

– Deixa vir – disse o bombeiro.

Quando a serpente chegou mais para perto, o bombeiro tirou uma bomba e jogou em cima da serpente. A bomba estourou e a serpente virou bagaço. 

Na luta, o bote furou e a água estava entrando de mais a mais, ameaçando ir tudo para o fundo do mar. 

Que se faz? Morte certa!

– Deixe comigo – disse o soldador.

Tirou seus ferros e soldou todos os buracos e o bote navegou a salvamento até a praia.

Chegaram no reinado recebidos com muitas festas pelo rei e pelo povo. O rei deu muito dinheiro aos três, mas o ladrão, o bombeiro e o soldador queriam casar com a princesa.

– Se não fosse eu a princesa estava com a serpente! – dizia o ladrão.

– Se não fosse eu a serpente devorava todos! – dizia o bombeiro.

– Se não fosse eu iam todos para o fundo do mar! – dizia o soldador.

Discute e discute, briga e briga, finalmente a princesa escolheu o ladrão, que era seu salvador, e este pagou muito dinheiro aos dois companheiros. O ladrão casou e mudou de vida e todos viveram satisfeitos.
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Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.

Fontes:
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Arthur Thomaz ( Conto rimado samba-canção)


Por volta dos anos 50.
Juca, nascido no Jardim de Alah,
muito querido pela turma de cá e de lá.
Moreno bonito, de olho azul,
criado solto nas praias da Zona Sul.

Do mar, atraía até as sereias, quando ao entardecer tocava e cantava nas areias.

Um dia, movido pela curiosidade, subiu ao morro decidido.

Levava nas mãos o violão, sendo por isso acolhido com empolgação.

Negra Zezete, que nos quadris parecia ter fogo, consciente de que a sedução é um jogo, dançava entre todos, exuberante, em seu gingado confiante.

Aos mestres, ele, certo dia, pediu licença para tocar e cantar uma melodia.

Para ela, então, olhou, e transbordando de paixão, seu violão dedilhou.

Os acordes envolveram sua alma e ela, com calma, retomou a dança, com seus quadris se remexendo, já algo lhe prometendo.

Aplaudido sem parar, foi convidado a sempre retornar.

E assim fez, já com alguma altivez de bom sambista, sonhando e já por ela tendo algo em vista.

Cada vez que ao morro subia, um novo samba ele trazia.

Só de lembrar de Zezete, ele compunha, no mínimo, mais sete.

Empolgado por um gole da mais pura caninha, uma noite, mesmo embaraçado, convidou-a para dançar um sambinha.

Saltou aos olhos de todos a enorme atração entre os dois e tiveram, então, a total confirmação.

Tonho de Jesus, o namorado da ocasião, para ao nome fazer jus, notando o preferido e sentindo-se preterido, daquilo não fechou questão, abençoou a nova união e disso fez a letra de um lindo samba-canção.
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Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, publicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Asas da Poesia * 126 *


Poema de
VALÉRIA BRAZ
Florianópolis/SC

Fronteiras da vida

Vejo multidões desembarcarem
De um voo que não é eterno
Com seus corações vagando
Em dúvidas...

Seus pés percorrem
Os caminhos da incerteza
Seus corpos se entregam ao cansaço
Mas seus olhos vívidos e alegres...

Afinal são tantos os sonhos
Que ainda vão desvendar
Mal sabem que desembarcaram
Na mais extravagante
E inusitada estação
A vida!

Ela que nos faz
Vibrar de emoção
Lutar para não cair
Sorrir ao entardecer
Sonhar ao anoitecer
Acordar ao amanhecer...

Mas um dia a viagem
Chega ao fim
Tomamos um voo
Sem data de volta
E levamos tudo
Em fotografia mnemônica
Das lutas e alegrias
Da viagem as fronteiras da vida!
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Soneto de
PADRE ANTONIO THOMAZ
(Padre Antônio Thomaz Lourenço)
Acaraú/CE, 1868 – 1941, Fortaleza/CE+

Contraste

Quando partimos no verdor dos anos,
Da vida pela estrada florescente,
As esperanças vão conosco à frente,
E vão ficando atrás os desenganos.

Rindo e cantando, célebres, ufanos,
Vamos marchando descuidadosamente;
Eis que chega a velhice, de repente,
Desfazendo ilusões, matando enganos.

Então, nós enxergamos claramente
Como a existência é rápida e falaz,
E vemos que sucede, exatamente,

O contrário dos tempos de rapaz:
– Os desenganos vão conosco à frente,
E as esperanças vão ficando atrás.
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Poema de
ADA CIOCCI CURADO
Jardinópolis/SP 1916 – 1999 Goiânia/GO+

Ode à Palavra

O tempo jamais conseguirá desfazer
a essência de tua fortaleza,
já que és do cosmo absoluto

e
da troca de ideias entre os homens,
o fundamento.
E, ainda que,
bastando-se,
e,
infinitamente sendo tu,
realidade,
verdade,
ciência,
alma,
corpo,
dogma,
mito,
e,
não tendo infinito,
ocupas lugar primeiro,
na VIDA
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Trova Popular

Há umas espécies de plantas
que vingam sem ter raízes...
Assim são certos sorrisos
nos lábios dos infelizes.
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Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Vidas

Nós vivemos num mundo de espelhos,
mas os espelhos roubam nossa imagem...
Quando eles se partirem numa infinidade de estilhos
seremos apenas pó tapetando a paisagem.

Homens virão, porém, de algum mundo selvagem
e, com estes brilhantes destroços de vidro,
nossas mulheres se adornarão, seus filhos
inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.

E não posso terminar a visão
porque ainda não terminou o soneto
e o tempo é uma tela que precisa ser tecida...

Mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida?
Que outro lábio canta, com a minha voz perdida,
nossa eterna primeira canção?!
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Poema de
RACHEL DE QUEIROZ
Fortaleza/CE, 1910 – 2003, Rio de Janeiro/RJ

Telha de Vidro

Quando a moça da cidade chegou,
veio morar na fazenda
na casa velha...
tão velha...
quem fez aquela casa foi seu bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
Mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha.
A moça não disse nada;
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro,
queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora
o quarto onde ela mora
e o quarto mais alegre da fazenda.
Tão clara que, ao meio-dia, aparece uma renda
de arabescos de sol nos ladrilhos vermelhos
que, apesar de tão velhos,
só agora conhecem a luz do dia...

A lua branca e fria
também se mete às vezes pelo claro
da telha milagrosa...
ou alguma estrelinha audaciosa
carateia no espelho onde a moça se penteia...
Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta, fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você não experimenta?
A moça foi tão bem sucedida?
Ponha uma telha de vidro em sua vida!
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Soneto de 
ANTÔNIO OLIVEIRA PENA
Volta Redonda/RJ

Curso d’água

Serve ao amigo, e mesmo ao inimigo,
e a Deus é que estarás servindo então;
dedica-te ao amor, de coração,
de maneira que estejas bem contigo!

No rosto abre um sorriso, dando abrigo
ao semelhante, e canta uma canção
cujos versos despertem a emoção —
canção da tua vida, meu amigo!

Não te exasperes nunca, sê paciente;
e constante, e honesto, e sê fiel
a tudo o que o espírito procura.

Seja a tua existência, sob o céu,
qual curso d’água fresca e transparente,
matando a sede a toda a criatura…
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Poema de
MÁRCIO CATUNDA
Fortaleza/CE

Elegia para José Alcides Pinto

Quando foi que rodopiaste ria catástrofe,
exorcista, dervixe dos dragões?
Quando nos demos o último abraço,
forjador de diabruras?
Místico desesperado,
quanto aprendi contigo!
Tua irreverência, tua marginalidade,
teu dom de transmitir sentimento.
Demônio iluminado,
o látego das horas te fustigava!
É que a vida te desafiava como uma trincheira.
O dispensário, o manicômio, as harpias,
tudo te obrigava a renunciar.
No entanto, insistias no ofício martirizante.
Nenhum discípulo esteve, como eu,
agrilhoado à terra em declínio.
Nenhum riu tanto contigo dos puritanos cínicos;
nem zombou da glória conquistada com festins,
nem abominou tanto os relógios de ponto
e a deslealdade.
Andei na tua trilha de eleito,
amolador de punhais.
A fatalidade foi a tua última travessura.
Peripécia trágica, na angústia do momento final.
Quanta vez me falaste da terrível abjeção!
Onde quer que estejas,
espera: irei à tua procura!
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Trova Funerária Cigana

Da terra voaste ao céu,
pra gozar a claridade:
– Pede, esposo, ao criador,
tenha de mim caridade.
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Soneto de 
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

Malogro

Intenta extravasar-se em verso ardente
a ânsia do sentir. Impetuosa...
Mas vejo que a palavra é impotente
e tem veracidade duvidosa.

Versos apócrifos — são meu presente
ao papel onde quero, em verso ou prosa,
retratar a minha alma, ardentemente,
da forma como em mim apoteosa.

Tortura-me, no entanto, a rima ausente...
Outro canto, outra luz, inutilmente
vou tenteando em minha busca ansiosa.

Descubro que querer tornar patente
este universo que há dentro da gente
é uma ação sempre falha e lacunosa.,.
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Poema de 
KIDENIRO TEIXEIRA
(Kideniro Flaviano Teixeira)
Ipueiras/CE, 1908 – 2008, Santa Quitéria/CE+

A minha mestra     

          "Possa ao menos sentir tua presença
          nestes versos que escrevo, amargurado,
          ante a profunda, ante a sombria e imensa
          saudade de teu vulto idolatrado."
                    Homero de Miranda Leão

 Foi minha mãe a minha Mestra
que me ensinou a ler, em nosso humilde ninho;
eu era um menininho,
uma criança...
De minha mãe, exímia trovadora,
é de quem guardo esta divina herança.

Recordo agora,
que a sua voz se erguia,
branda e sonora,
como se fosse um sino
tangendo na alvorada fria
do meu Destino:

- Lê! Estuda! Lê, menino!
Era este o heroico estribilho
de cada dia:
- Lê! Estuda! Lê, meu filho!

Como era bela a minha Professora,
no seu vestidinho branco!
O coque alto, olhos castanhos
e esguias mãos da Virgem Redentora!
 
Somente agora sinto, e guardo, e tranco
no peito esta saudade imorredoura,
como se ouvisse. ainda. a sua voz sonora:
- Lê! Estuda! Lê, meu filho!

E eu que jamais velara o meu Destino,
quanto sofro e me deploro
para cantar minha procela...

E nem sabia, que um dia,
eu sentiria,
tanta saudade dela!
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Soneto de
HEGEL PONTES
Juiz de Fora/MG (1932 – 2012)

Amor adolescente

Esta noite, meu bem, foi tão comprida
e tão sem graça foi a madrugada,
que eu senti que você é minha vida
e a vida sem você não vale nada.

Mas é tarde demais. A despedida
é como a pedra que já foi lançada:
mesmo partindo da pessoa amada,
nunca mais poderá ser recolhida.

Tudo acabado: os sonhos que sonhei,
seu amor, seu carinho e seu desvelo…
E esta noite, meu bem, foi tão comprida,

que dei graças a Deus quando acordei
e percebi, após o pesadelo,
que entre nós dois nunca houve despedida.
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Hino de 
Nova Tebas/PR

Entre vales e a planície verdejante
Na região mais fecunda que há
Nova Tebas cresce altiva e pujante
Para orgulho deste povo do meu Paraná
Já nasceste com um destino grandioso
E as bênçãos de São Pedro teu protetor
É tão rico o teu solo generoso
Onde a prece permanente é o labor

(Estribilho)
És celeiro a brotar riquezas mil
Neste recanto feliz do meu Brasil
Nova Tebas minha vida é bem querer
Sou teu filho e só por ti quero viver

A riqueza dos teus verdes cafezais
E a beleza destes rios a irrigar
O ouro branco de teus algodoais
Ornamentam estas glebas que eu sempre hei de amar
Ser teu filho para mim é uma glória
Que será eterna em meu coração
Siga firme pela estrada da vitória
Nova Tebas meu querido torrão.
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Cordel de 
TICIANA SALES
Fortaleza/CE

Cordel de cearense

Em um tempo de fartura
O sertão hoje é guia
O contraste da labuta
Ainda existe, é primazia.

Há quem acredite no discurso
Que o sul a ele prometeu
Ôh sertão não chore não
Nessa terra de meu Deus.

Toda seca se transforma
A gaivota um dia volta
Pra essa terra abençoada
De cantoria e gente que não falta.

O nordeste venceu a seca
Quem disse que no sul ela não chega
A rachadura não é seu fim
Triste de quem pensar assim.

Nordeste de gente trabalhadora
Intelectuais que não precisam de apresentação
José de Alencar e Patativa do Assaré
Nomes graúdos e cheios de boa fé.

Nordeste não é sinônimo de seca
No sertão, água também lá chega
A cheia atravessa o luar
Vindo dos céus e não encontra o mar.

Tomara que toda gente saiba
Que o nordeste não é calamidade
Aqui tem gente de muita coragem
Que sobrevive além da miragem.

Cearense de povo apaziguador
Nas veias, trazendo o humor
Um dia desses deram uma vaia pro sol
Tangeram a seca, buscaram orós!

Eu como boa cearense que sou
Demonstro meu profundo e louco amor
A essa terra que milagre faz
Ceará, nordeste, sertão nunca mais!
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O depositário infiel

Um que traficava em ferro,
Indo meter-se a caminho,
Deu a guardar a um vizinho
Vinte barras, salvo erro.

Voltando breve, reclama
O ferro com modos gratos;
O marau — que seu lhe chama —
Diz que o roeram os ratos.

Crer na léria mal traçada
Finge o do ferro, patrão,
Pois logo a levou fisgada
Em dar ensino ao ladrão.

Não sofro patifarias!»
Disse ele lá para si.
Deixou passar alguns dias,
Não sei quantos; — vai daí,

Tendo apanhado e escondido
Do vizinho um filho coxo,
Diz-lhe que ele tinha sido
Engolido por um mocho.

«Pode lá ser!... Nisso há erro!
Não quero crer no que avanças!
— Onde ratos roem ferro,
Mochos engolem crianças!»

E o que quis ferrar o mono,
Para ter o filho à mão,
Deu logo o ferro a seu dono,
Aproveitando a lição.
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Contos das Mil e Uma Noites (Embustes de uma mulher)


Conta-se, ó afortunado rei, que havia uma jovem senhora da nobreza cujo marido estava sempre viajando para perto e para longe. Com o tempo, a tentação da carne tornou-se irresistível, e um jovem de lindas proporções estava lá para tornar a tentação ainda mais poderosa. Amaram-se com intensidade e satisfizeram-se mutuamente com alegria, levantando-se para comer, comendo para deitar, deitando para fornicar. 

Um dia, o jovem entrou numa briga, e o uáli mandou encarcerá-lo. Ao saber disto, a mulher se enfureceu e concebeu um plano audacioso para libertá-lo. Vestiu-se e enfeitou-se com o máximo requinte, e solicitou e obteve uma audiência com o uáli (governador de província). 

Após saudá-lo, disse: “Ó meu senhor uáli, amo de todos nós, o tal jovem que mandaste encarcerar é meu irmão e o único sustento da família. Seu acusador é um patife, e as testemunhas prestaram falso testemunho. Vim solicitar-te a sua libertação. Se recusares meu pedido, a nossa casa cairá em ruínas e eu morrerei de fome.” 

O uáli sentiu seu coração e seu corpo violentamente agitados pela beleza da mulher. Respondeu: “Estou disposto a libertar teu irmão em certas condições. Vai agora para minha casa. Quando as audiências terminarem, irei conversar contigo sobre o assunto”.

Compreendendo o que o uáli queria, a moça disse consigo mesma: “Juro por Alá, ó barba suja, que jamais tocarás em mim nem mesmo na eternidade”.

Mas em voz alta disse: “Ó meu senhor uáli, não seria melhor que viesses à minha casa onde poderemos conversar mais à vontade? Pois ir para tua casa me constrangeria demais”. 

- E onde fica a tua casa? perguntou o uáli. 

- Na rua tal e tal. Esperar-te-ei esta tarde ao pôr-do-sol. E saiu, deixando o uáli numa deliciosa expectativa. 

Foi então ao cádi (juiz), que era um velho caduco, e disse-lhe: “Ó meu senhor cádi, rogo-te baixar os olhos da justiça sobre minha causa.” 

“Quem te oprimiu?” perguntou o cádi. 

- Um malvado, um velhaco que levou meu irmão, único sustento de minha família, para a cadeia com falsas testemunhas. Rogo-te interceder por mim para que meu irmão seja libertado. 

Ao ver e ouvir a mulher, o cádi sentiu despertarem nele desejos que pareciam mortos. Respondeu: “Cuidarei pessoalmente do caso de teu irmão. Vai agora para o harém de minha casa. Irei procurar-te assim que sair daqui, e conversaremos. Tudo farei para atender a teu pedido.” 

“Canalha!” disse a mulher consigo mesma. “Nem no Dia do Julgamento deixarei um caduco como tu possuir-me.” 

E acrescentou em alta voz: “Ó amado mestre, não será melhor esperar-te na minha casa onde ninguém nos perturbará?” 

- E onde fica a tua casa? 

A moça indicou-lhe o endereço e acrescentou: “Esperar-te-ei hoje momentos depois do pôr-do-sol.” 

De lá, foi ao ministro do rei e repetiu as mesmas alegações. 

- A coisa é fácil, disse o ministro. No entanto, vai agora até o harém de minha casa. Irei procurar-te, e conversaremos a respeito.  

- Pela vida de tua cabeça, ó meu amo, respondeu a moça. Sou uma mulher tímida e não teria a coragem de ir até teu harém. Minha casa é mais apropriada para nossa conversa. Esperar-te-ei hoje mesmo uma hora após o pôr-do-sol. 

Deu-lhe o endereço e foi ao palácio do rei. Mal a viu, o rei maravilhou-se com sua beleza e disse consigo mesmo: “Por Alá , este é um prato a ser devorado quente.” 

Depois, perguntou-lhe: “Que queres de mim? Alguém te oprimiu?” 

- Não pode haver opressão enquanto viver nosso amo o rei. 

- Em que posso ajudar-te? 

- Dando-me uma ordem para a libertação de meu irmão. Foi encarcerado pela iniquidade de um malandro e de umas falsas testemunhas. 

- A coisa é fácil, disse o rei. Vai espera-me no meu harém, minha filha. A justiça seguirá seu curso. 

- Neste caso, aventurou-se a responder, não será preferível esperar Vossa Majestade na minha casa? Vossa Majestade sabe que tal conversação requer diversos preparativos: banho, perfumes e tudo mais. Poderei tomar essas providências mais facilmente em minha casa, que passará a ser, a partir desta noite, um verdadeiro palácio digno de receber Vossa Majestade tantas vezes quantas quiser. 

- Seja, disse o rei. 

Após entenderem-se sobre o lugar e a hora, a mulher foi procurar um carpinteiro e disse-lhe: “Quero que me mandes hoje mesmo no fim da tarde um armário com quatro compartimentos, um acima do outro. Cada um deve ter porta independente e boa fechadura.” 

- Por Alá, respondeu o carpinteiro, não conseguirei encarregá-lo hoje mesmo. 

- E se te pagar o que quiseres? 

- Neste caso, o armário estará pronto. E não quero por ele nem prata nem ouro, mas um certo favor que podes adivinhar. 

- Aceito, disse a moça. Mas neste caso, manda pôr cinco compartimentos no armário. E vem à minha casa esta noite após mandar entregar o armário, e conversaremos até a madrugada. 

Deu seu endereço ao carpinteiro e foi para casa. Arrumou cinco roupões de cores e cortes diferentes, preparou comidas e bebidas, encheu a casa de flores, banhou-se e perfumou-se e sentou-se à espera de seus convidados. 

No fim da tarde, o carregador do marceneiro entregou o armário, e ela mandou colocá-lo na sala de visitas. Logo em seguida, bateram à porta. Era o uáli. Sua anfitriã levantou-se em sua honra, beijou a terra entre suas mãos, convidou-o a sentar-se e ofereceu-lhe refrescos. Ele quis abraçá-la imediatamente, mas ela se afastou com jeito, dizendo: “Vamos fazer a coisa com refinamento, meu amo. Não gostarias de tirar a roupa, primeiro, para ficar mais livre em teus movimentos?” 

O uáli concordou, encantado, e pôs um dos roupões, que a moça lhe apresentou. Logo, porém, ouviu-se bater à porta. 

– Estás esperando alguém? perguntou o uáli de mau humor. 

Ela respondeu, fingindo terror: “Por Alá, não. Mas havia esquecido que meu marido vinha para casa esta noite. É com certeza ele que está batendo à porta.” 

– Que iremos fazer? Perguntou o uáli, perturbado. Que será de mim? 

- Não te preocupes. Ele não demorará a sair de novo. Deixa-me esconder-te neste armário. Abriu o compartimento mais baixo e obrigou o uáli a se acomodar nele, acocorado. Trancou o compartimento e foi abrir a porta. Era o cádi. Recebeu-o da mesma forma, convidando-o a se libertar da roupa e colocar um roupão. Assim que ele quis lançar-se sobre ela, deteve-o e perguntou: 

“Meu amo, escreveste a ordem para a libertação de meu irmão?” O cádi escreveu a ordem lá mesmo. A moça guardou a ordem e quis oferecer refrescos. Mas logo bateram à porta. 

- O que será? perguntou o cádi. Estás esperando visitas? 

- Por Alá, não. Deve ser meu marido, disse a mulher, fingindo estar aterrorizada, e obrigou o cádi a ocupar o segundo compartimento do armário. 

Trancou o compartimento e foi abrir a porta. Era o ministro. Foi tratado da mesma forma. O rei chegou por sua vez e teve que acomodar-se num compartimento onde, sendo gordo, quase quebrou os ossos e foi tomado de uma raiva surda. 

Enfim, chegou o carpinteiro e foi encarcerado no último compartimento de seu próprio armário. A moça levou então a ordem do juiz aos guardas da prisão, os quais libertaram-lhe o amante sem nada perguntar. 

Os dois voltaram para a casa da moça, e, para celebrar tantos eventos, se amaram lá mesmo, longa e demoradamente, e com bastante agitação e ruídos. 

Os cinco prisioneiros do armário tudo ouviam, mas nenhum deles ousou levantar a voz. Por fim, os dois amantes juntaram tudo que tinha valor na casa, inclusive as roupas magníficas dos altos dignitários. Venderam o restante e foram embora viver num outro reino. 

Dois dias depois, os cinco infelizes do armário foram tomados simultaneamente da necessidade de urinar. A urina do carpinteiro caiu sobre a cabeça do rei, a do rei sobre a cabeça do ministro, a do ministro sobre a cabeça do cádi e a do cádi sobre a cabeça do uáli. Todos, menos o rei e o carpinteiro, gritaram: “Que nojo!” 

O cádi reconheceu a voz do ministro, e o ministro, a voz do cádi. Disseram: “Felizmente, o rei escapou desta sujeira de aventura.” 

Mas o rei interveio: “Ficai quietos, eu também estou no armário.” 

Neste momento, o marido da mulher chegou da viagem. Entrou na casa e achou-a vazia. Ouvindo vozes humanas saindo do armário, supôs que eram Afarit (demônios). Chamou os vizinhos, e todos concordaram em pôr fogo no armário para acabar com os gênios. 

Ouvindo isso, o cádi chamou do interior do armário: “Boa gente, não somos nem Afarit nem assaltantes. Somos Fulano, Sicrano e Beltrano.” 

E contou como a mulher os tinha enganado. Os vizinhos quebraram as fechaduras do armário e encontraram cinco homens pálidos, acanhados e disfarçados em roupões esquisitos. Todos consolaram-se de sua desgraça, rindo e improvisando versos que falavam mal das mulheres. 

Disse o cádi: As mulheres são demônios que a vida nos impõe. Proteja-nos Alá das perfídias dos demônios. São elas as causas de todas as desgraças, tanto na vida mundana como na religiosa. 

O uáli fez-lhe eco: As mulheres, embora simulem a virtude, são como presas que as águias revolvem. Hoje dão-te seu corpo e suas juras. Mas amanhã, outro terá suas pernas e o resto, como o khan onde passas a noite, substituindo-te depois quem não conheces. 

O rei disse ao desolado marido: “Não te aflijas, pois nomeio-te meu segundo vizir.” 

Depois, mandaram buscar roupa decente e foram embora.
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As Mil e Uma Noites é uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. As histórias que compõem as Mil e uma noites têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe versão definitiva da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto de contos. O Imperador brasileiro Dom Pedro II foi o primeiro a traduzir diretamente do árabe para o português partes da obra mais conhecida da literatura árabe, e o fez com um rigor raro para a época. Já em idade avançada, aos 62 anos, ele começou o processo, o último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte.

O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como série de histórias em cadeia narrados por Xerazade, esposa do rei Xariar. Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando histórias maravilhosas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
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