Entrevista concedida ao escritor Floriano Martins
FLORIANO: Comecemos falando da ponte existente entre o nascimento em Funchal e a residência brasileira em São Paulo. De que maneira as variações nessa paisagem cultural – do insular ao continental – foram aguçando os sentidos do poeta?
DALILA Ninguém cruza a linha do Equador impunemente. Atada à cinta, a carga atávica, heranças avós das quais dificilmente nos desvencilhamos. Ante a impossibilidade do retorno é preciso render-se e assimilar a cor circunstancial e, do sal recolhido na travessia, temperar esse novo viver. Para além do Bojador, a dualidade se faz presente, o sentido agudo de ser estrangeiro. Não são mais os mares que começam, mas terras que nunca se acabam. As raízes, veias abertas, passam a receber influências novas, convívios outros, determinando nova visão de mundo e, claro está, que isso irá refletir lá adiante nos sentidos da poeta.
FLORIANO: O convívio com duas tradições líricas sensivelmente distintas, como o são a portuguesa e a brasileira, imagino também deve ter sido um aspecto bastante enriquecedor em tua formação. Paralelo ao enriquecimento como convivias com a percepção do abismo que separa ambas as tradições?
DALILA: No Brasil, aportada ainda menina e tendo aqui completado minha escolaridade, talvez a primeira percepção tenha sido a de que, em tese, a língua era (quase) a mesma, mas a práxis cultural não.
Cresci ouvindo minha bisavó materna recitando Bocage e Camões, e minha mãe valendo-se das trovas populares para celebrar todas as ocasiões. Bebi de todas as tradições, portuguesas e brasileiras, desde o lírico Augusto Gil e sua balada da neve, que aos 9, 10 anos, declamava com paixão nas festas escolares no Funchal e, já no Brasil, os românticos brasileiros, como Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e Castro Alves, que li com devoção na adolescência. Os portugueses modernos descobri por minha conta e risco, já em terras brasileiras. Pessoa em primeiro, um mergulho do qual necessitei muito tempo para emergir e, enfim, poder nadar por outras águas.
Na minha memória de leituras não há uma percepção desse possível abismo entre as duas literaturas, antes, uma fusão, como foi a vida, amalgamada pelo sincretismo cultural. Isso se refletiu, inclusive, num aspecto conceitual no que concerne à minha "nacionalidade literária". Quando da minha opção pela palavra como ofício, enfrentei outro dilema: não era possível ser uma escritora portuguesa escrevendo como brasileira. Apazigüei-me, considerando-me uma escritora brasileira que nasceu em Portugal. A língua como a pátria possível.
FLORIANO: No diálogo com essas duas tradições, há algumas particularidades que tenham alcançado uma mais alta voltagem em termos de afinidades estéticas? Não me refiro exatamente a autores, mas sim a aspectos de linguagem. E também quero que te sintas livre para aqui mencionar outros focos apaixonantes e mesmo influentes, não somente em termos de ambientação Brasil-Portugal e menos ainda exclusivamente literários.
DALILA: Em termos de afinidades estéticas, a pintura talvez tenha sido a que primeiro se estabeleceu, como até hoje tem sido. Ao tempo que lia os românticos, encantava-me com os impressionistas, queria, àquela época, atingir uma escrita diáfana, uma realidade "borrada" como nos jardins de Monet, mas a tentativa poética não passou de um "borrão" mesmo. A minha poesia muito tem dialogado com a pintura, em especial com a de Constança Lucas, Hugo Gallet, Ricardo Amadasi, André Miranda, Mariano do Amaral Neto, Sian, Perkins T. Moreira, pintores/escultores, meus contemporâneos, que admiro e com os quais já realizei trabalhos conjuntos.
Quando de minha tomada de consciência estética, vi-me diante do impasse em que se meteu toda a poesia depois dos anos 50 no Brasil: filiar-me a grupos com (ainda) severas imposições canônicas, nas quais a poesia deve cumprir um papel formal exacerbado, os chamados poetas-críticos, o que, absolutamente, nunca foi minha vocação, ou buscar uma voz que encontrasse o equilíbrio entre a pesquisa formal e a emoção como sua dimensão humana.
Todas as escolas fizeram de mim uma poeta sem escola nem geração, mesmo porque penso que a segunda metade do século XX não formou gerações literárias, mas vozes, em muitos casos, dissonantes, que retiraram da tradição, do modernismo e das vanguardas apenas aquilo que mais lhes interessou.
Acredito, entretanto, que essa aparente insubordinação de não pertencer a "escolas" não exclui o fato de se estar ligada, em termos de linguagem, a uma determinada "corrente literária" que, a meu ver, estaria representada por uma certa marca ou parentesco planetário.
Nestes 25 anos de exercício poético, sem deixar de experimentar outras possibilidades de dicção e linguagem, venho perseguindo o caminho da concisão, a busca da densidade de significados em versos cada vez mais econômicos.
FLORIANO: Transcendência singular e evocações de intenso caráter de consagração convivem, em tua poesia, com uma leitura cosmopolita de aspectos memoriais e visão crítica. Há um interlocutor almejado por um plano estético? Com quem buscas dialogar?
DALILA: Desde os meus 11 anos de idade que vivo numa metrópole. Sou, portanto, um ser urbano, com pouca possibilidade de refletir a natureza que não tenha sido transformada pelo homem. Tento, de dentro do olho desse furacão, refletir essa realidade complexa que é a da cidade moderna e as minúcias do seu cotidiano, onde velocidades incompatíveis com a natureza humana não mais permitem o direito ao silêncio, ao ócio ou à própria reflexão. Não tenho propriamente uma intenção em transcender essa realidade, mas transformá-la em outra realidade, espelho do espelho, o que não exclui uma dose memorial, recriada, já que não há verdade nas memórias, ainda que também acredite que o esquecimento pode ser repositário delas, caixa de Pandora, à espera que alguém a destampe.
FLORIANO: Estatísticas irrefutáveis alertam para um quadro perigosamente agravado ao longo do tempo, que é o índice de leitura per capita do brasileiro. Evidente que não se pode esquecer que aí também se revela uma condição intelectual do país, ou seja, também nossos intelectuais lêem abaixo do sustentável. Entenda-se, ao menos teoricamente, por condição intelectual aquela que abriga tanto o universo literário (autores e críticos, por exemplo), como clero, imprensa, academia e casta política. O resultado dessa cadeia viciosa é uma espiral cuja expansão se dá sempre em sentido degenerativo. Como se pode romper com isto?
DALILA: A escola precisa voltar a priorizar a leitura e estimular a pesquisa e o pensar, única maneira de formar cidadãos que possam fazer escolhas. O ensino optou por "instrumentalizar" o cidadão para o mercado, deixando de lado a cultura humanística, única capaz de transformar, de preparar cidadãos para o discernimento. Como disse Edgar Morin, "o conhecimento racional, empírico e técnico deve conviver com o simbólico, o mítico e o poético". A pessoa que lê não reproduz, mas pensa e cria, toma decisões. Vive-se na era do simulacro e do fragmento, onde a lei do mais "fácil" impera. O conhecimento, que advém da leitura, requer esforço, dá trabalho. Será preciso uma verdadeira brigada pró-leitura, diante da concorrência e da facilidade enganosa que o advento da Internet incutiu nos mais jovens, a ponto de se achar que livro é coisa do passado, que a Internet é o melhor meio de "estudo" e que basta clicar no "Google" para encontrar, imprimir e entregar, prontinho, ao professor, qualquer pesquisa, sobre qualquer assunto, sem a necessidade de nem mesmo ler o que se imprimiu. A leitura não poderá ficar de fora dos grandes debates atuais. É uma questão irrenunciável que deverá obrigatoriamente se transformar em uma estratégia para uma revolução que deve passar pelo intelecto e pela vontade política.
FLORIANO: Tua integração ao ambiente da produção cultural em São Paulo possui uma conotação talvez ainda não corretamente avaliada, desde as atividades em torno do grupo Livrespaço até a criação deste espaço nobre de produção e difusão literária que é a Livraria e Editora Alpharrabio. Qual a tua percepção deste caso incomum entre brasileiros, de alguém que é essencialmente escritor e se desdobra em uma aventura de abrir condições editoriais e de circulação para seus pares e gerações mais jovens?
DALILA: De fato, são poucos os que se dedicam à "disseminação" e ao debate da cultura e esses estão divididos em duas categorias: aqueles ligados à chamada cultura do espetáculo, que dependem de patrocínios e da lógica do mercado para circular. Além disso, e por isso mesmo, encontram facilidades com leis de incentivo, patrocínios, etc.; a segunda categoria, se é que se pode chamar assim, é a dos abnegados, que, por vocação pessoal ou por uma lei não identificada, dedicam-se às causas da cultura e da arte, quixotes urbanos, numa sociedade que pouco está se importando para o que não represente entretenimento, moda ou lazer. Sempre tive a convicção de que todo escritor deveria ir além do papel, ou seja, exercer também "outros papéis", entre eles o da solidariedade entre seus pares e, sobretudo, a contribuição para a promoção da leitura. Essa foi uma das preocupações do grupo Livrespaço, contribuir para a formação de leitores de todas as maneiras possíveis. Sou uma editora de circunstâncias. Jamais obtive qualquer resultado financeiro com aquilo que publiquei. Publico por um desejo que chamo de utopia da página impressa. Jamais fui movida a metas, como mandam as leis empresariais, mas a inquietações e, no caso da edição, publico aquilo que me seduz, que acredito tenha possibilidades de permanecer como literatura e também, em alguns casos, pelo prazer de ver um escritor em seu momento de nascimento para, depois, como já aconteceu, vê-lo trilhar caminhos que sejam reconhecidos.
FLORIANO: O convívio com a prosa (crônicas, diário, crítica esparsa), de que maneira interfere em tua poesia?
DALILA: A transversalidade cultural, as identificações no lugar da identidade, talvez seja a marca do nosso tempo. O diário continua sendo uma prática, tentativa de aprisionar os dias. Dele e de todos os outros textos, por vezes me acontece identificar uma frase como verso e que acaba se transformando em cerne de um poema. Como também me acontece ao contrário, ou seja, de um verso, construir uma crônica.
FLORIANO: Dos livros todos reunidos em À Janela dos Dias até a presente edição, podemos falar em saltos, abismos, conseqüências ou alguma outra avaliação mais pertinente?
DALILA: Acredito que não haja nenhum salto, mas talvez a confirmação de uma certa "dicção" que ali já estava presente, assim como também uma retomada do poema em prosa, onde resvalo pelo discursivo mas que, assim como em A Palavraparte, que é de 1996, impõe-se como condição dentro da proposta temática, neste caso, os "retratos".
FLORIANO: Esquecemos algo?
DALILA: Sempre haveria algo a dizer, mas também o calar pode vir carregado de significados que poderão ser descobertos, assim espero, pelo leitor dos poemas.
Fonte:
VERAS, Dalila Teles. Retratos Falhados. Ed. Escrituras, 2008. prefácio.
FLORIANO: Comecemos falando da ponte existente entre o nascimento em Funchal e a residência brasileira em São Paulo. De que maneira as variações nessa paisagem cultural – do insular ao continental – foram aguçando os sentidos do poeta?
DALILA Ninguém cruza a linha do Equador impunemente. Atada à cinta, a carga atávica, heranças avós das quais dificilmente nos desvencilhamos. Ante a impossibilidade do retorno é preciso render-se e assimilar a cor circunstancial e, do sal recolhido na travessia, temperar esse novo viver. Para além do Bojador, a dualidade se faz presente, o sentido agudo de ser estrangeiro. Não são mais os mares que começam, mas terras que nunca se acabam. As raízes, veias abertas, passam a receber influências novas, convívios outros, determinando nova visão de mundo e, claro está, que isso irá refletir lá adiante nos sentidos da poeta.
FLORIANO: O convívio com duas tradições líricas sensivelmente distintas, como o são a portuguesa e a brasileira, imagino também deve ter sido um aspecto bastante enriquecedor em tua formação. Paralelo ao enriquecimento como convivias com a percepção do abismo que separa ambas as tradições?
DALILA: No Brasil, aportada ainda menina e tendo aqui completado minha escolaridade, talvez a primeira percepção tenha sido a de que, em tese, a língua era (quase) a mesma, mas a práxis cultural não.
Cresci ouvindo minha bisavó materna recitando Bocage e Camões, e minha mãe valendo-se das trovas populares para celebrar todas as ocasiões. Bebi de todas as tradições, portuguesas e brasileiras, desde o lírico Augusto Gil e sua balada da neve, que aos 9, 10 anos, declamava com paixão nas festas escolares no Funchal e, já no Brasil, os românticos brasileiros, como Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e Castro Alves, que li com devoção na adolescência. Os portugueses modernos descobri por minha conta e risco, já em terras brasileiras. Pessoa em primeiro, um mergulho do qual necessitei muito tempo para emergir e, enfim, poder nadar por outras águas.
Na minha memória de leituras não há uma percepção desse possível abismo entre as duas literaturas, antes, uma fusão, como foi a vida, amalgamada pelo sincretismo cultural. Isso se refletiu, inclusive, num aspecto conceitual no que concerne à minha "nacionalidade literária". Quando da minha opção pela palavra como ofício, enfrentei outro dilema: não era possível ser uma escritora portuguesa escrevendo como brasileira. Apazigüei-me, considerando-me uma escritora brasileira que nasceu em Portugal. A língua como a pátria possível.
FLORIANO: No diálogo com essas duas tradições, há algumas particularidades que tenham alcançado uma mais alta voltagem em termos de afinidades estéticas? Não me refiro exatamente a autores, mas sim a aspectos de linguagem. E também quero que te sintas livre para aqui mencionar outros focos apaixonantes e mesmo influentes, não somente em termos de ambientação Brasil-Portugal e menos ainda exclusivamente literários.
DALILA: Em termos de afinidades estéticas, a pintura talvez tenha sido a que primeiro se estabeleceu, como até hoje tem sido. Ao tempo que lia os românticos, encantava-me com os impressionistas, queria, àquela época, atingir uma escrita diáfana, uma realidade "borrada" como nos jardins de Monet, mas a tentativa poética não passou de um "borrão" mesmo. A minha poesia muito tem dialogado com a pintura, em especial com a de Constança Lucas, Hugo Gallet, Ricardo Amadasi, André Miranda, Mariano do Amaral Neto, Sian, Perkins T. Moreira, pintores/escultores, meus contemporâneos, que admiro e com os quais já realizei trabalhos conjuntos.
Quando de minha tomada de consciência estética, vi-me diante do impasse em que se meteu toda a poesia depois dos anos 50 no Brasil: filiar-me a grupos com (ainda) severas imposições canônicas, nas quais a poesia deve cumprir um papel formal exacerbado, os chamados poetas-críticos, o que, absolutamente, nunca foi minha vocação, ou buscar uma voz que encontrasse o equilíbrio entre a pesquisa formal e a emoção como sua dimensão humana.
Todas as escolas fizeram de mim uma poeta sem escola nem geração, mesmo porque penso que a segunda metade do século XX não formou gerações literárias, mas vozes, em muitos casos, dissonantes, que retiraram da tradição, do modernismo e das vanguardas apenas aquilo que mais lhes interessou.
Acredito, entretanto, que essa aparente insubordinação de não pertencer a "escolas" não exclui o fato de se estar ligada, em termos de linguagem, a uma determinada "corrente literária" que, a meu ver, estaria representada por uma certa marca ou parentesco planetário.
Nestes 25 anos de exercício poético, sem deixar de experimentar outras possibilidades de dicção e linguagem, venho perseguindo o caminho da concisão, a busca da densidade de significados em versos cada vez mais econômicos.
FLORIANO: Transcendência singular e evocações de intenso caráter de consagração convivem, em tua poesia, com uma leitura cosmopolita de aspectos memoriais e visão crítica. Há um interlocutor almejado por um plano estético? Com quem buscas dialogar?
DALILA: Desde os meus 11 anos de idade que vivo numa metrópole. Sou, portanto, um ser urbano, com pouca possibilidade de refletir a natureza que não tenha sido transformada pelo homem. Tento, de dentro do olho desse furacão, refletir essa realidade complexa que é a da cidade moderna e as minúcias do seu cotidiano, onde velocidades incompatíveis com a natureza humana não mais permitem o direito ao silêncio, ao ócio ou à própria reflexão. Não tenho propriamente uma intenção em transcender essa realidade, mas transformá-la em outra realidade, espelho do espelho, o que não exclui uma dose memorial, recriada, já que não há verdade nas memórias, ainda que também acredite que o esquecimento pode ser repositário delas, caixa de Pandora, à espera que alguém a destampe.
FLORIANO: Estatísticas irrefutáveis alertam para um quadro perigosamente agravado ao longo do tempo, que é o índice de leitura per capita do brasileiro. Evidente que não se pode esquecer que aí também se revela uma condição intelectual do país, ou seja, também nossos intelectuais lêem abaixo do sustentável. Entenda-se, ao menos teoricamente, por condição intelectual aquela que abriga tanto o universo literário (autores e críticos, por exemplo), como clero, imprensa, academia e casta política. O resultado dessa cadeia viciosa é uma espiral cuja expansão se dá sempre em sentido degenerativo. Como se pode romper com isto?
DALILA: A escola precisa voltar a priorizar a leitura e estimular a pesquisa e o pensar, única maneira de formar cidadãos que possam fazer escolhas. O ensino optou por "instrumentalizar" o cidadão para o mercado, deixando de lado a cultura humanística, única capaz de transformar, de preparar cidadãos para o discernimento. Como disse Edgar Morin, "o conhecimento racional, empírico e técnico deve conviver com o simbólico, o mítico e o poético". A pessoa que lê não reproduz, mas pensa e cria, toma decisões. Vive-se na era do simulacro e do fragmento, onde a lei do mais "fácil" impera. O conhecimento, que advém da leitura, requer esforço, dá trabalho. Será preciso uma verdadeira brigada pró-leitura, diante da concorrência e da facilidade enganosa que o advento da Internet incutiu nos mais jovens, a ponto de se achar que livro é coisa do passado, que a Internet é o melhor meio de "estudo" e que basta clicar no "Google" para encontrar, imprimir e entregar, prontinho, ao professor, qualquer pesquisa, sobre qualquer assunto, sem a necessidade de nem mesmo ler o que se imprimiu. A leitura não poderá ficar de fora dos grandes debates atuais. É uma questão irrenunciável que deverá obrigatoriamente se transformar em uma estratégia para uma revolução que deve passar pelo intelecto e pela vontade política.
FLORIANO: Tua integração ao ambiente da produção cultural em São Paulo possui uma conotação talvez ainda não corretamente avaliada, desde as atividades em torno do grupo Livrespaço até a criação deste espaço nobre de produção e difusão literária que é a Livraria e Editora Alpharrabio. Qual a tua percepção deste caso incomum entre brasileiros, de alguém que é essencialmente escritor e se desdobra em uma aventura de abrir condições editoriais e de circulação para seus pares e gerações mais jovens?
DALILA: De fato, são poucos os que se dedicam à "disseminação" e ao debate da cultura e esses estão divididos em duas categorias: aqueles ligados à chamada cultura do espetáculo, que dependem de patrocínios e da lógica do mercado para circular. Além disso, e por isso mesmo, encontram facilidades com leis de incentivo, patrocínios, etc.; a segunda categoria, se é que se pode chamar assim, é a dos abnegados, que, por vocação pessoal ou por uma lei não identificada, dedicam-se às causas da cultura e da arte, quixotes urbanos, numa sociedade que pouco está se importando para o que não represente entretenimento, moda ou lazer. Sempre tive a convicção de que todo escritor deveria ir além do papel, ou seja, exercer também "outros papéis", entre eles o da solidariedade entre seus pares e, sobretudo, a contribuição para a promoção da leitura. Essa foi uma das preocupações do grupo Livrespaço, contribuir para a formação de leitores de todas as maneiras possíveis. Sou uma editora de circunstâncias. Jamais obtive qualquer resultado financeiro com aquilo que publiquei. Publico por um desejo que chamo de utopia da página impressa. Jamais fui movida a metas, como mandam as leis empresariais, mas a inquietações e, no caso da edição, publico aquilo que me seduz, que acredito tenha possibilidades de permanecer como literatura e também, em alguns casos, pelo prazer de ver um escritor em seu momento de nascimento para, depois, como já aconteceu, vê-lo trilhar caminhos que sejam reconhecidos.
FLORIANO: O convívio com a prosa (crônicas, diário, crítica esparsa), de que maneira interfere em tua poesia?
DALILA: A transversalidade cultural, as identificações no lugar da identidade, talvez seja a marca do nosso tempo. O diário continua sendo uma prática, tentativa de aprisionar os dias. Dele e de todos os outros textos, por vezes me acontece identificar uma frase como verso e que acaba se transformando em cerne de um poema. Como também me acontece ao contrário, ou seja, de um verso, construir uma crônica.
FLORIANO: Dos livros todos reunidos em À Janela dos Dias até a presente edição, podemos falar em saltos, abismos, conseqüências ou alguma outra avaliação mais pertinente?
DALILA: Acredito que não haja nenhum salto, mas talvez a confirmação de uma certa "dicção" que ali já estava presente, assim como também uma retomada do poema em prosa, onde resvalo pelo discursivo mas que, assim como em A Palavraparte, que é de 1996, impõe-se como condição dentro da proposta temática, neste caso, os "retratos".
FLORIANO: Esquecemos algo?
DALILA: Sempre haveria algo a dizer, mas também o calar pode vir carregado de significados que poderão ser descobertos, assim espero, pelo leitor dos poemas.
Fonte:
VERAS, Dalila Teles. Retratos Falhados. Ed. Escrituras, 2008. prefácio.
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