Não é fácil assumir que, de fato, somos analfabetos culturais. É difícil aceitar que o conhecimento enciclopédico e os títulos acadêmicos que porventura temos não são garantia de que sejamos culturalmente alfabetizados. Sabemos ler e escrever, podemos conhecer as teorias, dominar os conceitos filosóficos, políticos, etc., mas isto, longe de nos aproximar do outro e da nossa própria humanidade, pode, paradoxalmente, ter um efeito inverso e perverso: o distanciamento do mundo real, da mísera realidade que nos cerca. Tendemos a tudo racionalizar e nada sentir. O adágio “Penso, logo existo” sugere uma questão: existir para quê? Para além do pensar, que nos dá a certeza do existir, é preciso sentir que existimos.
O especialista tende a separar a palavra do mundo, o conceito da realidade. As palavras dissociam-se da vida real, das contradições, sofrimentos e esperanças dos que vivem no mundo. Se quisermos ir além do saber livresco, do formalismo titulado, enfim, do “balé dos conceitos”[1], precisamos superar os limites da fria racionalidade e assumirmos uma postura diante do mundo.[2] É preciso sentir, indignar-se, comprometer-se. Os que dominam a palavra escrita iludem-se em equivaler conhecimento formal e alfabetização cultural. O ser humano cujas condições sócio-econômicas não lhe permitiu freqüentar os bancos universitários tem o que ensinar. Para compreender este fato singelo é mister desmistificar a noção de cultura, predominante e arraigada em nossos corações e mentes, que confunde cultura com saber acadêmico.
O saber racionalista e eurocêntrico é importante, mas também é fator de colonização das nossas mentes e herança introjetada em nosso ser. Se nos atermos a isto, nos tornamos analfabetos culturais. O resultado é a cegueira da consciência, a anulação da subjetividade e da intersubjetividade. Só superando esta cegueira é que teremos condições de estabelecer o diálogo com o outro. Portanto, o comprometimento intelectual, ou o engajamento, não nos torna necessariamente melhores nem indica que estejamos alfabetizados culturalmente.
A alfabetização cultural é parte da construção da utopia que respeita a subjetividade e estabelece o dialogo entre as diferentes manifestações étnicas, de gênero e de classe. Isto pressupõe uma concepção não elitista da cultura e uma postura pedagógica apoiada na autodeterminação. É preciso, portanto, incorporar uma nova atitude fundada na compreensão de si e no diálogo com o outro, uma atitude que persiga a coerência entre os meios e os fins, entre o discurso e a prática.
Não é fácil, pois os valores dominantes nos envolvem o tempo todo. Mesmo intelectuais críticos e militantes dos movimentos sociais, partidos etc., encontram-se impregnados pela cultura opressiva – muitos querem libertar os oprimidos, mas atuam na mesma perspectiva dos opressores. Muitas vezes, cegos em seu fanatismo, nem percebem. Os valores predominantes da competição, do vigiar e punir fundados em prêmios e castigos, são muito fortes e impõem barreiras à uma nova atitude solidária e dialógica.
A alfabetização cultural exige o reconhecimento das nossas fraquezas, do “bicho”[3] que habita em nós. Resistir é fundamental, mas também é preciso construir barricadas que sustentem a nova atitude. Os que agem como demiurgos da história, missionários da utopia, apóstolos da razão, em geral praticam o oposto. O discurso, mesmo quando crítico e pretensamente democrático, é negado pela prática autoritária. É preciso estimular a reflexão sobre as nossas incoerências e as possibilidades de ser e agir diferente. É necessário esforçar-se continuamente para conhecer-se a si mesmo!
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* Versão modificada e inspirada na resenha “Sobre o Analfabetismo Cultural: dialogando com Dan Baron” (BARON, Dan. Alfabetização Cultural: a luta íntima por uma nova humanidade. São Paulo: Alfarrabio Editora, 2004), publicada na REA nº. 37, junho de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/037/37res_baron.htm
[1] Como assinalou Paulo FREIRE: “Em última análise, tornamo-nos excelentes especialistas, num jogo intelectual muito interessante – o jogo dos conceitos! É um “balé de conceitos”. (FREIRE, P e SCHOR, I. Medo e ousadia – O cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.131).
[2] Ver “Os intelectuais diante do mundo: engajamento e responsabilidade”, publicado na REA, nº. 29, outubro de 2003, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/029/29pol.htm
[3] O mal habita em nós, como o bem. A natureza humana é boa e má, e deve ser analisada em relação com os contextos sociais específicos – os quais modificam inclusive a moral. Maquiavel, Thomas Hobbes, Rousseau e outros se debruçaram sobre este tema. Mas também na literatura encontramos obras que nos ajudam a refletir sobre a natureza humana e a vida em sociedade. É o caso, por exemplo, de O Senhor das Moscas”, escrito por William Golding (São Paulo: Folha, 2003). É inspirado nesta obra que utilizo o termo “bicho”.
Fonte:
Blog do Ozaí
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