terça-feira, 5 de abril de 2011

Denilza Munhoz (O Dia Final)


Natalia não entendia o porque daquela repentina mudança no céu, cuja beleza azul turquesa mudara de um instante a outro, como se os Deuses tivessem resolvido que a natureza deveria entrar em luto sem aviso prévio. As nuvens passavam rapidamente de norte a sul, dançando entre si num jogo de vestimentas sensualmente assustadoras deixando os habitantes daquela cidade num inconstante vai-e-vem de emoções; talvez pelas figuras fantasmagóricas que se formavam acima do horizonte. Horas eram monstros de olhos esbugalhantes e segundos depois as bruxas tomavam o cenário com seus chapéus num negro mais negro que o Ébano.

O vento urrava forte, gritando como pirata inglês para seus marujos, e tudo ao redor parecia atender àquela interpelação, pois as árvores jogavam-se umas às outras como se pedissem socorro diante daquela autoridade tão injusta, tão maldosa !

A rua inconsolava-se com a presença do vento que empurrava tudo para cima e para a frente transformando aquele lugar numa verdadeira passarela de desfiles. Os jornais traziam noticias das bolsas com suas variações, as folhas de oficios surgiam com declarações as mais estranhas, típicas dos seres humanos com seus pensamentos inconstantes; "eu te amo Almeida"- registrava uma. "Diga para Celma que passo hoje aí - mostrava outro. Latas batiam de encontro às calçadas, seguindo em carreira pelo asfalto , soltando bramidos como prostitutas, em seus gritos frenéticos na disputa por seu clientes. Feixes suaves passavam, leves como espuma sobre as águas, mal tocavam o solo e se erguiam pelos ares, quiçá para onde ?! . Caminhões de plástico, carros de madeira nas cores azul, verde, vermelho, esquecidos nos jardins ou quintais também desciam rua abaixo, desfilavam sem vontade e certamente trariam choro aos seus donos depois daquela
amaldiçoada tempestade. As roupas não poderiam deixar de marcar presença por sua composição leve; elas vinham sempre em pé, talvez porque os humanos tem essa tendência de erguer o nariz em forma de auto-afirmação para registrar sua superioridade animal e estas por estarem sempre coladas aos corpos aprenderam; elas também passavam deixando sua fragrância floral, para amenizar a ferocidade do vento intempestuoso que a cada segundo tornava-se mais irracional.

Natalia olhava, olhava...passando os braços ao redor de seus filhos, Marcos, Julia e André.

Natalia contava já com idade de trinta e seis anos e possuia maturidade para compreender as mudanças repentinas do planeta Terra. A meteorologia não indicava aquela tempestade e além do mais era verão !

Não, aquela tempestade não estava prevista, era estranha , muito estranha !

"Por que a senhora está olhando com essa cara séria, mamãe?" - perguntou André ? O pequeno André não possuia a maturidade da mãe e pulava de alegria por sentir a mudança de tempo. Os raios lhe traziam curiosidade, assim como trazem para muitas crianças quando ainda olham a natureza com olhos de pureza e de simples investigadores.

"Estou preocupada com essa chuva, por que estamos no verão, André. Só isto" - respondeu Natalia, com um ar sério, como se aquela chuva não fosse apenas chuva.

Natalia chamou Andre, Julia e Marcos para junto de si novamente, pois eles insistiam em ir para seus quartos. Puseram-se da janela da sala de onde podiam observar toda a ladeira abaixo, com suas avenidas, seus elegantes bangalôs, sua mansões, suas lâmpadas francesas, suas montanhas, suas lojas de sourvenirs e seus dois bancos.

A familia , calada, observou que o céu vestira-se completamente de preto. Não havia mais luz do lado de fora e nem do lado de dentro porque de um segundo a outro a eletricidade da cidade havia desaparecido, como ladrão após obter seu desejado infortúnio!

Natalia então, levada por pelo lado maternal, passou a mão sobre a cabeça dos três filhos, abençoou-os de pensamento apenas, abraçou-os um a um, dando um aperto especial e naquela cena ficou a contemplar o céu, com suas formas e apresentações. "Há momentos em que o homem é apenas homem e está preso a sua limitação" - pensou Natalia, e nada mais fez e a não ser voltar no tempo da sua infância...

O dia era ensolarado e ela em saias de tecido leve com flores em vermelho, azul e amarelo, como girassóis, corria atrás do pequeno Jaquie, pelos gramados que circundavam a casa onde vivera toda sua infância. Pensou na mãe, dona Antonia, com seu pulso firme, forte que de sempre em sempre gritava -"Natalia, deixe o cachorro em paz. Que menina danada !". Sim, dona Antonia era forte e sempre a casa andava em ordem por causa da presença constante dela.

Pensou no seu pai, Carlos, com sua natureza quieta, paciente, tranquila e amorosa!. Ela o vira naquele mesmo dia, pela tarde pela última vez, pois um infarto nefasto o levaria para sempre de sua vida.

Pensou na adolescência, quando conheceu Miguel, atual pai dos seus três filhos. Aquele moreno de olhos cor de mel, de sensibilidade tal como a dela, de pensamentos positivos, de mãoõs delicadas e pronto sempre a satisfazer as inquietudes de Natalia e dos futuros filhos. Lembrou do primeiro beijo de sua vida, atrás dos muros da faculdade de medicina e sentiu novamente o calor que envolveu-a dos pés à cabeça ! Sim, o primeiro beijo, aquele beijo que jamais esqueceria !. Enxergou também, pelo pensamento, o primeiro momento de ternura com Miguel, vividos já na casa pequena a beira do lado Prima, e no quanto cada instante vivido significa ainda até o presente ! Ela o amava profundamente, e este amor regado dia-a-dia tornava o lar equilibrado, forte contra as intempéries dos ensinamentos da vida.

Os pensamentos voaram no tempo e foram parar em Julia e no primeiro olhar trocado entre elas na maternidade. Julia estava de vestidinho cor de rosa, e olhou-a com a face também em cor de rosa, como a dizer "quem é você que me recebe ?". "Quem é você que agora me olha ?". "Quem é você que demonstra me amar ?". Julia, a bela Julia. Muitos foram os momentos de alegria vividos com ela, desde a infância até o momento de adolescência, ou melhor de aborrecência, quando tudo parece desmoronar e somente o amor pode resistir e sustentar.

Lembrou de Marcos, e na diferença de olhar. Marcos tinha um olhar firme, racional, um olhar de mestre do oriente!. Dificil encará-lo olho no olho...mas Natalia o encarava ! Natalia o vira desde pequeno e o sentia mais que qualquer outra pessoa. Natalia o viera chorar muitas vezes quando pequeno daí compreende-lo em cada fase. Com ela Marcos se abria, deixava-se tocar, deixava-se conhecer dia-a-dia.

Viajou no tempo e foi até o pequeno André de quatro anos, com sua ternura e sorriso. Ele havia sorrido pela primeira vez quando ainda contava poucas horas de vida. Natalia não podia identificar se havia sido realmente um sorriso ou apenas um gesto angelical dos bebês quando dormem, mas não importava, para ela havia sido o primeiro sorriso. Aquele André sempre a tocava pelo sorriso. André tinha a capacidade de sorrir e fazer sorrir aos demais, não importando a situação. Ele trazia dentro de si a capacidade de ser feliz só por ser feliz.

Sim, Natalia tinha em casa quatro criaturas, quatro personalidades, quatro maneiras diferentes de encarar a vida, de lutar pela vida.

Mas Natalia teve que voltar a si por causa do barulho insistente do vento forte de encontro a sua casa. Eram como socos de lutador de sumô; fortes e constantes. O telhado era novo, mas não aguentou e saiu voando. Em seguida, logo em seguida, foi a vez dos vidros que se rachavam como doentes terminais; alguns calados, outros bradando, se lamentando, agonizando. E o vento sufocante penetrou no lar, sem piedade, sem dor, sem cor, destruindo tudo que Natalia e sua família havia construído com zelo: foi levando a pia de mármore, a cama de jacarandá, a mesa em laca, a tv de 35 polegadas, o rádio de estimação de Julia, o sofá revestido com cetim, o tapete persa, o pequeno jacinto (periquito papo amarelo), e Natalia e as crianças nada podiam fazer.

O vento uirrava, derrubava tudo, furioso, incontrolável e espatifava de encontro ao piso os perfumes franceses, os xampus naturais, as fotografias das crianças, a fotografia de casamento, a fotografia dos pais de Natalia, as taças de primeiro lugar de natação de Marcos e Natalia nada podia fazer. Estava recolhida a um canto junto com as crianças que se entreolhavam assustadas, agonizantes.

E de um momento para o outro o pequeno André se soltou da mão de Natalia, que começou a gritar desesperada. André não pode ser contido pela mãe, pelos irmãos e bateu de encontro a quina do batente da porta e num grito apenas deu adeus a Natalia.

Veio o tumulto, as dores, as lágrimas, pois o pequeno André que tanto ria deu adeus com um grito. Natalia não conseguiu conter a emoção da partida, mas também nada podia fazer, porque diante da natureza o homem é como um grão de areia no mar, impotente ao seu destino.

De um instante para o outro o vento se foi, levantou asas e saiu dali, como um diabo que recém saido do inferno volta ao seu recôndito cheio de graças por espalhar a desgraça. O vento levou consigo a alma de André, mas não para o inferno, pois o lugar dos anjos é no céu e André havia sido um anjo na vida de Natalia, Miguel, Marcos e Julia. André havia passado rápido na vida terrena mas certamente não deixaria só a lembrança da sua partida repentina...

André e seu belo corpinho jaziam pendentes no batente da escada, pálidos como melão recém saído da horta, contudo, dos olhos, brilhava a luz daqueles que saem da vida sem culpa, e dos lábios, um sorriso para Natalia.

Fontes:
- Oceano de Letras.
- Imagem = http://fimdosdiasnaterra.blogspot.com/2010_05_01_archive.html

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