quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Carlos de Oliveira (Teia de Poesias)

(a grafia original foi mantida)
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Amazónia

I
Selva.
O negro, o índio
e o mais que me souber.
O fogo doutro céu,
o nome doutro dia.
Tudo o que estiver
nos nervos
quem me deu.

II
Navegação.
O Amazonas
atira os barcos ao mar.
Defende o seu coração
Marca as zonas
de navegar

III
Fruto.
Minha selva
de nervos.
Potros,
potros na selva.

Maré cheia,
árvores em parto,
ondas sobre ondas
dum inferno farto.
Inferno pleno.
Terras verdes
e céu moreno.

Sol loiro.
Estrídulo, de hastes vermelhas.
Toiro.

Plasma.
Nus, torcidos.
Estrelas, que poucas.
Vento de todos os sentidos.
Bocas.

IV
Céu.
Apalpo e oiço
o silêncio. O silêncio
adensou e rangeu.

V
Anjos
entregam-se a anjos
e caem na terra
embebedados.
A terra

freme,
sabor de sol que lhe ficou
do dia calcinado,
treme

minhas orgias doiradas
enquanto as asas dos anjos
caem maculadas.
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Elegia de Coimbra

Gela a lua de março nos telhados
e à luz adormecida
choram as casas e os homens
nas colinas da vida.

Correm as lágrimas ao rio,
a esse vale das dores passadas,
mas choram as paredes e as almas
outras dores que não foram perdoadas.

Aos que virão depois de mim
caiba outra sorte em herança:
o oiro depositado
nas margens da lembrança.
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Leitura

Quando por fim as árvores
se tornam luminosas; e ardem
por dentro pressentindo;
folha a folha; as chamas
ávidas de frio:
nimbos e cúmulos coroam
a tarde, o horizonte,
com a sua auréola incandescente
de gás sobre os rebanhos.

Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.

Perdem mais densidade;
ascendem na pálida aleluia de que fulgor ainda?
e são agora
cumes de colinas rarefeitas
policopiando à pressa
a demora das outras
feita de peso e sombra.
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Soneto fiel

Vocábulos de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que têm se é beleza.

O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.

As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me nas mãos desde o início.

O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
A noite que cercou o meu ofício.
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Estrela

Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar
é entristecer
sem corrompermos
nada.
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Salmo

A vida
é o bago de uva
macerado
nos lagares do mundo
e aqui se diz
para proveito dos que vivem
que a dor
é vã
e o vinho
breve.
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Infância

Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.
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Gândara

IV

Ao lume da estrumeira
lagos esverdeados.
Passam os meninos a tarde inteira
a olhar os lagos encantados.

Os vermes que apodrecem
aconchegando-nos nas mãos avaras:
os dedos dos meninos enegrecem,
os lagos ficam mais claros.

Já esqueceram a lagoa e a maneira
de atirar pedras às águas calmas como um manto.
Enfeitiçados, os lagos da estrumeira
trazem-nos naquele encanto.
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Estalactite IV, VI e VIII

Localizar
na frágil espessura
do tempo,
que a linguagem
pôs
em vibração
o ponto morto
onde a velocidade
se fractura
e aí
determinar
com exactidão
o foco
do silêncio.

Algures
o poema sonha
o arquétipo
do voo
inutilmente
porque repete
apenas
o signo, o desenho
do Outono
aéreo
onde se perde a asa
quando vier
o instante
de voar

Caem
do céu calcário,
acordam flores
milénios depois,
rolam de verso
em verso
fechadas
como gotas,
e ouve-se
ao fim da página
um murmúrio
orvalhado.
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Seguindo o fio

seguindo o fio
da tinta
que desenha
as palavras
e tenta
fugir ao tumulto
em que as raízes
grassam,
engrossam, embaraçam
a escrita
e o escritor:
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Nevoeiro

A cidade caía
casa a casa
do céu sobre as colinas,
construída de cima para baixo
por chuvas e neblinas,
encontrava
a outra cidade que subia
do chão com o luar
das janelas acesas
e no ar
o choque as destruía
silenciosamente,
de modo que se via
apenas a cidade inexistente.
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Fotomontagem = José Feldman

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