quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Ignácio de Loyola Brandão (O Homem Que Gritou Em Plena Tarde)


Parou para espiar a vitrine. Sapatos e bolsas, pretos amarelados marrons, azuis. Não estava interessado em sapatos e bolsas. Olhava por olhar. Passava todos os dias por ali, cada dia observava uma vitrine, uma loja, um balcão, um canto. Costumava também olhar para cima. E assim tinha descoberto coisas que, era uma certeza, outros não viam. Um beiral antigo, esquecido na fachada de um prédio. Uma cornija. Uma grade, uma janela com vidros desenhados, vaso de flores, gaiola com pássaros, retrato pregado numa veneziana, números no alto de portais, rostos atrás de vidraças, aquários. Levava esbarrões, xingos, o que faz aí parado, seu bestalhão, pô, nesta cidade tem de tudo; até gente parada de boca aberta. Não ligava, falavam por falar, para ter alguma coisa contra o que reclamar.

Enquanto admirava a vitrine, ouviu os passos. Era a primeira vez que prestava atenção no ruído dos passos. Virou-se, observando os pés do povo. Os sapatos batiam no calçamento; uns arrastavam os pés; outros saltitavam; uns pareciam flutuar. O que o impressionava mesmo era o barulho. Não, não era o barulho, percebeu. Era o silêncio, dentro do qual os passos sobressaiam. Um silêncio espesso dentro da tarde. De tal modo que ele podia, com nitidez, distinguir cada ruído. O dos passos, o das vozes, o dos murmúrios (mesmo das pessoas que falavam sozinhas), dos chamados, das máquinas de escrever por trás das paredes, dos apitos dos guardas, de nomes gritados, sussurrados, chamados, de músicas que se confundiam, como se as letras fossem coisas absurdas, sem sentido algum, de motores engrenando, funcionando, buzinas, choros, soluços, zumbidos. Seu ouvido captava e selecionava, como um aparelho estereofônico, capaz de enviar para alto-falantes diversos, sons de instrumentos diferentes.

O silêncio pareceu incômodo a um homem acostumado dentro da cidade barulhenta, irritadiça, insuportável. O seu dia a dia era constituído quase que por um barulho só, homogêneo, que se integrara à sua vida. Algo de que ele dependia, que fazia falta ao seu organismo. Só conseguia pensar, trabalhar com eficiência, dentro daquele conjunto de ruídos absorventes que lhe davam a certeza de que a cidade marchava, à pleno vapor, e ele era parte dela, um acréscimo. E que sem ele, e sem ele — o outro — numa escala infinita, esta cidade iria parar, quebrando toda uma estrutura.

Então, aquele silêncio distinto, imenso vazio dentro da tarde, provocou nele primeiro um sentimento de desconforto. Em seguida, veio a insegurança, a dúvida sobre sua situação. Estava na sua própria cidade, ou caíra de repente dentro de um pesadelo? Quando o homem duvida, o seu mundo cai em ruínas, desaparecem os pontos de apoio, os suportes familiares e ele se balança como boneco João-teimoso.

O desconforto surgiu e ele teve vontade de gritar. Mas, se gritasse, iriam achar que ele estava louco. E os loucos são eliminados dos grupos normais. Mas ele queria gritar. O ar que enchia o seu corpo precisava ser expelido. Sentia-se como o pneu que suporta vinte e duas libras e está com trinta e cinco, a ponto de estourar. Os músculos do seu peito, a carne toda, doíam, dentro da tensão. Então, gritou. Ouviu o grito com nitidez dentro do silêncio que abrigava os ruídos da tarde. Olhou assustado para as pessoas e foi como se elas estivessem surdas. Nem se viraram. Gritou de novo, percebendo que o primeiro grito fora mais um urro, só para expulsar a massa de ar. E gritou. E gritou de frente para uma moça de amarelo. E a moça gritou. E os dois gritaram juntos, e sorriram. Viram outros sorrindo.

Gritaram os dois; e eram três. Gritaram os quatro; e eram cinco. Gritaram todas as pessoas naquela quadra. As que passavam, as que passeavam, as que olhavam vitrines, as que olhavam para o chão, as que entravam e saíam dos prédios. Gritavam, e o grito ecoou pela rua. Foi respondido. Gritaram na esquina. E na outra esquina. Na praça. Gritaram de dentro dos ônibus, dos carros, no interior dos cinemas e dos escritórios, gritaram nos mictórios e nas lanchonetes, nos bancos e doçarias. E no fim da tarde, quando o sol se pôs, não havia mais ruídos, nem silêncio, apenas o grito, uniforme, uníssono, unânime, solidário, de seis milhões de pessoas. Grito sem fim, enquanto a noite descia.

Fonte:
Brandão, Ignácio de Loyola. Cadeiras Proibidas. Rio de Janeiro, Codecri, 1984.

Nenhum comentário: