sábado, 27 de agosto de 2011

Monteiro Lobato (O Saci) XV – O Boitatá; XVI – O Negrinho


XV – O Boitatá

— Eu ouço falar na Iara e no Boitatá. Será que poderei ver um deles hoje? — perguntou Pedrinho.

— A Iara pode — respondeu o saci — porque há uma que mora por aqui, em certo ponto do rio; mas Boitatá, não. Só existe lá pelo sul.

— Como é?

— Pois o Boitatá é um monstro muito interessante. Quase que só tem olhos — uns olhos enormes, de fogo. De noite vê tudo. De dia não enxerga nada — tal qual as corujas. Dizem que certa vez houve um grande dilúvio em que as águas cobriram todos os campos do sul, e o Boitatá, então, subiu ao ponto mais alto de todos. Lá fez um grande buraco e se escondeu durante todo o tempo do dilúvio. E tantos anos passou no buraco escuro que seu corpo foi diminuindo e os olhos crescendo — e ficou como é hoje, quase que só olhos. Afinal as águas do dilúvio baixaram e o Boitatá pôde sair do buraco, e desde esse tempo não faz outra coisa senão passear pelos campos onde há carniça de animais mortos. Dizem que às vezes toma a forma de cobra, com aqueles grandes olhos em lugar de cabeça. Uma cobra de fogo que persegue os gaúchos que andam a cavalo de noite.

— Eu sei dessa história. É o fogo-fátuo. Vovó já nos explicou que esses fogos são fosforescências emitidas pelas podridões. No sul também existe a célebre história do Negrinho do Pastorejo. Conhece? Não será uma espécie de saci dos Pampas?

— Não. Trata-se de coisa muito diferente. Esse negrinho foi apenas um mártir. Sofreu os maiores horrores dum senhor de escravos muito cruel; morreu e virou santinho.

— Conte a história dele. E o saci contou.

XVI – O negrinho

— Havia um fazendeiro, ou estancieiro, como se diz lá no sul, que era muito mau para os escravos — isso foi no tempo em que havia escravidão neste país. Uma vez comprou uma ponta de novilhos para engordar em seus pastos. Era inverno, um dos piores invernos que por lá houve, de tanto frio que fazia.

— Negrinho — disse o estancieiro para um molecote da fazenda, que andava por ali. — Estes novilhos precisam acostumar-se nos meus pastos, por isso você vai tomar conta deles. Todas as tardes tem de tocar a ponta inteira para o curral, onde dormirão fechados, depois de contados por mim. Tome muito tento, hein? Se faltar na contagem um só que seja, você me paga.

O pobre molecote só tinha catorze anos de idade; mesmo assim não teve remédio senão ir para o campo tomar conta do gado. Era gado arisco, ainda não querenciado naquela fazenda, de modo que, para começar, logo no primeiro dia um dos novilhos faltou na contagem.

O estancieiro não quis saber de explicações. Vendo que o número não estava certo, botou o cavalo em que estava montado para cima do negrinho e deu-lhe uma tremenda sova de chicote. Depois disse:

— E agora é ir procurar o novilho que falta. Se não me der conta dele, eu dou conta de você, seu grandessíssimo patife!

E lept! — outra lambada por despedida.

O moleque, com as costas lanhadas e em sangue, montou no seu cavalinho e saiu pelos campos atrás do novilho. Depois de muito procurar, encontrou por fim o fujão, escondido numa moita.

“E agora?”, pensou consigo. “Tenho de laçar este novilho, mas meu laço está que não vale nada, de tão velho, e eu estou tão escangalhado pela sova que ainda valho menos que o laço. Mas não há remédio. Tenho que ir até o fim...”

E, aproximando-se com muito jeito, laçou o novilho.

Se fosse só laçar, estaria tudo muito bem. Mas tinha de trazer o boizinho por diante, até o curral. Teria ele forças para isso? O laço agüentaria?

Não agüentou. Com meia dúzia de sacões o novilho desembaraçou-se do laço, arrebentando-o, e lá se foi pelos campos afora na volada.

E agora? Voltar para casa sem novilho e sem laço? O furor do estancieiro iria explodir como bomba.

Voltou.

— Que é do novilho? — indagou o patrão assim que o negrinho apareceu no terreiro.

— Escapou, patrão. Lacei ele, mas o laço estava podre e não agüentou, como sinhô pode ver por este pedaço.

Se o estancieiro não fosse um monstro de maldade, convencer-se-ia logo, vendo, pela ponta do laço, que o negrinho andara direito. Quando o laço arrebenta, a culpa da presa escapar não é do laçador, sim do laço. Não pode haver nada mais claro no mundo. Mas o estancieiro, que tinha comido cobra naquele dia, em vez de dar-se por convencido, mais colérico ainda ficou.

— Cachorro! — exclamou, espumando de raiva. — Você vai ter o castigo que merece.

O dito, o feito. Agarrou o negrinho, amarrou-o pelos pés com a ponta do laço e depois de bater nele com o cabo do relho até cansar, teve uma idéia diabólica: botá-lo num formigueiro para ser devorado vivo pelas formigas.

Assim fez. Arrastou-o para um sítio onde existia um enorme formigueiro de formigas carnívoras, arrancou as roupas do coitadinho e deixou-o amarrado lá.

No dia seguinte foi ver a vítima, com a idéia de continuar o castigo, caso o grande criminoso não estivesse morto e bem morto. Chegando ao formigueiro, levou um grande susto. Em vez do negrinho, viu uma nuvem que se erguia da terra e logo se sumiu nos ares.

A notícia desse acontecimento correu mundo. Os homens daquelas bandas começaram a considerar o negrinho como um mártir que tinha ido direito para o céu.

Com o tempo virou um verdadeiro santo. Quem quer qualquer coisa, na campanha do Rio Grande, antes de pedi-la a Santo Antônio ou a outro santo qualquer, pede logo ao Negrinho do Pastorejo.

— E ele faz?

— Está claro que faz — sempre que pode. Como sofreu muito, sabe avaliar os apertos dos outros e ajuda-os no possível.
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continua... XVII - Meia-noite; XVIII – Saída dos sacis
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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