XVII – Meia-noite
Nesse ponto da prosa a flor que servia de relógio abriu-se toda.
— É hora! — exclamou o saci. — Estamos justamente no meio da noite.
Apesar de valente, Pedrinho não deixou de sentir um certo arrepio pelo corpo. Primeira vez na vida em que ia passar uma noite inteira na mata — e não seria uma noite comum, pelo que dizia o saci.
— Não se arreceie de coisa nenhuma. Deixe tudo por minha conta, que nada de mal há de acontecer — disse o saci, correndo os olhos em redor como em procura de alguma coisa. — Venha comigo. Há ali uma peroba minha conhecida, onde encontraremos o melhor dos refúgios.
De fato. Na tal peroba havia um oco, a doze pés acima do chão, muito próprio para esconderijo. Dentro dele os dois acomodaram-se à vontade e de modo a tudo poderem ver sem perigo de serem vistos.
— Muito bem — disse o menino — mas só quero saber como poderei enxergar qualquer coisa de noite, dentro desta floresta que de dia já é tão escura.
— Para tudo há remédio — foi a resposta do saci. — Espalharei pelas árvores vizinhas centenas de lanternas vivas, de modo que você enxergará como se fosse dia. Mas antes é preciso que coma estas sete frutinhas vermelhas — concluiu, apresentando ao menino um punhado de frutinhas do tamanho de amoras-bravas.
Pedrinho desconhecia aquelas frutas e foi com uma careta que mordeu a primeira, tão amarga era. Mas comeu as sete, e logo em seguida sentiu uma deliciosa tonteira invadir-lhe o corpo, deixando-o num esquisito estado de consciência jamais sentido. Era como se estivesse dormindo acordado.
Enquanto isso, o saci repetiu em tom diferente o assobio com que chamara o serra-pau; mas dessa vez não veio serra-pau nenhum, sim uma enorme quantidade de vaga-lumes, dos grandes e dos pequenos. Vieram e foram pousando nas folhas e galhos das árvores vizinhas, como se algum invisível guia lhes estivesse a indicar os lugares. O coração da floresta clareou num círculo de cem metros de diâmetro, como se fosse batido pelo luar da lua cheia.
Pedrinho estava a gozar o espetáculo da floresta iluminada pelas lanterninhas vivas, quando surgiu na claridade o primeiro saci. E logo outro, e outro, e todo um bando de mais de cem. Começaram a pular, a dançar e a conversar numa linguagem que o menino muito sentiu não entender.
— Estão combinando as travessuras que vão fazer durante a noite. Daqui a pouco todos partem, só ficando os pequeninos que ainda não podem correr mundo — explicou o saci cochichando-lhe ao ouvido.
Pedrinho enxergou um de cara chamuscada — com certeza o que fora vítima da explosão do pito do Tio Barnabé. Mas os sacis foram se dispersando, de modo que ao cabo de alguns minutos só se viam por ali os pequeninos como camundongos.
— Para onde foram? — perguntou Pedrinho.
— Oh, eles espalharam-se por toda parte. Ainda está por haver um lugarzinho onde saci não entre.
— Até nas garrafas... — disse o menino, sorrindo.
XVIII – Saída dos sacis
Nem em sonhos Pedrinho jamais esperou que pudesse observar um quadro mais curioso. Aqueles minúsculos capetinhas eram as mais travessas e irrequietas criaturas que se possam imaginar. Não paravam um só instante. Cabriolavam nos musgos do chão, pulavam como pulgas, dançavam, inventavam mil travessuras. E tudo faziam sem por um só instante tirarem o pitinho da boca.
Deram-se cenas muito engraçadas. Três deles ficaram muito atentos, de narizinho para o ar, observando um morcego que despreocupadamente comia frutinhas de uma enorme figueira. Depois de cochicharem entre si, treparam à figueira, com todas as cautelas para não assustar o morcego. Foram por trás dele e, de repente — zás!... pularam-lhe ao lombo, como perfeitos cowboys! O morcego levou um grande susto e começou a corcovear no ar, em vôos tontos, enquanto os três cavaleiros, firmes na sela como carrapatos, davam assobios agudíssimos num grande contentamento.
Outro havia trepado a um arbusto e descoberto um ninho de beija-flor com três ovinhos. Imediatamente deu brado de alarma, chamando os companheiros. Reuniu-se um bando em redor do ninho, cujos ovos foram retirados e levados para o chão. Lá acenderam uma minúscula fogueirinha e assaram os ovos e os comeram com grande alegria e gulodice.
E quantas outras travessuras não observou Pedrinho! Os que agarraram um pobre caramujo pelos chifrinhos e fizeram prodígios para arrancá-lo da casca. Os que se divertiam em caçar vaga-lumes, matá-los e esfregar pelo corpo a substância fosforescente que os torna luminosos. Os que cavavam a terra descobriam minhocas, emendavam três e quatro para fazer uma corda de pular...
Pedrinho estava completamente absorvido naquele curioso espetáculo; e assim passaria a noite se em certo momento o saci não o puxasse para o fundo do oco.
— Cuidado! — disse ele. — Estou sentindo catinga de lobisomem. Meu faro nunca se engana...
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continua... XIX - Lobisomem ; XX – Mula sem cabeça
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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