Silvedora e Sezefredo se encontraram, se gostaram, se casaram, se enlearam num xodó de fazer medo.
Medo de os outros botarem mau olhado e o amor gorar, se reverter, se atrapalhar, desmastrear e súbito acabar. Mas não gorava não. Quanto mais passava o tempo, mais calor no assanhamento, mais amor no coração. Na primavera e no verão, também no outono e mais até no inverno, era aquele achegamento com juras de amor eterno.
Era de noite, de tarde, de manhã, de madrugada, toda hora para eles era hora de agarra-agarra, interminável saborosa farra, beijo no queixo, cosquinha no atrás-da-orelha, amor sem-pausa estava ali.
Só quando ele ia para o eito é que os dois se desjuntavam. Morantes num pé de serra, ia ele todo dia para o roçado, voltava embalado na hora do almoço e no fim da tarde, guloso dos carinhos dela, mais até que das gulodices da panela.
E a bóia era boa. A sopa de inhame, o caldo d'unto com taioba e couve, o feijão preto, a canjiquinha amarelinha, a costeleta de porco. Ele chegava de enxada no ombro, o corpo suado, um assobio na boca soprando dengosas modinhas, largava a tralha no terreiro e tibum no rio para o vespertino asseio. Silvedora já esperando com a roupa dele limpinha na mão, para as alegrias da noite.
Só eles os dois, e as estrelas no céu e um bicho ou outro piando nas redondezas. Depois da janta, a viola para a digestão. E zás de novo na cama, para a festa do amor-sem-fim.
Só que tem que mas porém Silvedora de repente embarrigou. Sezefredo e ela por uns tempos só pensavam no bebê. Que nasceu robusto e que na pia o nome de Ambrósio recebeu. Primogênito de uma ninhada de nove: três meninas e seis guapos garotões. Silvedora mal esvaziava e já de novo arredondava. Mas nem por isso o amor diminuía, antes pelo contrário mais crescia.
Até que deu aquela enchente doida. Trinta dias chovia sem parar. Dilúvio parecia. Da serra desciam grossas enxurradas levando as lavouras de arrasto. Era água de não mais acabar. O rio em frente da casa roncando, engordando, troncos batendo nas pedras, bichos do mato rolando embolados na correnteza, e não parava de chover.
Um estrondo na madrugada. Era o curral caindo. Sezefredo acordou num susto, viu o rio levando as vacas, puxando junto o galinheiro, o cavalo, as cabras. Só a casa deles ainda em pé, sustentada nas pilastras altas. Ilhados ali, viam as águas já entrando pelas portas, Silvedora e a criançada chorando, rezando, Sezefredo pra-lá-pra-cá com uma corda na mão.
O pé-de-manga tinha tronco forte, haveria de resistir. Pela janela atirou a corda, laçou um galho. O rio crescendo, rosnando. Sezefredo mandou as crianças se agarrarem na corda e subir na árvore. Mandou também Silvedora, que ainda conseguiu salvar-se a tempo.
Ele Sezefredo rodopiou águas abaixo misturado com os pedaços da casa. Paredes, soalhos, alicerces, telhado, móveis, panelas, todo o seu ninho engolido pelo furor da correnteza. As crianças e a mãe olhando do alto da árvore sem nada poder fazer.
Parou na manhã seguinte a chuva. Silvedora desceu com toda a ninhada. Nessas horas chorar não vale; é levantar a cabeça e enfrentar. Recomeçar. Reconstruir. Chegou todavia um recado.
– Dona Dora: é pra senhora preparar um feijãozinho aí, que Seu Fredo vem pro jantar. Ele mandou dizer que não morreu não. Salvou-se montado num pé-de-bananeira, mas engastalhou numa peroba e tá agora só esperando baixar mais um pouco o rio pra ele descer de lá.
No chão mesmo. Foi assim ele chegar e Sezefredo mais Silvedora mandaram as crianças sair de perto, e pimba num mata-saudade de dar gosto. Donde nasceu o nono fruto, chamado Pluvioso da Silva, que já encontrou a casa de novo erguida, a lavoura refeita, o curral e o galinheiro mais bonitos do que os que a enchente carregara.
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O poeta Antonio Augusto de Assis é membro da Academia de Letras de Maringá e considerado um dos maiores trovadores do Brasil
Esse conto foi premiado este ano (2008) em concurso nacional promovido pela Academia Niteroiense de Letras, em parceria com a Imprensa Oficial do Rio de Janeiro.
Fontes:
http://blogdodepaula.blogspot.com/
Imagem = http://presentepravoce.wordpress.com
Medo de os outros botarem mau olhado e o amor gorar, se reverter, se atrapalhar, desmastrear e súbito acabar. Mas não gorava não. Quanto mais passava o tempo, mais calor no assanhamento, mais amor no coração. Na primavera e no verão, também no outono e mais até no inverno, era aquele achegamento com juras de amor eterno.
Era de noite, de tarde, de manhã, de madrugada, toda hora para eles era hora de agarra-agarra, interminável saborosa farra, beijo no queixo, cosquinha no atrás-da-orelha, amor sem-pausa estava ali.
Só quando ele ia para o eito é que os dois se desjuntavam. Morantes num pé de serra, ia ele todo dia para o roçado, voltava embalado na hora do almoço e no fim da tarde, guloso dos carinhos dela, mais até que das gulodices da panela.
E a bóia era boa. A sopa de inhame, o caldo d'unto com taioba e couve, o feijão preto, a canjiquinha amarelinha, a costeleta de porco. Ele chegava de enxada no ombro, o corpo suado, um assobio na boca soprando dengosas modinhas, largava a tralha no terreiro e tibum no rio para o vespertino asseio. Silvedora já esperando com a roupa dele limpinha na mão, para as alegrias da noite.
Só eles os dois, e as estrelas no céu e um bicho ou outro piando nas redondezas. Depois da janta, a viola para a digestão. E zás de novo na cama, para a festa do amor-sem-fim.
Só que tem que mas porém Silvedora de repente embarrigou. Sezefredo e ela por uns tempos só pensavam no bebê. Que nasceu robusto e que na pia o nome de Ambrósio recebeu. Primogênito de uma ninhada de nove: três meninas e seis guapos garotões. Silvedora mal esvaziava e já de novo arredondava. Mas nem por isso o amor diminuía, antes pelo contrário mais crescia.
Até que deu aquela enchente doida. Trinta dias chovia sem parar. Dilúvio parecia. Da serra desciam grossas enxurradas levando as lavouras de arrasto. Era água de não mais acabar. O rio em frente da casa roncando, engordando, troncos batendo nas pedras, bichos do mato rolando embolados na correnteza, e não parava de chover.
Um estrondo na madrugada. Era o curral caindo. Sezefredo acordou num susto, viu o rio levando as vacas, puxando junto o galinheiro, o cavalo, as cabras. Só a casa deles ainda em pé, sustentada nas pilastras altas. Ilhados ali, viam as águas já entrando pelas portas, Silvedora e a criançada chorando, rezando, Sezefredo pra-lá-pra-cá com uma corda na mão.
O pé-de-manga tinha tronco forte, haveria de resistir. Pela janela atirou a corda, laçou um galho. O rio crescendo, rosnando. Sezefredo mandou as crianças se agarrarem na corda e subir na árvore. Mandou também Silvedora, que ainda conseguiu salvar-se a tempo.
Ele Sezefredo rodopiou águas abaixo misturado com os pedaços da casa. Paredes, soalhos, alicerces, telhado, móveis, panelas, todo o seu ninho engolido pelo furor da correnteza. As crianças e a mãe olhando do alto da árvore sem nada poder fazer.
Parou na manhã seguinte a chuva. Silvedora desceu com toda a ninhada. Nessas horas chorar não vale; é levantar a cabeça e enfrentar. Recomeçar. Reconstruir. Chegou todavia um recado.
– Dona Dora: é pra senhora preparar um feijãozinho aí, que Seu Fredo vem pro jantar. Ele mandou dizer que não morreu não. Salvou-se montado num pé-de-bananeira, mas engastalhou numa peroba e tá agora só esperando baixar mais um pouco o rio pra ele descer de lá.
No chão mesmo. Foi assim ele chegar e Sezefredo mais Silvedora mandaram as crianças sair de perto, e pimba num mata-saudade de dar gosto. Donde nasceu o nono fruto, chamado Pluvioso da Silva, que já encontrou a casa de novo erguida, a lavoura refeita, o curral e o galinheiro mais bonitos do que os que a enchente carregara.
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O poeta Antonio Augusto de Assis é membro da Academia de Letras de Maringá e considerado um dos maiores trovadores do Brasil
Esse conto foi premiado este ano (2008) em concurso nacional promovido pela Academia Niteroiense de Letras, em parceria com a Imprensa Oficial do Rio de Janeiro.
Fontes:
http://blogdodepaula.blogspot.com/
Imagem = http://presentepravoce.wordpress.com
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