segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Edgar Allan Poe (O Visionário)



Fica a esperar-me ali! não deixarei de te encontrar nesse profundo vale.
HENRY King, Bispo de Chichester: Elegia sobre a morte de sua mulher.

MALFADADO E MISTERIOSO HOMEM! Desnorteado no esplendor de sua própria fantasia e tombado nas chamas de tua própria juventude! De novo, na imaginação eu te contemplo! Mais uma vez teu vulto se ergueu diante de mim... Não, não como te encontras, no frio vale, na sombra!, mas como deverias estar, dissipando uma vida de sublimes meditação naquela cidade de sombrias visões, tua própria Veneza, que é um Eliseu do mar querido das estrelas, onde as amplas janelas dos palácios paladinos contemplam, com profunda e amarga reflexão, os segredos de suas águas silenciosas. Sim, repito-o como deverias estar! Há seguramente outros mundos que não este…outros pensamentos que não os pensamentos da multidão... outras especulações que não as especulações dos sofistas. Quem discutirá então tua conduta? Quem te censurará por tuas horas visionárias, ou denunciará aquelas ocupações como uma perda de vida, quando eram apenas a superabundância de tuas energias eternas?.

Foi em Veneza, por baixo da arcada coberta que chamam a Ponte di Sospiri que encontrei, pela terceira ou quarta vez, a pessoa de quem falo. É com uma confusa recordação que trago à mente as circunstâncias daquele encontro. Contudo, recordo.. . ah, como poderia esquecer!. .. a profunda treva da meia-noite, a Ponte dos Suspiros, a beleza de mulher e o Gênio Romântico que palmilhava abaixo e acima o estreito canal.

Era uma noite de insólita escuridão. O grande sino da Piazza havia soado a quinta hora da noite italiana. O Largo do Campanile jazia silente e deserto e as luzes, no velho Palácio Ducal, iam rapidamente morrendo. Voltava eu para casa da Piazzetta, através do Canal. Mas, quando minha gôndola chegou em frente à boca do canal San Marco, uma voz feminina irrompeu subitamente os seus recessos, dentro da noite, num grito selvagem, histérico e interminável. Abalado pelo grito, ergui-me, enquanto o gondoleiro, deixando deslizar seu único remo, perdeu-o naquela escuridão de breu sem nenhuma possibilidade de recuperá-lo. Em conseqüência, ficamos ao sabor da corrente, que ali existe vinda do grande para o pequeno canal. Como um imenso condor de penas de areia éramos vagarosamente levados para a Ponte dos Suspiros quando milhares de archotes acenderam-se nas janelas e nas escadarias do Palácio Ducal, transformando imediatamente toda aquela profunda treva num dia lívido e sobrenatural.

Uma criança, escorregando dos braços de sua própria mãe, tinha caído de uma das janelas de cima do elevado edifício dentro do fundo e sombrio canal. As águas tranquilas haviam-se fechado placidamente, sobre sua vitima; e, embora minha gôndola, fosse a única à vista, muitos nadadores ousados já se achavam água procurando em vão, na superfície, o tesouro que, infelizmente apenas deveria ser encontrado dentro do abismo. Sobre as negras lajes de mármore, à entrada do palácio, e a poucos passos acima da água, estava de pé um vulto que ninguém que o visse poderia daí por diante esquecer. Era a Marquesa Afrodite, adorada por Veneza inteira, a mais alegre das criaturas alegres, a mais bela onde todas eram belas, mas também a jovem esposa do velho e intrigante Mentoni e a mãe daquela linda criança, seu primeiro e único filho, que agora, mergulhado nas águas lôbregas, pensava cheio de amargura o coração, nas doces carícias de sua mãe e exauria sua pequenina vida lutando por chamá-la. Ela permanecia só. Seus pequeninos pés nus e prateados cintilavam no espelho negro do mármore sobre que pousavam. Seu cabelo, ainda mal desnastrado dos seus enfeites de baile para o sono da noite, enrolava-se, entre um chuveiro de diamantes, em torno de sua cabeça de linhas clássicas, em cachos como os de jacinto em botão. Uma túnica de gaze, branca como a neve, parecia ser a única coisa que lhe cobria as formas delicadas; mas o ar daquela meia-noite de verão era quente, soturno e silencioso, e nenhum movimento, naquela forma estatuária, agitava mesmo as dobras daquele vestuário vaporoso, que a envolvia como o pesado mármore envolve Níobe . Contudo - estranho é dizê-lo! Seus grandes e brilhantes olhos não estavam voltados para baixo, para aquela sepultura onde jazia mergulhada sua mais brilhante esperança, mas fixavam-se numa direção completamente diversa. A prisão da Velha República é, penso eu, o mais majestoso edifício de toda Veneza. Mas como poderia aquela mulher olhar tão fixamente para ele, quando abaixo dela estava-se extinguindo seu próprio filho?

Aquele sombrio e lúgubre nicho também escancarava justamente diante da janela de seu quarto. Que, pois, poderia haver nas suas sombras, na sua arquitetura, nas suas cornijas solene, cingidas de hera que a Marquesa de Mentoni não houvesse contemplado antes, milhares de vezes? Absurdo! Quem não se lembra que em ocasiões como esta, os olhos, como um espelho partido, multiplicam as imagens de seu pesar e vêem, em numerosos lugares distantes, a desgraça que está ali próxima?

Muitos passos acima da marquesa e sob o arco do portão que dava para a água, estava de pé, em trajes de gala, a própria figurasátiro de Mentoni. Ele se achava, na ocasião, ocupado em arranhar uma guitarra e parecia mortalmente aborrecido quando, a intervalos dava ordens para o salvamento de seu filho. Estupefato e horrorizado, eu mesmo não tinha forças para mover-me da posição ereta que tomara ao ouvir o primeiro grito e devo ter apresentado à vista do grupo agitado, um aspecto espectral e sinistro quando lívido e de membros rígidos, flutuava entre eles naquela funerária gôndola.

Todos os esforços resultaram vãos. Muitos dos mais enérgicos na busca tinham relaxado suas diligências e entregavam-se a um sombrio pesar. Parecia haver pouca esperança de salvar a criança (e quão muito menos para a mãe!). Mas então, do interior daquele escuro nicho já mencionado, como fazendo parte da prisão da Velha República - e fronteiro ao postigo da marquesa, um vulto, envolto numa capa adiantou-se para dentro do círculo de luz e detendo-se por um instante à beira da descida vertiginosa, mergulhou de cabeça para baixo no canal. Quando, um instante depois, ele se ergueu com a criança ainda viva e a respirar entre seus braços sobre as lajes de mármore ao lado da marquesa, sua capa, pesada da água que a embebia , desabotoou-se e, caindo em pregas, em volta de seus pés, descobriu aos olhos dos espectadores, tomados de surpresa, a figura graciosa de um homem muito jovem, cujo nome repercutia na maior parte da Europa. O salvador, nenhuma palavra pronunciou. Mas a marquesa... Receberá agora seu filho! Apertá-lo-á de encontro ao coração, abraçar-se-á estreitamente ao seu pequeno corpo e o cobrirá de carícias! Mas ai! os braços de outrem tomaram-no das mãos do estrangeiro; os braços de outrem tinham-no levado, tinham-no conduzido para longe, despercebidamente, para dentro do palácio! E a marquesa?.

Seus lábios, seus lindos lábios tremem; o pranto inunda-lhe os olhos, naqueles olhos que, como o acanto de Plínio, eram "macios e quase líquidos. " Sim, o pranto inunda aqueles olhos e - vede! - aquela mulher treme até a alma. . . a estátua recuperou a vida! O palor do rosto marmóreo, a marmórea turgescência dos seios e a alvura imaculada dos pés marmóreos vemo-los, de súbito, enrubescidos por uma onda de incoercível vermelhidão. E um leve tremor lhe agita as delicadas formas como a brisa em Nápoles agita os lírios prateados que brotam dentre a relva. Porque enrubesceu aquela mulher? Para esta pergunta não há, resposta, exceto que, tendo deixado, com a pressa ávida e com o terror de um coração de mãe a intimidade da sua alcova, tinha-se esquecido de prender os delicados pés nas sandálias e completamente deixado de lançar sobre seus ombros venezianos aquela túnica que eles mereciam. . . Qual outra possível razão haveria para que ela enrubescesse? para o lampejo selvagem daqueles olhos fascinantes? para o insólito tumulto daquele seio arfante? para a convulsa pressão daquela mão trêmula, aquela mão que caiu, acidente, quando Mentoni voltou para dentro do palácio, sobre a mão do estrangeiro? Que razão poderia haver para o som baixo, singularmente baixo, daquelas ininteligíveis palavras que a mulher apressadamente murmurou, ao dizer-lhe adeus?

- Venceste - disse ela, ou os murmúrios da água me enganaram. - Venceste... Uma hora depois do sol nascer... encontraremos... está combinado!

O tumulto se extinguira. As luzes se apagaram dentro do palácio e o estrangeiro, a quem eu agora reconhecia, ficara só sobre s lajes. Tremia inconcebivelmente agitado e seus olhos busca ao redor uma gôndola. Não pude deixar de oferecer-lhe os serviços da minha e ele aceitou o obséquio. Tendo arranjado um remo perto do portão, seguimos juntos até sua residência, enquanto ele rapidamente, recuperava o domínio de si mesmo e se referia ao nosso antigo e leve conhecimento, em termos aparentemente de grande cordialidade.

Há alguns pontos a respeito dos quais tenho prazer em ser minucioso. A pessoa do estrangeiro - deixe-me assim chamar quem para todo mundo era ainda um estrangeiro -, a pessoa do estrangeiro é um desses pontos. Seu porte era mais abaixo do que acima da altura média, embora em momentos de intensa paixão seu corpo como que se expandia e desmentia o acerto. A fraca e quase delgada conformação de seu vulto era mais adequada à pronta atividade que demonstrara na Ponte dos Suspiros do que à força hercúlea que, se sabe, ele revelara sem esforços, em ocasiões de mais perigosa emergência. Com a boca e o queixo de um deus, olhos estranhos, selvagens, amplos, líquidos, cujas sombras variam do puro castanho ao intenso e brilhante azeviche; bastos cabelos negros e cacheados, dentre os quais brilhava uma fronte, a intervalos, toda luminosa e ebúrnea, uma fronte de insólita amplitude; eram feições estas, cuja regularidade clássica eu jamais vira, a não ser talvez as feições marmóreas do Imperador Cômodo. Contudo sua fisionomia não era dessas que os homens fixam para sempre. Não tinha expressão característica, nem predominante, para se gravar na memória; uma fisionomia vista e instantaneamente esquecida, mas esquecida com um vago e incessante desejo de reevocá-la à recordação. Não porque o espírito de qualquer rápida paixão deixasse, a qualquer hora, de mostrar sua imagem distinta no espelho daquela face; mas porque o espelho, sendo espelho, não retinha vestígios da paixão quando a paixão se dissipava.

Ao deixá-lo, na noite de nossa aventura, solicitou-me ele, duma maneira que reputei urgente, que o visitasse bem cedo na manhã seguinte. Logo depois do amanhecer, achei-me, por conseguinte, em seu palazzo, um daqueles imensos edifícios de sombria porém, fantástica majestade que se erguem por cima das águas do Grande Canal, nas vizinhanças do Rialto. Subindo por uma larga escadaria circular de mosaicos, entrei num aposento cujo esplendor inigualável flamejava pela porta aberta, numa verdadeira cintilação que me tornava cego e entontecido, pela sua faustosidade.Verifiquei que meu conhecido era rico. O que eu ouvira a respeito de suas posses me parecera uma exageração ridícula. Mas, ao olhar em torno de mim, não podia ser levado a acreditar que a riqueza de qualquer súdito europeu pudesse suprir a principesca magnificência que flamejava e resplandecia ali. Embora, como disse, o sol já se tivesse erguido, o quarto ainda se achava brilhantemente iluminado. Julgo, por esta circunstância bem como pelo ar de cansaço de meu amigo, que ele não se deitara durante toda a noite precedente.

Na arquitetura e embelezamentos do quarto, o objetivo evidente fora o de deslumbrar e espantar. Pouca atenção se dera à decoração do que é tecnicamente chamado de "harmonia", ou ás características de nacionalidade. O olhar vagava do um objeto a outro e não se fixava em nenhum, nem nos grotescos dos pintores gregos, nem nas esculturas das melhores épocas italianas, nem nas imensas inscrições do primitivo Egito. Ricas tapeçarias, por toda parte do quarto, tremiam à vibração de uma música suave e melancólica cuja origem não podia ser descoberta. O olfato era sufocado pela mistura de perfumes heterogêneos que se exalavam de estranhos incensários retorcidos, juntamente com numerosas e agitadas línguas flamejantes dum fogo de esmeralda e violeta. Os raios do sol, que acabava de nascer, banhavam todo o quarto através das janelas formadas, cada uma, de simples peça de vidro cor-de-rosa. Cintilando para lá e para cá, em mil reflexos, das cortinas que pendiam de suas cornijas como cataratas de prata derretida, os raios da luz natural misturavam-se por fim, caprichosamente, com a luz artificial e rolavam, em massas avassaladoras, sobre um tapete de um rico tecido, que parecia o ouro líquido do Chile.

- Ah, ah, ah! Ah, ah, ah! - riu o proprietário, apontando-me uma cadeira, quando eu entrei no quarto, e lançando-se de costas, a fio comprido, sobre uma otomana. - Vejo - disse ele, notando que eu não podia imediatamente adaptar-me a esquisitice de tão singular acolhida -, vejo que está atônito à vista de meu aposento, de minhas estátuas, de meus quadros, de minha originalidade, de concepção em arquitetura e tapeçamento. . . Absolutamente embriagado, hein, com a minha magnificência? Mas, perdoe-me, meu caro senhor (e aqui o tom de sua voz encheu-se do verdadeiro espírito de cordialidade), perdoe-me a minha descaridosa gargalhada. O senhor se mostrou tão extremamente atônito! Além disso, algumas coisas há tão completamente ridículas que um homem deve rir ou morrer. Morrer rindo deve ser a mais gloriosa de todas as mortes gloriosas! Sir Thomas More - e que homem inteligente era Sir Thomas More! - morreu rindo, como o senhor se recorda. Também nos Absurdos de Ravisius Textor há uma longa lista de personagens que tiveram o mesmo magnífico fim. O senhor sabe, porém - continuou ele, reflexivamente -, que em Esparta (que é agora Palaeochori), em Esparta, como disse, a oeste da cidadela, entre um amontoado de ruínas dificilmente visíveis, há uma espécie de soco, sobre o qual se lêem ainda as letras "LASM". Fazem parte sem dúvida, da palavra "GELASMA". Ora, em Esparta havia milhares de templos e santuários dedicados a milhares de divindades diferentes. Como é excessivamente estranho que o altar do Riso tenha todos os outros! Mas, na presente circunstância - prosseguiu ele, com singular alteração da voz e das maneiras -, não tenho o direito de alegrar-me à sua custa. O senhor tinha bem razão de ficar admirado. A Europa não pode produzir qualquer coisa tão bela como esta, este meu régio gabinete. Meus outros aposentos não são, de modo algum, da mesma espécie; são meros de "ultras" de insipidez elegante. Isto é melhor do que a moda, não é? Contudo, basta o que se está vendo para provocar o despeito daqueles que só poderiam adquiri-lo à custa de seu inteiro patrimônio. Tenho evitado porém, semelhante profanação. Com uma exceção apenas: e é o senhor a única criatura humana, além de mim mesmo e de meu criado, a ser admitido dentro dos mistérios deste recinto imperial, desde que ele foi adornado da maneira que o senhor vê...

Curvei-me, reconhecido, pois a dominante sensação de esplendor, o perfume e a música, juntamente com a inesperada excentricidade da fala e das maneiras dele impediam-me de exprimir, com palavras, aquilo que eu compusera na mente como um cumprimento.

- Aqui - continuou ele, levantando-se e apoiando-se no meu braço, enquanto vagava pelo aposento -, aqui estão pinturas, desde os gregos até Cimabue, e de Cimabue até a época atual. Muitas foram escolhidas, como vê, com pouco respeito às opiniões da crítica da arte. Todas, porém, são tapeçarias adequadas a um quarto como este. Aqui, também, há algumas obras-primas dos grandes desconhecidos... e ali, desenhos inacabados de homens célebres na sua época e cujos verdadeiros nomes a perspicácia das academias abandonou ao silêncio e a mim. Que pensa o senhor - disse ele, voltando-se bruscamente, enquanto falava -, que pensa o senhor desta Madonna della Pietã?
- É do próprio Guido! - disse eu, com todo o entusiasmo de minha natureza, pois tinha estado de olhos atentamente fixos sobre beleza transcendente. - É do próprio Guido! Como pôde obtê-la? É, indubitavelmente, em pintura, o que Vênus é em escultura!…

- Ah! - disse ele pensativamente. -Vênus.. . a bela Vênus... A Vênus dos Médicis? A de cabeça pequena e de cabelo dourado? Parte do braço esquerdo (aí sua voz se abaixou, a ponto de ser ouvida com dificuldade) e todo o braço direito são restaurações; e no amaneirado daquele braço direito se encontra, penso eu, a quinta-essência de toda a afetação. Para mim, a Vênus de Canova! O próprio Apolo, também, é uma cópia... não pode haver dúvida... Oh, louco, estúpido cego que eu sou, que não posso apreender a ostentosa inspiração do Apolo! Não posso deixar - pobre de mim -, não posso deixar de preferir o Antinous. Não foi Sócrates quem disse que o escultor descobre sua estátua no bloco de mármore? Por isso Miguel Ângelo não foi, de modo algum, original nos seus versos:

Non ha l'ottimo artista alcun Concettoche un marmo solo in se non circunscriva.
(Não tem o ótimo artista algum conceito / que um mármore só em si não circunscreva. (N. T.)).

Tem sido ou deveria ter sido notado que na maneira dos verdadeiros homens de gosto nós sempre estamos cônscios de uma diferença do procedimento do homem vulgar, sem sermos imediata e precisamente capazes de determinar em que consiste tal diferença. Admitindo que a observação se aplicasse em todo o seu vigor à conduta estranha de meu conhecido, sentia, naquela manhã cheia de acontecimentos, que ela era mais plenamente aplicável ainda ao seu temperamento moral e ao seu caráter. Nem posso eu melhor definir aquela peculiaridade de espírito que parecia colocá-lo tão essencialmente a parte de todos os outros seres humanos do que chamando-a um hábito de intenso e continuo pensamento, tomando conta até mesmo de suas mais triviais ações, intrometendo-se seus momentos de ócio e interferindo nas suas explosões de alegria como serpentes que irrompem dos olhos das máscaras careteantes nas cornijas que cercam os templos de Persépolis.

Não podia deixar, porém, de repetidas vezes observar, através do tom de misturada leviandade e solenidade com que ele rapidamente comentava assuntos de pouca importância, certo ar de trepidação, um grau de fervor nervoso no agir e no falar, certa inquieta excitabilidade de maneiras que a mim me parecia, a todo tempo inexplicável e, em algumas ocasiões mesmo, me alarmava.

Frequentemente, também, parando em meio de uma frase cujo começo tinha sido, na aparência, esquecido, parecia estar escutando em meio da mais profunda atenção, como se esperasse, de momento, um visitante ou ouvisse sons que só deviam ter existência na sua imaginação. Foi durante um desses devaneios ou pausas de aparente abstração que, passando uma folha da bela tragédia do poeta e erudito Policiano, Orfeu (a primeira tragédia original italiana), que estava ao meu lado sobre uma otomana, descobri um trecho sublinhado a lápis. Era uma passagem, já no fim do terceiro ato, uma passagem da mais excitante comoção, uma passagem que, embora tinta de impureza, nenhum homem lerá sem um arrepio de nova emoção; e nenhuma mulher sem um suspiro. A página inteira estava manchada de lágrimas recentes e, na página oposta, viam-se os seguintes versos em ingleses, escritos numa caligrafia tão diferente da letra característica de meu conhecido que tive alguma dificuldade em reconhecer como de seu próprio punho:

Tudo quanto anelei foste, amor,
tudo quanto minha alma queria:
ilha verde nos mares, amor,
templo, fonte que límpida fluía
num jardim de encantado primor
onde a mim cada flor pertencia.
Ah, o sonho fulgiu demais, para
persistir! Foi anseio estrelado
que morreu, mal surgira e brilhara!
Diz-me "Avante" o Futuro em voz clara;
não o escuto! Somente o Passado
(triste abismo) é que o espírito encara,
mudo, lívido, petrificado.
Sim, a luz me fugiu desta vida!
Foi-se a chama! Ficaram-me os ais.
Nunca mais, nunca mais, nunca mais
(ah! com essas palavras fatais
fala às praias a vaga abatida),
fronde ao raio tombada, jamais
te hás de erguer, nem tu, águia ferida!
E meus dias em êxtases passo,
e meu sonho procura no espaço
teu olhar, onde quer que o escondas,
e o fulgor de teus rastros, o traço
de teus pés, em celestes, mil rondas,
junto a eternas, incógnitas ondas.

Causou-me pouca surpresa que aqueles versos estivessem escritos em inglês, língua que eu não acreditava fosse do conhecimento de seu autor. Mas também estava certo da extensão de seus conhecimentos e do singular prazer que ele experimentava em ocultá-lo à observação, para que me espantasse diante de semelhante descoberta. O lugar da data, porém, devo confessar, causou-me não pequeno espanto. Fora originariamente de Londres e depois cuidadosamente riscado, não porém de modo eficiente para ocultar a palavra a um olhar escrutinador. Afirmo que isto me causou não pequeno espanto, pois bem me recordo de que, em anterior conversa com meu amigo, inquiri particularmente dele se havia se encontrado em Londres, alguma vez, com a Marquesa de Mentoni (que durante alguns anos, antes de seu casamento, havia residido naquela cidade) quando sua resposta, se não me engano, deu-me a entender que ele nunca visitara a metrópole da Grã-Bretanha. Eu poderia, entretanto aqui mencionar que mais de uma vez ouvi (sem indubitavelmente dar crédito a um boato, que implicava tantas improbabilidades ) que a pessoa de quem falo era, não só de nascimento, mas de educação, inglês.

- Há um quadro - disse ele, sem saber que eu conhecia a tragédia- , há ainda um quadro que o senhor não viu.E afastando para um lado uma cortina, descobriu um retrato inteiro da Marquesa Afrodite.

A arte humana nada mais podia ter feito no delinear-lhe a sobre-humana beleza. O mesmo vulto etéreo que se erguera diante de mim na noite precedente sobre os degraus do Palácio Ducal ali permanecia à minha frente, mais uma vez. Mas, na expressão da fisionomia, toda a cintilar de sorrisos, ali ainda se ocultava (anomalia incompreensível!) aquela caprichosa sombra de melancolia que sempre se encontra como inseparável da perfeição do belo. Seu braço direito dobrava-se sobre seu seio. Com o braço esquerdo apontava para um vaso de formato estranho. Um pequeno e lindo pé, mal visível, tocava de leve a terra; e, dificilmente discernível, na brilhante atmosfera que parecia cercar e aureolar sua beleza, flutuava um par das mais delicadamente imaginadas asas.

Meu olhar desceu do quadro para o rosto de meu amigo e as vigorosas palavras do Bussy d'Amboise, de Chapman, palpitaram-me, instintivamente, nos lábios:

Está de pé ali
Como uma romana estátua. E assim ficará
Até que a morte em mármore o transforme!

- Venha! - disse ele afinal, voltando-se para uma mesa de prata maciça, ricamente esmaltada, sobre a qual se viam-se várias taças fantasticamente pintadas, ao lado de dois grandes vasos etruscos talhados no mesmo extraordinário modelo do primeiro plano do quadro, e cheios do que supunha eu ser Johannesburger. - Venha! - disse ele, bruscamente -, bebamos! É cedo ainda, mas bebamos! É realmente cedo - continuou ele, reflexivamente, quando um querubim, com um pesado martelo de ouro, fez o aposento retinir com a primeira hora depois do nascer do sol. - É realmente cedo... Mas, que importa? Bebamos! Façamos uma libação àquele solene sol que essas brilhantes lâmpadas e incensários estão tão ávidos de dominar!E, tendo-me feito brindá-lo com um enorme copo, engoliu, em rápida sucessão, várias taças de vinho.

- Sonhar - continuou ele, no tom de sua inconstante conversa ao erguer, diante da viva flama dum incensário, um dos magníficos vasos -, sonhar tem sido a ocupação de minha vida. Armei, pois, para mim, como vê, um camarim de sonhos. Poderia construir um melhor no coração de Veneza? O senhor observa em torno de si, é verdade, uma mistura de adornos arquitetônicos. A castidade da lônia é ofendida pelas inscrições antediluvianas e as esfinges do Egito se estendem sobre tapetes dourados. Contudo, o efeito só é incongruente para o tímido. Conveniências de lugares, e especialmente de tempo, são os fantasmas que afastam a humanidade aterrorizada da contemplação do magnificente. Fui outrora decorador, mas esta sublimação do disparate embotou a minha alma. Tudo isto é agora o mais apropriado para meu propósito. Como aqueles arabescados incensários, meu espírito se estorce em labaredas e o delírio desta cena está-me amoldando para as mais Insensatas visões daquela região de verdadeiros sonhos para onde estou agora rapidamente partindo.

Aqui parou subitamente, inclinou a cabeça sobre o peito e pareceu escutar um som que eu não podia ouvir. Por fim, erguendo o busto, olhou para cima e proferiu os versos do Bispo de Chichester:

Fica a esperar-me ali! Não deixarei
De te encontrar nesse profundo vale.

No momento seguinte, reconhecendo o poder do vinho, lançou-se, a fio comprido, sobre uma otomana.

Ouviu-se então um leve rumor de passos na escadaria, a que logo se seguiu pesada pancada à porta. Apressava-me em evitar segunda interrupção, quando um pajem da casa de Mentoni irrompeu pelo quarto e gaguejou, numa voz embargada de emoção, incoerentes palavras:

- A minha senhora … a minha senhora.. . envenenada... formosa... oh formosa Afrodite!

Atordoado, corri para a otomana e tentei despertar o adormecido para que soubesse a apavorante informação. Mas seus membros estavam rígidos, seus lábios estavam lívidos, seus olhos, ainda pouco cintilantes, estavam revirados pela morte. Recuei, cambaleante para a mesa. Minha mão caiu sobre uma taça partida e enegrecida e a consciência da completa e terrível verdade brilhou subitamente na minha alma.

Fonte:
POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias. SP: Nova Cultural, 1993.

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