segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Antonio Brasileiro (1944) Caldeirão Poético



ANOTAÇÕES DO IMEMORIADO

A consciência, fiapo de quê,
no mar da alma?

(E o ter que contar os meus segredos,
que eu mesmo guardei
e esqueci.)
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O SIM & OUTROS ACHAQUES

A vida inteira anulada
por falta de outros desígnios,

eis que voltamos ao parque
onde os homens se congregam:

ninguém jamais sabe ao certo
onde o sim das grandes aves,

singramos por mares mansos
que julgáramos esquecidos —

mas eis que a vida se perde
por falta de outros desígnios.

Ou não se perde: é só isto.
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NUANÇA

Meus caminhos, meus mapas,
meus caminhos.

Tudo está em ordem
em minha vida.

Como se faltasse
alguma coisa.
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CÁLICE

A vida não tem roteiros,
só velas que nos acenam
do mar.

Escuta, amiga,
o desfiar das horas:
elas te dirão é tua
é tua a vida.

Toma-a (como se toma
um cálice de rosas)
na mão.
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SONETO DO AMOR PROFANO

Não me consinta o amor tanta alegria,
pois, por não merecê-la, me constrange
o peito (já uma dor, não longe, me
sussurra que este amor sem agonias
não há de consentir em tanta graça),
eis que, perdidamente, já pressinto
— e quanto, e quanto — que em amor, perdidos
todos os lances, não há como obtê-lo
de outro modo que não por sacrifícios /
e eis que este, pois, gratuita dádiva,
me chega às mãos de um modo tão profano,
que quase certo estou de que, se o tenho,
já não o tenho por justo e dadivoso
mas por amor que é fruto só de engano.

E não me engana um amor quando enganoso.
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CEM ANOS

Vejo mãos que me folheiam
buscando-me a fisionomia —
mas já passei, agora
sou apenas poesia.

Vejo rostos que me amam
tentando saber quem fui —
sou um retrato, miragem
que o tempo dilui.

Vejo braços que me acenam
chamando-me insistentemente —
para que, se a folha que passa
passa tão de repente?
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CONCERTO P/ FLAUTA DE CANUDO DE MAMÃO

Vou cativar um beija-flor.
E sairemos por aí:
ele faz poesias, eu vôo.
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A NOITE DAS NOVE LUAS

Deixai-me com meus lírios e minhas luas.
Andar é sempre a mesma
luz
à frente.

Vou explodir com os planetas
vou seguir a rota das galáxias
ai amor
estou prestes a me dissolver
no ar.

Mas deixai-me com meus lírios
e interlúdios
nestes mares nunca mares calmos mares.

Deixai-me com meus lírios
e sonetos.
Vou explodir de luz um dia desses,
amiga, um dias desses.
Deixai-me com meus lírios
e sonetos.

Hás de me encontrar
insone e louco
no meio dos trigais da inconsciência,
ai, declamando
os versos que Van Gogh
não escreveu.
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ARTE POÉTICA

Meus versos são da pura essência
dos poemas inessenciais.

Nada dizem de verídico
não querem nada explicar.

Não narram o clamor dos peitos
não encaram a dor do mundo.

Se por vezes falam alto
é por puro gozo, júbilo.

humor que brota de dentro
como se movem os astros.

Eles, meus versos, são pura
floração de irresponsáveis

flores nascidas nos mangues,
por nascer — mas multicores,

lindas, não importa que os homens
as conheçam ou não conheçam.

(A Pura Mentira, 1982)
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TUDO QUE SOMOS

Tudo que somos,
pouco sabemos.

Um poço imenso,
cheio de sonhos.

Quando choramos,
não nos perdemos.

Viver é um sonho,
Não esqueçamos.

Viver é a sombra,
o assombro, o apenas.

Tão frágeis somos!
Frágeis e imensos.
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CONTEMPLAÇÃO DA NUVEM

p/ Luis Alberto

a vida é a contemplação daquela nuvem.
E o mundo
uma forma de passar, que inventamos
para não ver que o mundo não é o mundo,
mas uma nuvem
passando.

E uma nuvem passando
ensina-nos mais coisas que cem pássaros
mil livros um milhão de homens.

A vida é a contemplação daquela nuvem.
E o mundo
uma forma de passar, que inventamos
para não ver que o mundo não é o mundo,
mas uma nuvem.
Passando.

(Cantar de amiga, 1996)

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A ESPUMA DAS COISAS

A grande ilusão do insustentável.
O lama e os não-desejos.
A imensidão de um cosmos de brinquedo.
O estrelejar do hoje versus
o princípio. Ou o
precipício.

Sossega, peito meu, és só a espuma
das coisas vãs gozadas uma a uma.
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MNEMÓSINE REVISITADA

A memória do homem, coisa simples.
Esquece-se de que somos esquecidos
e cheios de saudades.
Saudades do que fomos e o que somos,
já esquecido em socavões de tardes.
Como se hojes fossem inacabáveis
e não viessem cobri-los outros sonos.

Ingratidão, memória, é teu nome.

Tudo que somos vai virar saudade
(não importa o peso, a pluma, a asperidade)
de tudo que não fomos — e, eis, esplende.
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O ESTIOLAR DAS COISAS

Os sonos estão parados
no portal do amplo oceano.

Eis meus touros minotauros
envoltos em vis novelos.

E a lágrima perdida
no amplíssimo deserto?
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O OFÍCIO

No fim dos tempos,
vou estar numa casinha de palha,
uns livros, um lápis,
papel almaço, a alma pura
e uns rabiscos pra ninguém ler,

me confessar.

Ao deus dentro de mim, primeiramente.
E a quem não interessar possa.
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QUADRA

Se alguém me espera?
Quem dera.

Se o bonde veio?
Mas cheio.

Se ganhei na vida?
Feridas.

Não vai dar? Deixa
estar.
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Sobre o Poeta
Pintor e poeta baiano: é assim que Antônio Brasileiro gosta de se definir. Mas não são essas poucas palavras que melhor o definem. Figura referencial entre os nomes surgidos a partir doa anos 60, Antonio Brasileiro, reconhecido nacionalmente pela sua produção poética, estreou na ficção com o romance Caronte é também figura de destaque como agitador cultural. Mente multifacetada, seu raio de ação inclui, além da literatura e das artes plásticas, um sólido estudo de filosofia. Com vinte e duas obras publicadas (poesia, ensaio, conto, romance, teatro), divide o resto do tempo entre o amor pelos livros e a música, a prática do tênis e o cultivo do ócio.

Brasileiro nasceu em 1944, em Rui Barbosa, no sertão baiano, onde viveu até 1955, quando se transferiu para Salvador. Desde 1972 vive em Feira de Santana. Tem uma fazenda de gado no Acre. É doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais [1999]. Dedicado praticante de tênis. Faz ginástica e longas caminhadas diárias. “Se eu não me cuidar, quem vai cuidar de mim?” Seu cultivo do ócio inclui música, leituras filosóficas, do tao e do zen, e conversas com os amigos. Ensina Teoria da Literatura na graduação em Letras da Universidade Estadual de Feira de Santana. Mas não faz desse ensino a exposição do que é chato, porque tem os olhos e os ouvidos abertos para o que diz Goethe no Fausto: “Toda teoria é cinzenta, caro amigo. Só a verdadeira árvore da vida é verde”.

Quarenta e um anos de poesia — com incursões na ficção e no ensaio — e 43 de pintura. Dos 22 livros que publicou, considera como os mais importantes: Caronte [romance, 1995], Antologia poética [1996], A história do gato [conto, 1997], Da inutilidade da poesia [2002] e Poemas reunidos [2005].

Segundo Brasileiro "A rigor, a poesia nunca esteve “em alta”. Alguns nomes conseguem se tornar mais conhecidos, pouquíssimos ultrapassam sua própria geração. Mas quantas pessoas mesmo, dessas que você vê todos os dias trafegando por aí, sequer ouviram falar de Drummond, nosso maior poeta? E se ouviram, quantos dentre seus mil poemas conhecem? Dois? Três? Isso é conhecer um poeta? Não é só a poesia que resiste à mercantilização; há outros saberes."

Dir-se-ia que a voz do poeta, filtrada pelo sentimento do eu lírico, amplia-se à medida em que encontra ressonância no sentimento do mundo. (...) A inquietação de estar no mundo permeia esta poesia. Uma poesia metafísica, no sentido mesmo de perplexidade frente ao mistério da existência, da inutilidade de todas as coisas diante do tempo que passa, inexorável, em seu eterno fluir. A ironia como que a mascarar a angústia de saber que o canto é tão inútil e tão necessário e que nesta festa de dançarinos entediados, somos grãos de areia na ampulheta, sozinhos, frente à eternidade das coisas tão perenes, quando a vida é apenas um susto...” (Myriam Fraga)

Convidado oficial da I Bienal Internacional de Poesia de Brasília, participa da antologia POEMÁRIO da I BIP.

Fontes:
http://www.antoniomiranda.com.br/
http://blogs.abril.com.br/lenidavid
http://www.litbr.com/entrevistas-antoniobrasileiro.htm

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