quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Monteiro Lobato (O Saci) XI – Discussão; XII – O jantar


XI – Discussão

O saci deu uma gargalhada.

— Que gabolice! — exclamou. — Casas? Qual é o bichinho que não constrói sua casa na perfeição? Veja a das abelhas ou das formigas, ou os casulos. Poderão existir habitações mais perfeitas? Todos aqui na mata moram. Cada um inventa o seu jeito de morar. Todos moram. Todos, portanto, têm suas casinhas, onde ficam muito mais bem abrigados do que os homens lá nas casas deles. O caramujo, esse então até inventou o sistema de carregar a casa às costas. É o mais esperto. Vai andando. Assim que o perigo se aproxima, arreia a casa e mete-se dentro.

— Casa, vá lá — disse Pedrinho meio convencido. — Mas aeroplano? Que bichinho daqui seria capaz de construir aviões como nós, homens, os construímos?

Outra risada do saci.

— Olhe, Pedrinho, você está-me saindo tão bobo que até me causa dó. Aviões! Pois não vê que o avião é a mais atrasada máquina de voar que existe? Aqui os bichinhos de asas estão de tal modo adiantados que nenhum precisa de mostrengos como o tal avião. Todos possuem no corpo um aparelho de voar aperfeiçoadíssimo. Não vê que voam, bobo? Outro dia assisti a uma cena muito interessante. Eu estava perto duma lagoa cheia de patos, quando um avião passou voando por cima das nossas cabeças. Os patos entreolharam-se e riram-se. Você sabe, Pedrinho, que bicho estúpido é o pato. Pois mesmo assim um deles disse com muita sabedoria: “Parece incrível que os homens se gabem de ter inventado uma coisa que nós já usamos há tantos milhares de anos...”

— Sim — continuou Pedrinho — mas nós sabemos ler e vocês não sabem.

— Ler! E para que serve ler? Se o homem é a mais boba de todas as criaturas, de que adianta saber ler? Que é ler? Ler é um jeito de saber o que os outros pensaram. Mas que adianta a um bobo saber o que outro bobo pensou?

Era demais aquilo. Pedrinho encheu-se de cólera.

— Não continue, saci! Você está me ofendendo. O homem não é nada do que você diz. O homem é a glória da natureza.

— Glória da natureza! — exclamou o capetinha com ironia. — Ou está repetindo como papagaio o que ouviu alguém falar ou então você não raciocina. Inda ontem ouvi Dona Benta ler num jornal os horrores da guerra na Europa. Basta que entre os homens haja isso que eles chamam guerra, para que sejam classificados como as criaturas mais estúpidas que existem. Para que guerra?

— E vocês aqui não usam guerras também? Não vivem a perseguir e comer uns aos outros?

— Sim; um comer o outro é a lei da vida. Cada criatura tem o direito de viver e para isso está autorizada a matar e comer o mais fraco. Mas vocês, homens, fazem guerra sem serem movidos pela fome. Matam o inimigo e não o comem. Está errado. A lei da vida manda que só se mate para comer. Matar por matar é crime. E só entre os homens existe isso de matar por matar — por esporte, por glória, como eles dizem. Qual, Pedrinho, não se meta a defender o bicho homem que você se estrepa. E trate de fazer como Peter Pan, que embirrou de não crescer para ficar sempre menino, porque não há nada mais sem graça do que gente grande. Se todos os meninos do mundo fizessem greve como Peter Pan, e nenhum crescesse, a humanidade endireitaria. A vida lá entre os homens só vale enquanto vocês se conservam meninos. Depois que crescem, os homens viram uma calamidade, não acha? Só os homens grandes fazem guerra. Basta isso. Os meninos apenas brincam de guerra.

Pedrinho nada respondeu. Estava um tanto abalado pelas estranhas idéias do saci. Quando voltasse para casa iria consultar Dona Benta para saber se era assim mesmo ou não.

XII – O jantar

O sol já estava descambando e o menino sentiu fome. Havia esquecido de trazer matalotagem.

— Amigo saci, estou sentindo uma coisa chamada fome. Mostre-me a sua habilidade em sair-se de todos os apuros, arranjando um jantar.

— Nada mais fácil — respondeu o pernetinha. — Gosta de palmito?

— Gosto, sim. Mas como poderemos derrubar uma palmeira tão alta para colher o palmito? Sem machado é impossível.

O saci deu uma risada.

— Não há impossíveis para mim, quer ver? — e metendo dois dedos na boca, tirou um agudo assobio.

Imediatamente um enorme besourão, chamado serra-pau, surgiu do seio da floresta. O saci fez-lhe uns sinais e o besourão, voando para o alto duma palmeira de tronco fino, mas muito alta, abarcou a base do palmito entre os seus ferrões dentados como um serrote e começou a girar com grande velocidade, zunindo como um aeroplano — zunnn...

Em menos de cinco minutos o tronco da palmeira estava serrado, e o palmito, acompanhado da copa, veio com grande estardalhaço ao chão.

— Bravos! — exclamou o menino. — Nunca imaginei que nesta mata houvesse serrador tão hábil. Quero agora ver como você prepara o petisco.

— Muito fácil — disse o saci. — Fogo não falta. Tenho sempre fogo no meu pitinho. Panelas também não faltam. É só procurar por aí alguma casca de tatu. Água temos dentro dos gomos de taquara; basta rachar um ou dois. E para gordura, é só quebrar uma porção de coquinhos e espremer entre duas pedras o óleo das amêndoas.

— E sal?

— É o mais difícil; mas como há mel, você comerá palmito preparado sob forma de doce, que é ainda mais gostoso.

E assim foi feito. Em menos de vinte minutos estava diante de Pedrinho uma casca de tatu cheia de um doce de palmito muito bem preparado. O menino comeu a fartar e ainda teve uma sobremesa de amoras-do-mato, que o saci colheu ali mesmo.

— Há muito tempo que não como com tanto apetite! — comentou Pedrinho depois que encheu o papo. — Você é um cozinheiro ainda melhor que Tia Nastácia, que é a primeira cozinheira do mundo.

E, dando tapinhas na barriga, pôs-se a palitar os dentes com um comprido espinho de brejaúva.

A tarde ia morrendo. Não tardou que Pedrinho visse brilhar no céu, por entre uma nesga aberta na copa das árvores, a primeira estrelinha.

Que coisa impressionante era a noite! Até aquele momento Pedrinho ainda não havia prestado atenção nisso. Noite em casa não é noite. Acende-se o lampião, fecha-se a porta da rua — e que é da noite?

Mas ali, oh, ali a noite o era de verdade — das imensas, das completamente escuras, apenas com aqueles vaga-lumes parados no céu que os homens chamam estrelas...
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continua... XIII - Novas discussões; XIV – O medo
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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