terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Machado de Assis (A Carteira)



...DE REPENTE, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar se, apanhá la e guardá la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:

- Olhe, se não dá por ela; perdia a de uma vez.

- É verdade, concordou Honório envergonhado.

Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro.

Endividou se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem se, e os jantares a comerem se, um turbilhão perpétuo, uma voragem.

- Tu agora vais bem, não? dizia lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa.

- Agora vou, mentiu o Honório.

A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, cm que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma coisa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.

D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.

Um dia, a mulher foi achá lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou lhe o que era.

- Nada, nada.

Compreende se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias melhores tinham de vir dava lhe conforto para a luta. Estava com trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou emprestado, para pagar mal, e a más horas.

A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde.

Tinha se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhou a, meteu no bolso, e foi andando.

Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma coisa e encostou se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava lhe se podia utilizar se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida?

Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar lha; insinuação que lhe deu ânimo.

Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos mil réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar se ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá la.

Mas daí a pouco tirou a outra vez, e abriu a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu se e contou: eram setecentos e trinta mil réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos...

Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí lo. Restituí lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.

"Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar me do dinheiro," pensou ele.

Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou a por fora, e pareceu lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.

A descoberta entristeceu o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu.

"Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer."

Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa.

- Nada.

- Nada?

- Por quê?

Mete a mão no bolso; não te falta nada?

- Falta me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. - Sabes se alguém a achou?

- Achei a eu, disse Honório entregando lha.

Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu lhe as explicações precisas.

- Mas conheceste-a?

- Não; achei os teus bilhetes de visita.

Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.

Fontes:
Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
http://www.bibvirt.futuro.usp.br. In CD Rom E-Learning n.3. Digerati

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