sábado, 20 de agosto de 2011

Paulo Setúbal (Alma Cabocla) 1


CHIQUITA

"Bom dia! Sempre bonita?"
— É assim que eu vou, de manhã,
Saudar a linda Chiquita,
Que, toda em frios, tirita
No seu vestido de lã.

Maneiras brandas e amenas,
Olhos de negro fulgor,
Chiquita, a flor das morenas,
Com seus quinze anos apenas,
É um mimo de graça e amor.

De estranho tédio ferida
No seu colégio francês,
Quisera, langue e abatida,
Mudar um pouco de vida,
Passar nos campos um mês.

E em festa e risos, agora,
Nos ares bons do sertão,
Chiquita se revigora,
E alegra-se, e viça, e cora,
Como uma rosa em botão.

Mal surge, fresca e orvalhada,
No céu azul, a manhã,
Saímos nós pela estrada,
Com alma leve, e dourada
Pela alegria mais sã.

Que graça!... Ela tudo admira:
O campo, as roças, os bois.
Às vezes passa um caipira,
Que, com espanto, nos mira,
E fica a rir de nós dois!

Em casa, o dia inteiro, ela
Faz mil perguntas pueris.
Ah, como é ingênua e singela!
Conversa. Ri. Tagarela.
É um pássaro feliz!

Sol a pino, a todo transe,
Quer ir saltar no café;
E à volta, sem que descanse,
Começa a ler um romance,
Ou trabalhar num croché

De quando em quando, um espinho
Sangrar o peito me vem.
A tarde inteira, sozinho,
Sentado ao pé do caminho,
Fico a lembrar-me de alguém.

Eis que ela chega, de branco,
Cabelo negro, em bandós;
Festiva, num riso franco,
Ali, no pobre barranco,
Sentamos os dois a sós...

Na tarde azul, merencória,
Dum sossego espiritual,
Chiquita, como uma glória,
Repete-me toda a história
Da vida de colegial.

Então, nesse ermo pacato,
Ela, menina e mulher,
Relembra, fato por fato,
As diversões do internato,
Os ralhos da Notre-Mère...

Fala... E eu, ouvindo a macia
Brandura do seu falar,
Sinto, no olhar que me envia,
A doce melancolia
Do seu nostálgico olhar.

Não há feitiço que prenda
Como o dulçor dessa voz.
Assim, sem que ela o compreenda
Chiquita é o sol da fazenda,
É a festa de todos nós!

NHÔ JOÃO, O TROPEIRO

Por essas noites de frio,
Batidas de água e tufão,
Num rancho, à beira do rio,
Eu me quedo, horas a fio,
A conversar com nhô João.

É um velho... Rude e trigueiro,
Envolto num ponche azul,
Fumando, a olhar o braseiro,
Começa o antigo tropeiro
Contar-me histórias do Sul.

Ao longe, muito a distância,
Os tempos perdem-se já,
Em que ele, todo arrogância,
Ia de estância em estância,
Buscando tropas por lá.

Na sua besta tordilha
De manchas brancas no pé,
Nhô João, tocando a tropilha,
Cortava muita coxilha
Para chegar em Bagé!

E lá, de tais cercanias,
Ele, viril rapagão,
Puxava, dias e dias,
Pontas de mulas bravias.
Para vender no sertão.

Que linda! Assim que a alvorada
Tingia o céu de listrões,
Já a tropa, a chucra manada,
Trotava ao longo da estrada,
Por entre a grita dos peões:

Eh mula! Vorta! Caminha!
E os ecos vibravam no ar,
Enquanto, lerda e sozinha,
Ia na frente a madrinha
Com seu cincerro a tocar...

Que vida simples e honesta!
Como era bom, no verão,
Ter o descanso da sesta,
No meio duma floresta,
À beira dum ribeirão!

À tarde, quando caía
A sombra crepuscular,
Era de ver a alegria,
Com que a peonada escolhia
Um sítio para acampar.

Então, descendo as bruacas,
Queimados, fulvos de suor,
Sobre improvisas estacas,
Erguiam logo as barracas,
Soltando a tropa em redor...

Ah, nada mais delicioso,
Ah, nada mais doce então,
Do que, na calma do pouso,
Ter um churrasco cheiroso,
E a cuia de chimarrão!

E entre histórias de rodeio,
Contos, gauchadas febris,
Aos poucos, num devaneio,
Sobre os pelegos do arreio,
Dormir um sono feliz...

E o velho, a voz rude e grossa,
Relembra com efusão:
"Que viage... Êta festa — nossa!
— No dia em que Ponta Grossa
Despontava no espigão..."

A história sempre ele acaba,
Pintando, com muita cor,
As feiras de Sorocaba,
Onde encontrara uma "diaba"
Por quem morrera de amor...

Assim, lembrando o passado,
Nhô João, com frio desdém,
Termina desconsolado:
"Hoje tá tudo mudado!
Vem tudas coisa no trem…

E ali, no humilde pardieiro,
Envolto num ponche azul,
Saudoso, olhando o braseiro,
Conta-me o velho tropeiro
Longas histórias do Sul...

Fonte:
SETÚBAL, Paulo. Alma Cabocla. Belém,PA: NEAD – Universidade da Amazônia.

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