Naquele mesmo serão tia Nastácia teve de contar mais uma. E contou a história de
III O Sargento Verde
Era uma vez um homem muito rico, que tinha uma filha, linda, linda. Um dia apareceu um moço, também muito lindo, que quis casar com ela. Foi combinado o casamento, mas Nossa Senhora, que era madrinha de batismo da moça, apareceu-lhe num sonho e disse:
— Minha filha, toma cuidado, porque vais casar com o "cão". Depois do casamento teu marido há de querer levar-te para a casa dele, e o que tens de fazer é o seguinte: irás montada no cavalo mais magro que houver; quando chegares a um ponto do caminho, onde há uma encruzilhada, teu marido quererá tomar pela esquerda; tu tomaras pela direita e nesse momento lhe mostrarás um rosário. Ele então estoura e vai para o inferno.
Afinal chegou o dia do casamento e houve grandes festas, mas desde a noite do sonho a moça andava numa grande tristeza. As palavras de Nossa Senhora não lhe saíam da imaginação.
Na hora da partida trouxeram-lhe um lindo cavalo. Ela recordou-se do sonho e não quis montar nele; pediu outro — o mais magro e feio que houvesse. O pai estranhou aquela esquisitice, mas a moça tanto insistiu que ele teve de ceder — e lá se foi ela no cavalo mais magro e feio que havia.
Quando chegaram à encruzilhada, o "cão" quis que a moça tomasse pelo lado esquerdo, dizendo ser esse o caminho que levava à sua casa.
— Vá o senhor na frente — respondeu a moça — eu sigo atrás. — E assim que ele enveredou pela esquerda, ela tomou pela direita e sacudiu no ar o rosário.
Mal fez isso, ouviu-se um estouro e o ar se encheu de fedor de enxofre. É que o "'cão" havia rebentado e ido para o inferno.
A moça continuou a galope por aquele caminho da direita, até que bem lá adiante teve a idéia de mudar de figura. Apeou, cortou os cabelos e vestiu-se de homem — uma roupa verde. E, verdinha assim, chegou a um reino onde se ofereceu para entrar no exército do rei como sargento.
O rei gostou muito daquele sargento, a ponto de convidá-lo a passear com ele pelos jardins do palácio. É tantos passeios houve que a rainha ficou apaixonada pelo sargento e lhe declarou o seu amor. Mas o sargento respondeu: "Senhora, eu jamais trairei meu rei."
A rainha, furiosa da vida, levantou um falso contra ele, dizendo ao marido o seguinte:
— Saiba Vossa Majestade que o Sargento Verde anda se gabando de que é capaz de subir a cavalo as escadarias do palácio, jogando para o ar três laranjas e aparando-as no mesmo copo.
Admirado daquilo, o rei mandou chamar o Sargento Verde e contou-lhe o caso. O Sargento Verde respondeu:
— Saiba Vossa Majestade que eu não disse isso; mas como a rainha minha senhora afirma que eu disse, estou pronto para subir a cavalo as escadarias e jogar as três laranjas.
Disse aquilo por dizer e, muito triste da vida, foi conversar com o seu cavalo magro, ao qual contou tudo. O cavalo aconselhou-a a que não se amofinasse e que no dia marcado tudo fizesse como a rainha queria.
No dia marcado o Sargento Verde se apresentou para a grande prova, e de fato subiu e desceu várias vezes as escadarias, montado em seu cavalo magro; e lançou para o ar as três laranjas, que aparou di-reitinho no copo, sem errar uma só.
Teve os maiores aplausos de todos, menos da rainha, que mordeu os lábios de ódio.
Dias depois, num dos seus passeios pelos jardins do palácio, a rainha achou jeito de novamente lhe declarar amor — e pela segunda vez o sargento respondeu que jamais trairia o seu bom rei. A rainha, então, mais danada ainda, inventou que o Sargento Verde andava dizendo que era capaz de plantar uma bananeira à hora do almoço e ter bananas maduras à hora do jantar.
O rei mandou chamar o Sargento Verde e indagou dele se era verdade aquilo. O sargento respondeu que nada havia dito, mas como não queria desmentir a rainha, estava pronto para plantar a bananeira.
Disse isso e foi, muito triste, conversar com o cavalo magro, o qual lhe falou que plantasse a bananeira e deixasse o resto por sua conta.
No outro dia, lá pela hora do almoço, o Sargento Verde foi e plantou uma muda de bananeira no pátio do palácio, e a planta começou logo a crescer e a deitar cacho, de modo que quando o jantar foi posto na mesa já havia bananas maduras.
Todos abriram a boca de admiração, mas a rainha mordeu os lábios até verter sangue. Apesar disso, tentou mais uma vez o Sargento Verde, declarando-se apaixonada por ele, e o sargento pela terceira vez respondeu que jamais enganaria o seu bom rei. A malvada rainha então foi dizer ao marido que o Sargento Verde andava se gabando de ser capaz de passear a cavalo sobre ovos, sem quebrar um só. - -
O rei mandou chamá-lo e perguntou se era verdade. O Sargento Verde respondeu que não era, mas como não queria desmentir a rainha, estava pronto para andar a cavalo em cima dos ovos. E andou. Passeou montado no cavalo magro por cima de dúzias de ovos sem quebrar um só.
A rainha inventou contra ele uma quarta perversidade, e foi que ele andava dizendo ser capaz de ir ao fundo do oceano em busca da irmã do rei, que fora aprisionada por um monstro.
O rei chamou o Sargento Verde e indagou se era verdade. Ele disse que não, mas que estava pronto para ir ao fundo do mar em busca da princesa encarcerada. Disse isso e foi conversar com o cavalo magro, ao qual contou tudo.
— Não se amofine — murmurou o cavalo — arranje uma garrafa de azeite, um saquinho de sal e um papel de alfinetes; depois monte em mim e vá para a praia; lá puxe a espada e corte o mar em cruz: as águas se abrirão; entre pela abertura e vá até onde estiver a moça; agarre-a e ponha-a na garupa e toque para trás. Mas muito cuidado com o monstro que guarda a princesa; ele vai persegui-la, e o meio de evitar isso é derramar o saquinho de sal e depois soltar os alfinetes. Durante a corrida a moça pronunciará três palavras. Tome muito sentido nessas palavras.
O Sargento Verde prestou a maior atenção a tudo; arranjou o azeite, o sal, os alfinetes e partiu para a praia do mar. Lá puxou a espada e cortou as águas em cruz. Imediatamente as águas se abriram e ele entrou, e foi até onde estava a princesa encarcerada. Agarrou-a, botou-a à garupa e voltou correndo para a praia. Assim que saiu do mar, a moça disse: "Já!" Ele tomou nota da palavra e viu que o monstro vinha correndo atrás deles.
Lembrando-se da recomendação do cavalo, derramou o saquinho de sal. Imediatamente formou-se uma cerração que atrapalhou o monstro a ponto de fazê-lo parar, sem saber para onde dirigir-se. Enquanto isso, o moço continuava no galope, com a moça à garupa. Logo adiante ela murmurou "Bela!" O Sargento Verde tomou nota da palavra e viu que o monstro havia rompido o nevoeiro e vinha vindo na disparada. Então soltou no ar os alfinetes. Imediatamente se formou uma cerradíssima floresta de espinheiros, que o monstro não pôde atravessar.
Logo depois a princesa, avistando o palácio, murmurou "Tudo!" — e o Sargento Verde tomou nota. Chegaram, houve grandes festas e a rainha ficou ainda mais apaixonada pelo Sargento Verde.
Mas a princesa trazida do fundo do mar não falava. Além das três palavras ditas durante a viagem não pronunciou nem mais uma só. Todos se convenceram de que era muda — e a rainha se aproveitou do fato para lançar outra falsidade contra o Sargento Verde. "Ele anda dizendo — cochichou ao ouvido do rei — que é capaz de fazer a princesa muda falar."
O rei indagou do Sargento Verde se era verdade e ele respondeu como das outras vezes; depois foi perguntar ao cavalo o que devia fazer.
— Não tenha medo de nada — respondeu o cavalo. — Na hora do almoço, dê com uma corda na princesa até que ela conte qual foi a primeira palavra que pronunciou logo ao sair do mar; e na hora do jantar dê-lhe outra sova até que ela conte qual foi a segunda palavra; e na hora da ceia, outra sova até que diga a terceira palavra. Faça isso que a princesa ficará falando.
O Sargento Verde assim fez. Na hora do almoço passou mão numa corda e gritou: "Conte, moça, qual foi a palavra que me disse logo que saímos do mar!" E como ela se conservasse de boca fechada, êle, lepte! lepte! e tanto deu que ela falou: "Já!" "E que quer dizer isso?" Com mais algumas lambadas a moça respondeu que queria dizer: "Já estou livre de muitos trabalhos."
No jantar repetiu-se a cena, e tantas lambadas levou a princesa que repetiu a segunda palavra, "Bela!" e explicou que aquilo queria dizer: "Somos duas donzelas, eu e o Sargento Verde, cujo verdadeiro nome é Lucinda."
Na ceia, a corda fez que a moça repetisse a terceira palavra, "Tudo!" isto é, que se Lucinda fosse homem há muito tempo que a rainha já teria fugido com ele.
Esses acontecimentos assombraram menos ao rei e à corte do que verem Lucinda aparecer vestida de mulher, com o seu cavalo magro virado num lindo príncipe, que logo se casou com a princesa trazida do fundo do mar. O rei não perdoou a traição da rainha. Mandou que a soltassem pelos campos amarrada a dois burros bravos, e casou-se com a boa Lucinda, no meio de grandes festas. E acabou-se a história.
–––
Emília ficou a olhar a cara de Narizinho.
— Esta história — disse ela — ainda está mais boba que a outra. Tudo sem pé, nem cabeça. Sabe o que me parece? Parece uma história que era dum jeito e foi se alterando de um contador para outro, cada vez mais atrapalhada, isto é, foi perdendo pelo caminho o pé e a cabeça.
— Você tem razão, Emília — disse dona Benta. — As histórias que andam na boca do povo não são como as escritas. As histórias escritas conservam-se sempre as mesmas, porque a escrita fixa a maneira pela qual o autor a compôs. Mas as histórias que correm na boca do povo vão se adulterando com o tempo. Cada pessoa que conta muda uma coisa ou outra, e por fim elas ficam muito diferentes do que eram no começo.
— Quem conta um conto aumenta um ponto — lembrou Pedrinho.
— Sim, aumenta um ponto e introduz qualquer modificação. Ninguém que ouça uma história é capaz de contá-la para diante sem alteração de alguma coisa, de modo que no fim a história aparece horrivelmente modificada. Todas as histórias do folclore são assim. Há sábios que pegam nessas histórias e as estudam, e vão indo até encontrarem o seu ponto de. partida. E mostram as mudanças que o povo fez.
— Mudanças que as deixam sem pé nem cabeça — insistiu Emília. — Essa do Sargento Verde, por exemplo. É tão idiota que um sábio que quiser estudá-la acabará também idiota. Eu, francamente, passo essas tais histórias populares. Gosto mas é das de Andersen, das do autor do Peter Pan e das do tal Carroll, que escreveu Alice no Pais das Maravilhas. Sendo coisas do povo, eu passo...
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Continua… IV – A Princesa Ladrona
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Fonte: LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995. Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source
III O Sargento Verde
Era uma vez um homem muito rico, que tinha uma filha, linda, linda. Um dia apareceu um moço, também muito lindo, que quis casar com ela. Foi combinado o casamento, mas Nossa Senhora, que era madrinha de batismo da moça, apareceu-lhe num sonho e disse:
— Minha filha, toma cuidado, porque vais casar com o "cão". Depois do casamento teu marido há de querer levar-te para a casa dele, e o que tens de fazer é o seguinte: irás montada no cavalo mais magro que houver; quando chegares a um ponto do caminho, onde há uma encruzilhada, teu marido quererá tomar pela esquerda; tu tomaras pela direita e nesse momento lhe mostrarás um rosário. Ele então estoura e vai para o inferno.
Afinal chegou o dia do casamento e houve grandes festas, mas desde a noite do sonho a moça andava numa grande tristeza. As palavras de Nossa Senhora não lhe saíam da imaginação.
Na hora da partida trouxeram-lhe um lindo cavalo. Ela recordou-se do sonho e não quis montar nele; pediu outro — o mais magro e feio que houvesse. O pai estranhou aquela esquisitice, mas a moça tanto insistiu que ele teve de ceder — e lá se foi ela no cavalo mais magro e feio que havia.
Quando chegaram à encruzilhada, o "cão" quis que a moça tomasse pelo lado esquerdo, dizendo ser esse o caminho que levava à sua casa.
— Vá o senhor na frente — respondeu a moça — eu sigo atrás. — E assim que ele enveredou pela esquerda, ela tomou pela direita e sacudiu no ar o rosário.
Mal fez isso, ouviu-se um estouro e o ar se encheu de fedor de enxofre. É que o "'cão" havia rebentado e ido para o inferno.
A moça continuou a galope por aquele caminho da direita, até que bem lá adiante teve a idéia de mudar de figura. Apeou, cortou os cabelos e vestiu-se de homem — uma roupa verde. E, verdinha assim, chegou a um reino onde se ofereceu para entrar no exército do rei como sargento.
O rei gostou muito daquele sargento, a ponto de convidá-lo a passear com ele pelos jardins do palácio. É tantos passeios houve que a rainha ficou apaixonada pelo sargento e lhe declarou o seu amor. Mas o sargento respondeu: "Senhora, eu jamais trairei meu rei."
A rainha, furiosa da vida, levantou um falso contra ele, dizendo ao marido o seguinte:
— Saiba Vossa Majestade que o Sargento Verde anda se gabando de que é capaz de subir a cavalo as escadarias do palácio, jogando para o ar três laranjas e aparando-as no mesmo copo.
Admirado daquilo, o rei mandou chamar o Sargento Verde e contou-lhe o caso. O Sargento Verde respondeu:
— Saiba Vossa Majestade que eu não disse isso; mas como a rainha minha senhora afirma que eu disse, estou pronto para subir a cavalo as escadarias e jogar as três laranjas.
Disse aquilo por dizer e, muito triste da vida, foi conversar com o seu cavalo magro, ao qual contou tudo. O cavalo aconselhou-a a que não se amofinasse e que no dia marcado tudo fizesse como a rainha queria.
No dia marcado o Sargento Verde se apresentou para a grande prova, e de fato subiu e desceu várias vezes as escadarias, montado em seu cavalo magro; e lançou para o ar as três laranjas, que aparou di-reitinho no copo, sem errar uma só.
Teve os maiores aplausos de todos, menos da rainha, que mordeu os lábios de ódio.
Dias depois, num dos seus passeios pelos jardins do palácio, a rainha achou jeito de novamente lhe declarar amor — e pela segunda vez o sargento respondeu que jamais trairia o seu bom rei. A rainha, então, mais danada ainda, inventou que o Sargento Verde andava dizendo que era capaz de plantar uma bananeira à hora do almoço e ter bananas maduras à hora do jantar.
O rei mandou chamar o Sargento Verde e indagou dele se era verdade aquilo. O sargento respondeu que nada havia dito, mas como não queria desmentir a rainha, estava pronto para plantar a bananeira.
Disse isso e foi, muito triste, conversar com o cavalo magro, o qual lhe falou que plantasse a bananeira e deixasse o resto por sua conta.
No outro dia, lá pela hora do almoço, o Sargento Verde foi e plantou uma muda de bananeira no pátio do palácio, e a planta começou logo a crescer e a deitar cacho, de modo que quando o jantar foi posto na mesa já havia bananas maduras.
Todos abriram a boca de admiração, mas a rainha mordeu os lábios até verter sangue. Apesar disso, tentou mais uma vez o Sargento Verde, declarando-se apaixonada por ele, e o sargento pela terceira vez respondeu que jamais enganaria o seu bom rei. A malvada rainha então foi dizer ao marido que o Sargento Verde andava se gabando de ser capaz de passear a cavalo sobre ovos, sem quebrar um só. - -
O rei mandou chamá-lo e perguntou se era verdade. O Sargento Verde respondeu que não era, mas como não queria desmentir a rainha, estava pronto para andar a cavalo em cima dos ovos. E andou. Passeou montado no cavalo magro por cima de dúzias de ovos sem quebrar um só.
A rainha inventou contra ele uma quarta perversidade, e foi que ele andava dizendo ser capaz de ir ao fundo do oceano em busca da irmã do rei, que fora aprisionada por um monstro.
O rei chamou o Sargento Verde e indagou se era verdade. Ele disse que não, mas que estava pronto para ir ao fundo do mar em busca da princesa encarcerada. Disse isso e foi conversar com o cavalo magro, ao qual contou tudo.
— Não se amofine — murmurou o cavalo — arranje uma garrafa de azeite, um saquinho de sal e um papel de alfinetes; depois monte em mim e vá para a praia; lá puxe a espada e corte o mar em cruz: as águas se abrirão; entre pela abertura e vá até onde estiver a moça; agarre-a e ponha-a na garupa e toque para trás. Mas muito cuidado com o monstro que guarda a princesa; ele vai persegui-la, e o meio de evitar isso é derramar o saquinho de sal e depois soltar os alfinetes. Durante a corrida a moça pronunciará três palavras. Tome muito sentido nessas palavras.
O Sargento Verde prestou a maior atenção a tudo; arranjou o azeite, o sal, os alfinetes e partiu para a praia do mar. Lá puxou a espada e cortou as águas em cruz. Imediatamente as águas se abriram e ele entrou, e foi até onde estava a princesa encarcerada. Agarrou-a, botou-a à garupa e voltou correndo para a praia. Assim que saiu do mar, a moça disse: "Já!" Ele tomou nota da palavra e viu que o monstro vinha correndo atrás deles.
Lembrando-se da recomendação do cavalo, derramou o saquinho de sal. Imediatamente formou-se uma cerração que atrapalhou o monstro a ponto de fazê-lo parar, sem saber para onde dirigir-se. Enquanto isso, o moço continuava no galope, com a moça à garupa. Logo adiante ela murmurou "Bela!" O Sargento Verde tomou nota da palavra e viu que o monstro havia rompido o nevoeiro e vinha vindo na disparada. Então soltou no ar os alfinetes. Imediatamente se formou uma cerradíssima floresta de espinheiros, que o monstro não pôde atravessar.
Logo depois a princesa, avistando o palácio, murmurou "Tudo!" — e o Sargento Verde tomou nota. Chegaram, houve grandes festas e a rainha ficou ainda mais apaixonada pelo Sargento Verde.
Mas a princesa trazida do fundo do mar não falava. Além das três palavras ditas durante a viagem não pronunciou nem mais uma só. Todos se convenceram de que era muda — e a rainha se aproveitou do fato para lançar outra falsidade contra o Sargento Verde. "Ele anda dizendo — cochichou ao ouvido do rei — que é capaz de fazer a princesa muda falar."
O rei indagou do Sargento Verde se era verdade e ele respondeu como das outras vezes; depois foi perguntar ao cavalo o que devia fazer.
— Não tenha medo de nada — respondeu o cavalo. — Na hora do almoço, dê com uma corda na princesa até que ela conte qual foi a primeira palavra que pronunciou logo ao sair do mar; e na hora do jantar dê-lhe outra sova até que ela conte qual foi a segunda palavra; e na hora da ceia, outra sova até que diga a terceira palavra. Faça isso que a princesa ficará falando.
O Sargento Verde assim fez. Na hora do almoço passou mão numa corda e gritou: "Conte, moça, qual foi a palavra que me disse logo que saímos do mar!" E como ela se conservasse de boca fechada, êle, lepte! lepte! e tanto deu que ela falou: "Já!" "E que quer dizer isso?" Com mais algumas lambadas a moça respondeu que queria dizer: "Já estou livre de muitos trabalhos."
No jantar repetiu-se a cena, e tantas lambadas levou a princesa que repetiu a segunda palavra, "Bela!" e explicou que aquilo queria dizer: "Somos duas donzelas, eu e o Sargento Verde, cujo verdadeiro nome é Lucinda."
Na ceia, a corda fez que a moça repetisse a terceira palavra, "Tudo!" isto é, que se Lucinda fosse homem há muito tempo que a rainha já teria fugido com ele.
Esses acontecimentos assombraram menos ao rei e à corte do que verem Lucinda aparecer vestida de mulher, com o seu cavalo magro virado num lindo príncipe, que logo se casou com a princesa trazida do fundo do mar. O rei não perdoou a traição da rainha. Mandou que a soltassem pelos campos amarrada a dois burros bravos, e casou-se com a boa Lucinda, no meio de grandes festas. E acabou-se a história.
–––
Emília ficou a olhar a cara de Narizinho.
— Esta história — disse ela — ainda está mais boba que a outra. Tudo sem pé, nem cabeça. Sabe o que me parece? Parece uma história que era dum jeito e foi se alterando de um contador para outro, cada vez mais atrapalhada, isto é, foi perdendo pelo caminho o pé e a cabeça.
— Você tem razão, Emília — disse dona Benta. — As histórias que andam na boca do povo não são como as escritas. As histórias escritas conservam-se sempre as mesmas, porque a escrita fixa a maneira pela qual o autor a compôs. Mas as histórias que correm na boca do povo vão se adulterando com o tempo. Cada pessoa que conta muda uma coisa ou outra, e por fim elas ficam muito diferentes do que eram no começo.
— Quem conta um conto aumenta um ponto — lembrou Pedrinho.
— Sim, aumenta um ponto e introduz qualquer modificação. Ninguém que ouça uma história é capaz de contá-la para diante sem alteração de alguma coisa, de modo que no fim a história aparece horrivelmente modificada. Todas as histórias do folclore são assim. Há sábios que pegam nessas histórias e as estudam, e vão indo até encontrarem o seu ponto de. partida. E mostram as mudanças que o povo fez.
— Mudanças que as deixam sem pé nem cabeça — insistiu Emília. — Essa do Sargento Verde, por exemplo. É tão idiota que um sábio que quiser estudá-la acabará também idiota. Eu, francamente, passo essas tais histórias populares. Gosto mas é das de Andersen, das do autor do Peter Pan e das do tal Carroll, que escreveu Alice no Pais das Maravilhas. Sendo coisas do povo, eu passo...
–––––––––-
Continua… IV – A Princesa Ladrona
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Fonte: LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995. Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source
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