domingo, 21 de janeiro de 2024

Carolina Ramos (Começar de novo…)

Deixou um punhado de terra escapar devagarinho por entre os dedos. Valera a pena?!…

O estardalhaço dos jornais esquecidos pelo patrão e lidos a duras penas acendera o pavio. A bomba explodira, em seguida, fragmentando uma vida inteira! Vida de um simples, até ali, pacata e sem maiores ambições.

Serra Pelada! O que dela se dizia era para virar a cabeça de qualquer um!

O fascínio da aventura e a perspectiva de um sucesso rápido arrastaram aquele moço... não, propriamente, até Serra Pelada, inviável pela distância, mas até o garimpo mais próximo dele. Não tão próximo... nem tão distante, que não coubesse no sonho que já atraía gente de todos os lados.

Levara com ele a família completa, mulher e filho, de quatro anos - Serelepe, para quem ria com suas travessuras... e apenas Serê, para os pais.

Sentira saudade daquele pequeno pedaço de chão fértil, que até parecia seu e que havia trocado pela terra do garimpo, seca, fugida por entre os dedos. Custara a dividir com a mulher aquele sonho inquietante e doido. Doido... e doído... muito doído, sim! - acrescentava isto agora!

Naquele tempo, o sonho era apenas instigante. A mulher aceitara a ideia com inquietação e alguns protestos - embora por motivos opostos.

- Serra Pelada?! Virge!... Ocê tá loco, home?!

- Num tô loco, não, amô! Num é Serra Pelada, não, Dorinha, é bem mais perto! E é pur uns seis méis só! Um ano tarveis... no máximo! Garanto qui vortamo rico! Vô peão... e vorto patrão! Juro que vorto!

Sem lograr convencer a mulher, ele insistira: - Nosso fio vai tê um ané de dotô no dedo! E é lá que eu vô achá o ôro desse ané. Carece só chegá... metê os braço no trabaio... i enche as mão di ôro!

Voltando ao presente, afastou os pensamentos, como quem espanta uma vespa incômoda. Encheu novamente a mão de terra... Valera a pena?!...

Não liberado para viajar sozinho, carregara, teimoso, mulher e filho a tiracolo, na garupa do baio.

Viagem dura! Estirão de alguns dias! E Serê insistindo de quando em vez: - Faiz pocotó, pai, faiz... E o pai, explicando paciente:

- Nem pensá... minino! Galopeá agora é num querê chegá... ou intão querê chegá di a pé! O baio nun guenta, não! Vamu cum carma, moleque!

Não gostara do que vira logo à chegada. Algo no ar, pesado, o deixara inseguro. Sentiu ter entrado em terreiro altamente competitivo, onde a cobiça, a esperteza e o oportunismo eram elementos prioritários, é o que cedo constatara ao tentar fazer amigos à sua moda.

Forrar os bolsos... dar o fora o mais cedo possível e quanto menos notado era o que todo mundo pretendia. Fartar-se e desaparecer - quanto mais rápido, melhor... E, também... mais seguro!

Outra coisa importante logo aprendera e bem amargamente: – Mulher... feia ou bonita... no meio de um garimpo é mais do que uma tocha acesa! Incendeia mesmo! É farol deste tamanho, que não passa despercebido nunca! Mesmo tendo dono!

Dorinha não era de se jogar fora. Acendeu logo um farolão que iluminou os dias daquele mundão de homens de pele cor de terra, curtida pelo sal do suor e coração tostado, quase churrasqueado, pelo braseiro do sol que a lenha da saudade alimentava!

Sem demora e bastante preocupado, João captara a concupiscência sequer velada, naqueles olhares, que nem chegavam a ser fortuitos. Sentiu-se não só invejado... como indesejado também.

O oposto acontecia com sua mulher, logo alertada:

- Ói qui, Dorinha... presta atenção. Enquanto eu estivé fora, nun fala... e nun recebe ninguém aqui no barraco! Ninguém mêmo!... E ôio no Serê!...

Serê!... Quem primeiro demonstrara os danos e deméritos da aventura fora mesmo o garoto. Chegado, acordara febril. Pouco a pouco, perdera a vivacidade. Não era mais aquele moleque. Já nem fazia jus ao apelido. Ranheta...choramingas... estranhava tudo!

Logo depois da chegada, acontecera o roubo do cavalo. Naquela noite, a lua ia alta, velada pelas nuvens. João acordara assustado com o tropel suspeito. Levantado de um salto, pudera ver o baio sumir na noite, engolido pela escuridão.

– Bandido! Ladrão mardito! Devorve o meu baio!...

João voltara ao leito furioso, ruminando a raiva.. Ficara ainda mais pobre, sem a montaria!

De retorno ao presente, aquele homem rude tentou por fim às más lembranças, atirando longe o punhado de terra, a concluir, revoltado: - Num valeu apena, não! Mai num valeu memo!

Todavia, o pensamento teimoso, ainda preso ao garimpo, foi adiante e os remorsos levaram-no até aquela tarde terrível em que, derreado pelo trabalho, voltara para a família e a mulher esperava por ele à  porta,

- E o Serê... cumo é qui tá?- indagara apreensivo a Dorinha, que não escondia a preocupação.

- Num vai bem, não... num vai nada bem!

João procurou o filho com ansiedade. Serê dormia. Magrelo. Carnes flácidas, pegajosas. Olhos secos, fundos, semiabertos. Apalpou-lhe o ventre tumefato que se desfazia em água fétida. A testa ardia. Apavorou-se:

- Num morre não, Serê. Num morre, não, meu fio... que eu nunca mais vô me perdoá! Deus, nun dexa meu fio morrê! Num dexa, não, pur favô! Num quero mais ôro ninhum! Juro qui devorvo tudo qui achei! Ôro é mêmo coisa ruim... do dêmo! Si fosse coisa boa. Tu num teria escondido ele no fundo da terra!

Correu para fora do barraco... que Dorinha não visse as suas lágrimas cor de barro.

No dia seguinte, ao voltar mais cedo do garimpo, desconhecera a mulher submissa, que lhe abonara os passos! A mulher com quem partilhara aquele sonho doido - agora abominado! Não era a sua Dorinha aquela que o recebia à porta, de olhos vermelhos, afogados em lágrimas, rosto convulsionado! A mulher, que tinha à frente, nem parecia mulher! Era uma fêmea eriçada! Uma fera frustrada e enfurecida, a atirar-se sobre ele, em desespero, sentindo perdida a cria!

- Serê?!... balbuciou João, quase num sopro, sem coragem para ouvir a resposta.

- Vai lá... Vai lá vê teu fio! Teu fio morto! Morto, sim... de zóio aberto i seco! Zóio aberto... pra dizê pro pai dele o que a boca não pode mais dizê!... Vai lá!…

Na cova pequenina, por ele mesmo cavada, um homem abatido e inconsolável acomodara o filho envolto em panos. Alimentava o solo árido com a própria semente, sabendo que não germinaria jamais.

De que lhe valera o maldito metal amarelo, conquistado a duras penas, se nem caixão pudera comprar para o filho?! Maldito ouro que Deus escondia e que os homens se matavam para encontrar!

João penitenciava-se. Matara seu próprio filho! Perdera o amor da mulher amada! Nem todo o ouro do mundo pagaria tamanho prejuízo!!

Procurara uma flor naquela secura sangrada pelos homens cor de terra e não achara uma sequer! Cruzara dois gravetos, espetando-os... na cabeceira da cova! Sobre a cruz, uma pequena bota furada no dedão e, na sola, o nome traçado irregularmente em letra de forma: - SERÊ.

Voltara para a companheira, derrotado. Dorinha, de olhos secos, o recebera hostil e agressiva, enquanto fazia a trouxa.

- Vô mimbora!...

- Qui é isso, Dorinha! Vamu cunversá!

- Num quero cunversá coisa ninhuma! Num tem cunversa, não! Vô mimbora mêmo! Tô indo!...

João sentira a decisão. Não discutira e nem regateara. Decidira-se!

- Ispera, Dora, ispera... eu vô c'ocê tamém!

Pela primeira vez, não chamara a mulher pelo diminutivo. O instante não dava espaço para carinhos. Determinado, juntando ao acaso algumas roupas e trecos, fechava o episódio como quem fecha com decisão um livro triste, que jamais será relido.

Partira sem olhar para trás, levando às costas a trouxa, agora de peso aliviado. Em compensação, a alma, encharcada de culpas, pesava o dobro!

A meio caminho, João lembrara-se do ouro, até ali esquecido. Tão pouco! Algumas poucas pepitas sem expressão, mais nada! Meros grãos de esperança, enterrados para maior segurança sob a caminha improvisada do Serê. Que ficassem por lá! Nem que fossem as maiores pepitas do mundo! Quem, em tais circunstâncias, seria capaz de lembrar-se de algo mais, a não ser do peso daquela dor chumbada que lhe esmagava o peito?!

Sem o baio, a viagem de volta, paradoxalmente, acabara por ser mais rápida. Boa parte na base da carona de caminhão. 

Chegaram de volta ao velho sítio, alguns dias depois, junto com o Sol, numa certa manhã azul.

Nada parecia mudado. Da casa sede vinham os latidos fortes mas sempre amigos, do cão de cara feia e coração de melão. Taramela ao pescoço, a salvaguardar danos à roça, a cabra malhada também saudou-lhes a chegada, badalando o úbere pejado de leite, fuçado, ao menor descuido, por um cabrito travesso e guloso. Lá embaixo, junto ao bambual que delimitava a propriedade, duas porcas "banhudas", deixadas prenhes, deveriam ter enchido o "chiquêro" de leitões rotundos e barulhentos. João corrigiu os próprios pensamentos, "chiquêro", não, pocílga.”– como queria o patrão.

Lá no pasto... o relincho do baio... marchador dos bons!

- Faiz pocotó, pai...faiz!... Quanto galope gostoso... pocotó, pocotó, pocotó... o garoto firme à  garupa, agarrado à sua cintura, feliz... feliz!...

Sentiu a vista nublar-se... caindo em si, logo em seguida: - O quê?! O baio no pasto?... Cavalinho danado!... Sem vergonha!... Êta, fujão dos diabo... vortô sozinho pra casa... e eu de bobo xingando os ladrão, qui nem existiam!...

Reconsiderou: - Êta cavalinho sabido, isto sim! O baio é qui tava certo! Burro mêmo é quem chama os bicho de irracioná! Burro só eu mêmo, qui num vortei junto co baio! Exaltou-se: - Burro, sim... sô mais burro que o mais burro dos burro!!!

Apesar da qualificação negativa, João reconhecia que ali no sítio era quase doutor! Mêmo sem diproma, mêmo sem aner, sô capaiz de curar bichêra de gado, praga de carrapato, gôgo e pivide de galinha. Sei cumo tratá dor de barriga, sarampo, catapora, i tamen papêra da criançada vizinha. Já tinha sido inté "partero"... não de muié, mais... si perciso fosse, era inté capaiz de arriscá...

A gabolice calava-se ante a verdade nua - ...Pesá de tudo, não pude sequé sarvá a vida do meu própro fio!... o meu Serê!

Angustiado, João estalou um tapa na testa, a espantar pensamentos como quem espanta aquela vespa pronta para atacar.

Tinha - lá no roçado - ao pé da casa aconchegante que ocupavam, um canteirinho de ervas, remédio pronto pra cada "causo". Trabalho da Dorinha. Ali, os dois eram gente importante! Ali... era o lugar verdadeiro dele e da companheira! Nunca deveria ter posto o pé fora de lá!

E o patrão? Lembrava-se de como temera encontrá-lo ao retornar. Teria coragem de olhá-lo de frente? Quando se despedira, com voz amiga, ele o avisara: - Vais quebrar a cara, João! Olha que a vida lá fora não é nadinha fácil... seu moço!

Apalpou o nariz. A cara não estava quebrada. Mas o coração... este, sim, estava aos pedaços! E dentre esses pedaços, faltava um pedacinho de nada... tão pequenino... mas que pedacinho importante era aquele! Enxugou a lágrima com as costas da mão.

- Bem... num dianta nada chorá adispois do leite derramado... agora, o importante mêmo era sabê que a porta não tinha sido fechada...

Num dianta mostrá cara triste. Coração partido é coisa que nenhum patrão... por mais sabido qui seje, num inxerga, mêmo! Ô intão, faiz qui nem vê!

...Era hora di entocá a sodade no peito... i tocá a vida pra frente.... cumo si nada tivesse acuntecido.

Um galo clarinou boas vindas. A brisa beijou-lhe o rosto. E aquele homem sofrido aspirou bem fundo o ar puro da manhã, perfumado pelo aroma daquelas plantas viçosas cuja maioria ajudara a plantar. Era como se estivesse determinado a expulsar de si toda poeira nociva que lhe impregnava os pulmões.

Embebeu o olhar no ouro do sol. O açude faiscava. Pepitas de ouro adornavam o laranjal.

Só agora João reconhecia o tamanho do tesouro trocado por um vago sonho!

- Sonho?! Pesadelo dos brabo.., isto sim!

Apanhou novo punhado de terra, beijando-o com ternura: – Isto, sim, é qui é ôro puro!... Não brilha, não... mas vale mais du qui uma Serra Pelada intêrinha!

Uma última lembrança pacificou o ânimo daquele homem. 

Alguns dias após o retomo, deixando para trás, enterrados em definitivo, os despojos de um pesadelo, João notara na mulher o leve esboço de um sorriso embora triste. Arriscara um carinho quase tímido!.., Não fora repelido. Encorajado, chamara a companheira ao peito... gaguejando-lhe ao ouvido:

- Dorinha... meu amô... me perdoa... Me perdoa pelo amô di Deus! Vamo cumeçá tudinho ôtra veiz... vamo?!...

Mais tranquilo... aquele João, que a duras penas voltava a ser alguém, firmou o passo e rumou decidido para o lar...

O baio lá de longe relinchou... a saudá-lo... como se nada de grave houvesse acontecido entre eles.

Alguns meses depois, o corpo arredondado de Dorinha mostrava que o segundo capítulo daquela história começara a ser escrito.

Fonte> Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021. Enviado pela autora.

Arthur Thomaz (O impacto do telegrama)

Tânia Mara, uma jovem de 29 anos, levava uma vida relativamente pacata. Casara-se cedo com Dalmo, colega de escola, optando por não ter filhos para dedicar-se plenamente à carreira.

Este casamento não era um conto de fadas, mas o sucesso no escritório, onde destacava-se na área de Informática, já com propostas de promoção, compensava a monotonia do relacionamento.

No aniversário de 30 anos, ao acordar, recebeu um telegrama de sua tia Natércia, que dizia: “parabéns, trintona querida”.

Atordoada com essas palavras ressoando em seu cérebro, nem notou que algo parecido a um disjuntor caído, desligou-a de sua realidade.

Feito um autômato, vestiu-se e dirigiu sem rumo, não em direção ao local de trabalho. Muitos dias e milhares de quilômetros depois, adentrou em uma metrópole já envolvida totalmente em uma nova pessoa, porque durante esse trajeto, ao abastecer o carro, na loja de conveniência, trocou inadvertidamente sua bolsa com a de outra mulher.

Nesta grande metrópole, cansada, foi a um hotel, onde registrou-se com os documentos contidos na bolsa. Observando a documentação, incorporou-se automaticamente a nova identidade.

Descobriu-se especialista em computação, pesquisou ofertas de emprego, foi aprovada na entrevista, e em pouco tempo, foi absorvida pela nova vida, com o nome de Tônia, constante nos documentos trocados.

Por forças inexplicáveis, era muito parecida com as fotos. Sucesso rápido na empresa, logo adquiriu um confortável apartamento e iniciou um relacionamento com um médico que trabalhava no ambulatório da empresa.

Foi selecionada para fazer cursos na Europa e nos EUA, em técnicas contra ataques cibernéticos de hackers.

Certo dia, em um site, deparou-se com uma lista de pessoas desaparecidas e o nome Tânia chamou-lhe momentaneamente a atenção. Algo ainda superficial em seus pensamentos, mas que a atormentou todo o dia.

À noite, nos braços do namorado, sentiu-se distante da realidade, o que foi notado pelo companheiro. Na manhã seguinte, sob o olhar atônito do parceiro, entrou em seu carro, e guiada por algo imponderável, realizou o caminho de volta.

Chegou ao local do antigo emprego e bateu o ponto sem atinar com os 7 anos de defasagem. Estabeleceu-se enorme confusão na firma, com os diretores acionando a família para tentar elucidar a inusitada situação.

Tânia aproveitou um momento de distração dos alvoroçados colegas de trabalho, pegou seu carro e dirigiu-se até sua residência.

Ao ser recebida na porta por uma mulher desconhecida e duas crianças, notou que algo estava fora de contexto. Sentaram-se na sala e ela ficou sabendo que Matilde era a esposa de seu marido Dalmo. Depois de uma tranquila e esclarecedora conversa, pediu para ir à antiga sala de computação, hoje quarto das crianças, pegou em uma pequena gaveta algumas certidões e cópias de documentos e despediu-se da ainda surpresa mulher.

Fez novos documentos e com eles obteve a dupla cidadania italiana, e com os documentos de Tônia, a dupla cidadania francesa. Já residindo na Europa, entrou em contato pela Dark Web com uma associação clandestina de hackers, em um pequeno país do leste europeu.

Hoje, leva uma rica e emocionante vida, invadindo sites de ministérios de vários governos, chantageando-os e extorquindo muito dinheiro desses departamentos. Tânia já perdeu a conta de quantas identidades distintas usou e usa para escapar das inúmeras operações policiais que tentam capturá-la.

Fonte> Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

Hinos de Cidades Brasileiras (Campos dos Goytacazes/RJ)


Letra de Azevedo Cruz e Música de Newton Périssé Duarte

Campos Formosa, intrépida amazona
Do viridente plaino goitacás
Predileta do luar como Verona
Terra feita de luz e madrigais

Ó Paraíba, ó mágica torrente
Soberana dos prados e vergéis
Por onde passas como um rei do oriente
Os teus vassalos vêm beijar-te os pés

Nada iguala os teus dons, os teus primores
Val de delícias, o teu céu azul
Minha terra natal ninho de amores
Urna de encantos, pérola do sul

Campos Formosa, intrépida amazona
Do viridente plaino goitacás
Predileta do luar como Verona
Terra feita de luz e madrigais

Ó Paraíba, ó mágica torrente
Soberana dos prados e vergéis
Por onde passas como um rei do oriente
Os teus vassalos vêm beijar-te os pés

Ó Paraíba, ó mágica torrente
Rio que rolas dentro do meu peito.

Silmar Bohrer (Croniquinha) 103

Oitenta e quantos? Idade? O que é isso? Que medida é essa? 

O tempo . . . Invenção do bicho-homem. 

Inventou o calendário e temos que girar em torno dele sem nem mesmo pensarmos nele. O que será o invisível tempo?! 

Fala-se dele, alguns imaginam, muitos gostam, outros lamentam. 

O que importa é aproveitar bem o tempo. 

Então a gente lembra Rubem Alves: "Mas é preciso escolher. Porque o tempo foge. Não há tempo para tudo. Não poderei escutar todas as músicas que desejo, não poderei ler todos os livros que desejo, não poderei abraçar todas as pessoas que desejo. É necessário aprender a arte de "abrir mão" - - a fim de nos dedicarmos àquilo que é essencial". 

Precisamos dar um tempinho ao tempo para não ficarmos sem tempo.

Fonte> Texto enviado pelo autor 

Aparecido Raimundo de Souza (O “Bigo”)

A PRINCÍPIO SHELL não entendeu aquele papo que toda a galera vivia comentando quando se reunia na quadra de esportes ou nas mesas em derredor da cantina na hora do recreio. O pessoal não pronunciava duas frases que logo vinha embutido, de roldão, o tal do “bigo.” Parece ter virado febre, a coisa. Curioso, o rapaz resolveu pesquisar na biblioteca. Certamente, em meio de uma infinidade de livros, encontraria um que lhe mostrasse o significado e, então, não ficaria deslocado dos outros, feito bicho do mato. Chegou mais cedo no colégio, numa sexta–feira e tratou de procurar pelo que tanto lhe encucava a cabeça. Apresentou a carteirinha à senhora do hall e embrenhou por entre as inúmeras prateleiras que se perdiam pelo imenso salão. Ao entrar num dos corredores, estancou. Reconheceu, de pronto, as vozes risonhas de Penélope e Marina, duas coleguinhas da sua classe que conversavam acomodadas numa das muitas bancadas existentes: 

— Marina, você viu o “bigo” da Cíntia? Parece que foi desenhado por um especialista.

— Pois é. E o da Regiane! Viu o da Regiane?

— Impecável. Ao contrário da Gina...
— Feio pra caramba!
— Também pudera. O “bigo” dela tem caminho certo de onde veio puxado.
— De quem veio puxado, dando nomes aos bois?
— A mãe dela, ora bolas, a dona Maria da Glória. Quem mais? O “bigo” da quarentona lembra um bolo de aniversário com uma mordida no centro.
— Um bolo de aniversário? Não entendi essa sua comparação.
— Já viu um bolo de aniversário?
— Claro!
— Antes de a criançada chegar e cantar parabéns?
— Sim, e daí?
— Tente visualizar, na sua imaginação, um bolo desses comprados em padarias, com uma dentada antes do aniversariante apagar as velinhas e os convidados cantarem os parabéns...
— É esquisito!
— Demais, amiga. Assim, é o “bigo” de dona Maria da Glória:
— Onde você viu o “bigo” de dona Maria da Glória?
— No dia da aula de educação física do professor Teodorico. Ela veio trazer a Gina, e, enquanto esperava, acho que deu vontade de ir até o banheiro. Por quê? 
— Por nada. E o da filha dela? Como sabe que é feio e puxou o da mãe?
— Da Gina, na verdade, eu vi sem querer, no vestiário:
— No vestiário? Ela te mostrou?
— Não.
— Então?
— Foi assim. Cheguei de repente e lá estava ela com a Aninha. Altos papos...
— Entendi. Ela mostrava o “bigo” pra Aninha?
— Mais ou menos. A Aninha, muito séria, se assemelhava numa dessas lagartixas debruçadas na parede. Prostrada de cabeça pra baixo, observava.
— Vai ver ela deu uma mordida de leve e não apreciou o gosto da fruta...
— Não se pode descartar essa teoria. Todo mundo fala que a Aninha é “invertida,” ou melhor, é querr. Grosso modo, sapatona, embora ninguém, até hoje, tenha flagrado a figura com a boca na botija. Depois, não acredito que a sua coragem chegasse a ponto de fazer alguma coisa, logo num lugar onde toda a escola circula entrando e saindo de maneira contínua.
— Como explicaria a seriedade dela?
— Não parei pra pensar nesse assunto.
— Mudando o rumo da conversa: e o meu. Espia. Você acha o meu “bigo” esquisito?
— Não. Engraçadinho!
— Engraçadinho?
— Foi o que eu disse.
— Não desdenhe. O seu, por acaso é alguma joia rara?
— Pode não ser, mas que chama a atenção, ninguém da nossa turma, ou melhor, de toda a escola, negaria o capricho inimitável com o qual meus pais tiveram o cuidado de confeccionar.
— Convencida! Como sabe que a escola inteira suspira por ele?
— Os moleques quando me vêm com a barriguinha de fora por aí comentam, falam... trocam cochichos...
— ... Não sabia desse particular. O que rola?
— Frases do tipo “que “bigo” bonito, o dela!; quem me dera tivesse um “bigo” desses ao alcance das mãos pra beijar; acariciar e...
— Que horror!
— Vou te contar um segredo. Não tem um guri novo que chegou, não faz muito tempo, vindo transferido de outra localidade? 
— O Shell?
— Ele mesmo!
— O que é que está se passando com o piá? Cá entre nós duas. Um belo exemplar de homem. Dentro em breve... estará sendo disputado à tapas e beliscões pelas santinhas que se dizem e se acham intocáveis. Espere e verá que tenho razão. 
— Dizem que é “invertido”

— Não acho!
— Olha só o carinha. Não se enturma, não se entrosa, vive pelos cantos, não faz amizades. Sai da escola correndo, não conversa com ninguém, não frequenta a nossa cantina, é metido e, para completar, não deu em cima de nenhuma das donzelas...
— Isso não quer dizer que ele seja uma aberração. Leve em conta que convive com a gente não tem um espaço muito grande. Vamos dar tempo ao tempo.
— Mas que tem cara, não se pode negar...
— Discordo. Acho que é tímido. Vou cair matando em cima dele. Quer que lhe diga outra coisa? Se eu mostrar o meu “bigo” pra ele..., tenho certeza de que não resistirá. Cairá de joelhos...
Shell repentinamente começou a tremer. Um nervosismo inexplicável, até então nunca sentido, faz com que passasse a chorar e a roer as unhas desesperadamente. E se as duas, por azar, o pegassem ali? O que diria a elas? Precisava ir embora. A história fora de esquadro que acabara de escutar, ou seja, a de que todo mundo achava que ele se assemelhava num degenerado, não havia sido absorvida pelo seu organismo. 

Algo ficara entalado cruelmente em sua garganta. Será que somente pelo fato de viver afastado dos outros, se posicionar na sua, se ocultar quieto em seu canto, esse quadro levava os colegas a concluírem que ele era da pá virada?  
— “Filhos da mãe – pensou enxugando as lágrimas. – “Eles vão ver quem é o gay ou seja lá que outro nome essa escola tenha inventado para fomentar toda essa confusão”. 
Shell decidiu naquele momento de profunda amargura e agonia, misturada com ódio e intensa aflição, que em dias vindouros mostraria a seus pares – notadamente para a ala feminina, que ele se consubstanciava num ser humano normal – um cidadão como os demais, tentando se adaptar numa escola de riquinhos e mimados, onde ele, até aquele momento cruciante, não passava de um estranho no ninho. Maldito “bigo.” Tudo acontecendo por causa dessa droga de “bigo.” “Bigo, bigo, bigo”! O nervosismo bateu forte, tão violentamente estrondoso que não evitou de se aliviar ali mesmo, na calça. 

Fugiu como um rato, sem que se deixasse ser percebido. Dia seguinte se dedicaria a seguir pesquisando uma centena de publicações. Todavia, nada. Gastou quinze dias navegando na Internet e lendo compêndios e enciclopédias. Em vão. Encontrou, nessa Via Crucis, somente a palavra “biga,” que significava carro romano de duas ou quatro rodas puxado por dois cavalos e “bigu,” – aquele que andava de carona. O maldito do “bigo,” que interessava, para lhe salvar daquela enrascada, tipo lavar a honra, nem sinal. 
Resolveu encarar o pai, à noite, logo que seu velho chegou do batente:
— Paiê, o senhor acha meu “bigo” feio ou bonito?
O pai cortou a prosa de maneira fulminante:
— Estou ocupado agora, filho. Pergunte à sua mãe...
Ansioso, Shell não se fez de rogado, nem se deu por vencido. Repetiu a pergunta à mãe, sequioso por uma resposta à altura, ou pelo menos alguma coisa mais concisa que salvasse a sua dignidade e levantasse a moral:

— Mãinhê, a senhora acha o meu “bigo” feio ou bonito?
Com um sorriso largo, a mulher se achegou do jovem. Depositou um beijo demorado em seu rosto e, por fim, respondeu:
— Meu fedelho lindo do coração. Seu “bigo” é o mais bonito que a mamãe já viu em toda a sua vida. Acaso eu sonhe que alguém achou o seu “bigo” feio, juro que aplico uma surra memorável de arrancar pedaços e deixar sequelas seja lá em quem for, por longo tempo... 
A mãe se abriu numa respirada para tomar fôlego e continuou, o rosto aberto numa alegria franca:
— Tem mais um detalhe, meu príncipe: essa cicatriz que todos carregamos na altura do ventre, é a maior prova de que a partir do momento em que se faz visível em nosso corpo, é quando efetivamente começamos a viver com os nossos próprios pés.    

Em seguida acariciou o “bigo,” ou melhor, o umbigo da sua cria e acrescentou matreira:
— Olha que “bigo,” digo, que umbiguinho lindo você tem! 
Então toda essa droga de “bigo” não ia além daquele pequeno furo anatômico localizado na região da sua barriga? Droga! Nos dias que se seguiram Shell resolveu deixar à mostra o seu “bigo-umbigo.” Não deu outra. Os moleques, ao cruzarem com ele, ficaram com uma pontinha de inveja e ciúme, notadamente ao verem a mudança repentina em seus trajes mostrando aquela cicatriz que até então se fazia acasalada de todos. Não parou aí. As meninas, suspirosas e melosas, se achegaram, puxaram conversa, convidaram para lanches, caíram em cima, como moscas varejeiras, para ser mais direto e preciso. Todavia, o alvoroço se deu com a bela e esfuziante Penélope que, aliás, ele começou a namorar uma semana depois e trocou os primeiros beijos. E claro, às escondidas, suaves mordiscadas, entre outras intimidades em seu “bigo.”   

Fonte> Texto enviado pelo autor 

sábado, 20 de janeiro de 2024

Filemon Martins (Aquarela de Trovas) 28

 

Mensagem na Garrafa – 85 -

Oração Celta

Que jamais, em tempo algum, o teu coração acalente ódio.

Que o canto da maturidade jamais asfixie a tua criança interior.

Que o teu sorriso seja sempre verdadeiro.

Que as perdas do teu caminho sejam sempre encaradas como lições de vida.

Que a música seja tua companheira de momentos secretos contigo mesmo.

Que os teus momentos de amor contenham a magia da tua alma eterna em cada beijo.

Que os teus olhos sejam dois sóis olhando a luz da vida em cada amanhecer.

Que cada dia seja um novo recomeço, onde tua alma dance na luz.

Que em cada passo teu fiquem marcas luminosas de tua passagem em cada coração.

Que em cada amigo o teu coração faça festa, que celebre o canto da amizade profunda que liga as almas afins.

Que em teus momentos de solidão e cansaço, esteja sempre presente em teu coração a lembrança de que tudo passa e se transforma, quando a alma é grande e generosa.

Que o teu coração voe contente nas asas da espiritualidade consciente, para que tu percebas a ternura invisível, tocando o centro do teu ser eterno.

Que um suave olhar te acompanhe, na terra ou no espaço, e por onde quer que o imanente invisível leve o teu viver.

Que o teu coração sinta a presença secreta do inefável!

Que os teus pensamentos e os teus amores, o teu viver e a tua passagem pela vida, sejam sempre abençoados por aquele amor que ama sem nome.
Aquele amor que não se explica, só se sente.

Que esse amor seja o teu acalento secreto, viajando eternamente no centro do teu ser.

Que este amor transforme os teus dramas em luz, a tua tristeza em celebração e os teus passos cansados em alegres passos de dança renovadora.

Que jamais, em tempo algum, tu esqueças da Presença que está em ti e em todos os seres.

Que o teu viver seja pleno de Paz e Luz!

Luiz Damo (Trovas do Sul) LV


A mão que o jardim permeia
lança olor sem avareza.
Sensitiva, a alma o semeia,
com brio, brilho e beleza.
= = = = = = = = = 

A música seduz a alma
e o cantar o ser sublima,
cada som a dor acalma
sendo de Deus obra prima.
= = = = = = = = = 

A ave presa, só cantava,
para esconder a tristeza,
se falasse suplicava:
– Me solte na natureza.
= = = = = = = = = 

Ao se constatar um crime
o autor deve ser punido,
que à justiça o mundo prime
dele o mal seja banido.
= = = = = = = = = 

Com lisura e probidade
no exercício do poder,
possa toda autoridade
ao cargo corresponder.
= = = = = = = = = 

Do âmago das convicções,
às razões das confidências,
sempre há rastros de ilusões
por detrás das evidências.
= = = = = = = = = 

É no aconchego materno
que Deus vem se revelar,
o amor nunca é subalterno
mas força sempre a velar.
= = = = = = = = = 

No sorriso da criança
qual flor a desabrochar,
ressurge toda esperança
para o mundo perfumar.
= = = = = = = = = 

No vigor da juventude
espinhos parecem flores,
na velhice, só a virtude,
pode compensar as dores.
= = = = = = = = = 

Numa singular bravura
os pais lutam sem parar,
dando aos filhos com ternura
o melhor para o seu lar.
= = = = = = = = = 

O amor puro e verdadeiro
não se humilha nem se abate,
segue firme o tempo inteiro
'combatendo o bom combate'.
= = = = = = = = = 

O céu sorri, com certeza,
para nós a todo instante,
se cuidarmos da beleza
deste mundo palpitante.
= = = = = = = = = 

O céu tão distante está.
Na terra estamos, daí?...
Pra podermos chegar lá
temos que partir daqui.
= = = = = = = = = 

O encontro gera sinais
de amizade e entrosamento,
assim foram nossos pais
do namoro ao casamento.
= = = = = = = = = 

O homem repete alguns ritos
na maior monotonia.
Triste e falso só vê mitos
deixando a alma mais vazia.
= = = = = = = = = 

O operário se encaminha
pelos campos a plantar,
planta luz quando caminha
colhe sombras ao voltar.
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O pernalta quero-quero
cumpre bem sua missão,
nele não tem lero-lero,
dos pampas é guardião.
= = = = = = = = =

Para manter seus caprichos
o homem se torna um "felino"
e o cativeiro dos bichos
passa a ser o seu destino.
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Pela palavra 'saudade',
podemos dimensionar,
o grau de profundidade
do sublime verbo amar.
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Quando acontece a colheita
nos campos da solidão,
o fruto que mais deleita
talvez, seja a gratidão.
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Que a chuva não seja escassa
nem faça a terra inundar,
mas possa dar quando passa
a graça à vida abundar.
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Se a dor não sensibiliza
esta inquieta humanidade,
talvez o que mais precisa
seja a solidariedade.
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Sempre tem uma surpresa
para o fraco e para o forte,
a mais dura, com certeza,
são os estigmas da morte.
= = = = = = = = = 

Tantos bens acumulados
com um sucesso brilhante,
não suprem os dons selados
pelo amor ao semelhante.
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Tantos ninhos construídos
nos ramos ou rente o chão,
jamais sejam destruídos
por maldade ou diversão.
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Tudo na vida tem custo
mesmo a forma de falar,
tanto pode dar um susto
quanto pode se assustar.

Fontes> – Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021. Enviado pelo trovador.
– Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014. Enviado pelo trovador.

Contos e Lendas da Espanha (A pereira da Tia Miséria)

Tia Miséria era uma mulher muito pobre e já idosa, viva numa cabana nos arredores de um povoado.

Tudo o que possuía era um colchão de palha para dormir, uma velha cadeira para sentar-se e um cesto para recolher os frutos da pereira que havia no quintal. A pereira era uma árvore generosa; todos os anos dava muitos frutos, que Tia Miséria vendia. Com isso, além do que ganhava pedindo esmolas, a velha senhora conseguia se manter. 

Mas havia um problema: como as peras eram muito saborosas, os meninos do povoado vinham roubá-las, antes mesmo que amadurecessem. Assim, Tia Miséria só conseguia colher as poucas que sobravam no pé. Além do mais, como Tia Miséria era de idade avançada, não conseguia correr atrás dos meninos, por muito tempo. Tampouco podia vigiar a pereira o dia todo, pois precisava pedir esmolas e fazer os serviços da casa.

Tia Miséria também tinha um filho que se chamava Ambrosio, devido à fome que passava. Mas o rapaz já não vivia com ela. Na verdade, a velha senhora nem sabia por onde ele andava.

Tia Miséria possuía ainda um cachorro vira-latas que era sua única e fiel companhia. Às vezes, atiçava o cachorro nos meninos... Em vão, pois eles espantavam o pobre animal a pedradas.

Numa tarde de inverno, depois de uma forte tempestade de neve, um mendigo bateu à porta de Tia Miséria, que o convidou a entrar. Generosamente, dividiu com ele um pão que ganhara pela manhã. O mendigo estava muito cansado e transido de frio. Tia Miséria, penalizada, cedeu-lhe seu colchão de palha e deitou-se no chão, sobre um monte de trapos, para dormir.

Na manhã seguinte, ao ver que o mendigo se levantava para partir, ela disse:

— Espere um pouco, enquanto vou ao povoado buscar a sopa que ontem me prometeram. Assim, você poderá se alimentar, antes de ir embora. É muito ruim andar de barriga vazia.

O mendigo quis recusar, mas Tia Miséria insistiu tanto que, por fim, ele se viu obrigado a contar que na verdade era um santo do céu. E que Deus o havia enviado ao mundo para ver como as pessoas estavam praticando a solidariedade. Assim, ele viera bater à sua porta. Depois de revelar tudo isso, o mendigo disse:

— Já que você tem um coração bondoso, vou lhe conceder uma graça. Pode me pedir o que quiser.

A princípio. Tia Miséria disse que não queria nada. Mas então se lembrou de suas agruras com a pereira e decidiu:

—Já sei o que vou pedir: quem subir na minha pereira, só poderá descer quando eu autorizar.

— Assim será — respondeu o santo.

No outono do ano seguinte, quando as primeiras peras começaram a aparecer, os meninos chegaram, como sempre, para roubá-las. Subiram na árvore para colhê-las e ali ficaram, grudados, sem poder descer. Quando Tia Miséria chegou, no final do dia, deu-lhes umas boas palmadas no traseiro. E, o cachorro, umas mordidas nas pernas. Por fim Tia Miséria deixou-os ir. Os meninos fugiram apavorados.

Logo correu a notícia do que acontecia a quem ousasse subir na pereira da Tia Miséria. Desde esse dia, nenhum garoto se atreveu a roubar sequer uma pera. E, claro, como agora podia vender os frutos na época em que amadureciam, a velha senhora conseguia um dinheirinho para aliviar sua pobreza.

O tempo passou. E Tia Miséria ultrapassou os noventa anos. Um dia, bateu à sua porta um vulto que parecia ao mesmo tempo homem e mulher. Estava coberto com uma grande capa negra e trazia uma foice no ombro.

— Vamos, Miséria, que chegou sua hora — disse o vulto.

Reconhecendo a Morte, ela protestou com veemência:

— Mas, veja só! Agora que eu estava passando uns anos tranquilos, que estava vivendo tão bem com minhas quatro riquezas: a pereira, o colchão, a cadeira e o cachorro, você resolve aparecer... Francamente!

—Já chega de conversa, minha velha — disse a Morte. — Acompanhe-me, vamos.

— Mas eu não quero morrer!

Tia Miséria argumentou de todas as maneiras. Por fim, vendo que não poderia escapar, disse à Morte:

— Está bem, eu irei. Enquanto me apronto, faça-me o favor de pegar aquelas três peras que restam na pereira, pois quero levá-las na viagem.

A Morte obedeceu e subiu na árvore para colher os frutos. Mas, quando ia descer, viu que estava grudada nos galhos. Fez todos os esforços possíveis para se soltar... Em vão. Não havia como descer da pereira.

Tia Miséria, que observava tudo por trás de uma janela, disse à Morte:

— Fique aí, minha amiga, enquanto eu continuo aqui levando a vida adiante. E pode desistir de tentar, pois, sem minha permissão, você não conseguirá descer.

Alguns anos se passaram. E o mundo começou a sentir a ausência da Morte. Ninguém morria; os velhos ficavam mais velhos, os doentes ficavam mais doentes. Aqueles que, desesperados, tentavam o suicídio, acabavam apenas ficando muito feridos.

Muitos enfermos pediam aos médicos que os matassem. Os médicos, por sua vez, não davam conta de tantos pacientes e começavam a procurar um jeito para que as pessoas morressem. Nem mesmo nas guerras havia mortos.

O desespero era grande e aumentava a cada dia. Muita gente começava a odiar a vida e tentava se desfazer dela. Mas não havia como, pois a Morte estava pendurada na pereira da Tia Miséria.

Entre todos, os médicos eram os mais aflitos. Tanto, que fizeram uma reunião secreta. E então correu a notícia de que haviam decidido encontrar a Morte, custasse o que custasse.

Assim, os médicos espalharam-se pelo mundo, para procurá-la em todos os lugares plausíveis e até mesmo nos mais improváveis. Foi assim que um médico acabou passando perto da cabana de Tia Miséria, Ao vê-lo, a Morte gritou:

— Ei, doutor, venha cá!

Ele a reconheceu de imediato;

— Ora, ora, aí está você, minha cara Morte! — exclamou, louco de alegria por reencontrar aquela velha amiga.

O médico tinha motivos de sobra para tratar a Morte com tanta consideração. Pois, na verdade, muita gente já havia morrido em suas mãos. Por isso, a Morte lhe devotava uma deferência especial;

— É um prazer revê-lo, doutor.

– O prazer é todo meu. Mas por onde você andou durante esse tempo? Saiba que eu e meus colegas já percorremos meio mundo à sua procura. Agora venha comigo, pois há muito trabalho a fazer.

— Então, tire-me daqui, pois estou presa a esta pereira.

— Nem é preciso pedir duas vezes, minha amiga.

Sem hesitar, o médico subiu na pereira para ajudar a Morte a descer, mas acabou ficando preso também. Assim esteve por dias e noites, junto à Morte, até que seus familiares, que moravam por perto e estavam à sua procura, o encontraram agarrado à árvore.

Tão logo ouviram as explicações do médico, resolveram chamar outros moradores do povoado, e também o prefeito. Horas depois, uma verdadeira multidão invadiu o quintal, armada de machados, para derrubar a pereira. Nisso, Tia Miséria apareceu e gritou:

— Não me cortem esta árvore, que é o bem mais precioso que possuo no mundo!

E todos responderam;

— Teremos de fazer isso para libertar a Morte. Os doentes, velhos e feridos do mundo inteiro não aguentam mais tanto sofrimento, tanta calamidade.

— Ainda que vocês cortem a pereira, nem a Morte, nem o médico, poderão se soltar dela — disse Tia Miséria. — Portanto, eu libertarei os dois, mas com uma condição.

— Qual? — perguntou a Morte.

— Que você só venha me buscar, e a meu filho Ambrosio, quando eu chamá-la três vezes — respondeu Tia Miséria.

— De acordo — disse a Morte. — Agora me solte, de uma vez por todas.

— Está bem. — Tia Miséria deixou a Morte ir embora, junto com o médico. A multidão acompanhou-os, comemorando a volta à normalidade.

A Morte, assim que se viu livre, retomou sua função. Pessoas começaram a morrer em toda parte. Morriam aos milhares, velhos, doentes, feridos... E houve mais guerras do que nunca. A Morte quase não dava conta de tanto trabalho. Havia muito tempo que a procuravam e ela precisava atender a todos, dia e noite, sem descanso. Assim, a Morte ceifou vidas como jamais se viu antes.

Enquanto isso, Tia Miséria continuava tranquilamente em sua cabana, com sua pereira, seu colchão, sua cadeira e seu cachorro, pedindo esmolas e vendendo peras durante o outono.

E lá está, até hoje.

Tia Miséria ainda não chamou a Morte, por isso continua existindo neste mundo. Ela e seu filho Ambrosio viverão para sempre, pois não têm a menor intenção de morrer.

Fonte> Yara Maria Camillo (seleção). Contos populares espanhóis. SP: Landy, 2005.

Hinos de Cidades Brasileiras (São Vicente/SP)


Letra: Luiz Meirelles Araújo

Foi num cenário vivo de beleza
de encantos mil, de eterna luz e graça,
que a mão de Deus, brindando a natureza,
plantou o marco forte de uma raça.

E aquela terra virgem, vislumbrando
o seu porvir no céu estrelado,
ergueu o porte e altiva caminhando,
seguiu o rumo já por Deus traçado.

Assim aureolada,
na luz alvissareira,
surgiu predestinada
a célula primeira.

No verde da esperança,
no ouro da riqueza,
no azul, céu da bonança,
no branco de pureza.

O teu passado é, ó São Vicente
um monumento, altar cheio de glória,
perante o qual se curva, reverente,
um povo que conhece a tua História.

Viste o Brasil nascer, crescer gigante,
acalentando em teu amor profundo,
e transformar-se belo, radiante,
iluminado ao Sol do Novo-Mundo

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 27: Um velório confuso

O senhor Antônio se aproxima devagar, do corpo da mulher, acaricia seus cabelos e chora de maneira descompensada.

Juca e o padre pedem licença para acomodar a falecida no caixão ao centro da sala. 

Empregados da fazenda e vizinhos, lamentam profundamente a perda de uma pessoa pacífica e amável como poucas. 

- Onde tá Isadora? - pergunta o viúvo ao genro. 

- Sumiu. 

- Sumiu como? 

- Quebrou a casa toda e fugiu. 

- E não foi atrás dela, por quê? 

- Não é hora de pedir ou dar satisfações. A guria deve estar desabando sua dor com alguém. Daqui a pouco estará de volta. Podemos começar o velório? – perguntou o padre.

O senhor Antônio fez sinal afirmativo.

- Que o Deus dos vivos e dos mortos, em sua infinita misericórdia, receba a alma desta mulher, que em vida, foi um magnífico exemplo de esposa e mãe...

Enquanto o padre Orestes seguia com suas preces à beira do caixão, alguns se deixaram desconcentrar pelo cenário da casa, arrasado pela fúria de Isadora. Havia porta-retratos atirados no chão... O vidro da janela que dava da sala para a varanda, estava quebrado, e panelas com comida derramada à porta da cozinha... Uma delas inundou o ambiente com aroma de feijão. 

Fábio, constrangido, parecia colado à parede ao fundo do cômodo.  Não sabia se chorava, se falava algo, se corria atrás da mulher ou se cavava um buraco no chão para desaparecer de vez. 

O clima era de completo caos: uma morta, uma turbulenta tempestade lá fora... Tudo fora do lugar e Isadora sumida. Percebendo o clima desconfortável e os olhares, Amélia foi preparar um café.

Discretamente, Simão seguiu seus passos, e sozinhos ficaram a conversar na cozinha. Juca deu falta da esposa, e pela primeira vez sentiu o sangue ferver de ciúmes ao encontrar Amélia parecendo muito próxima e íntima do amigo. Recuou e ficou a imaginar uma suposta traição.  

Em seguida o café foi servido. E cada um acomodou-se onde pode. 

O Senhor Antônio andava de um lado ao outro, parecendo meio inconsciente do fato. E o padre, afetuoso, não saiu do lado caixão, observando tudo e a todos. 

As horas foram passando. A tempestade foi embora. Um novo dia se anunciou cheio de sol e calor. E Isadora permaneceu sumida. 

- “Arguém” tem que dá um jeito de achar minha “fia”. Como "vamo" pro cemitério sem ela? 

Fábio e Juca não a encontraram...  Nem dentro e nem fora da fazenda. E o enterro de dona Ana foi realizado sem a presença da filha.
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continua...

Fonte>Enviado pela autora

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Adega de Versos 118: Raymundo Salles (Salvador/BA)

 

Mensagem na Garrafa = 84 =

Autor Desconhecido

A AMIZADE

Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade. 

Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. 

Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta. Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. 

Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. 

Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. 

Não quero amigos adultos, nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice. Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto, e velhos, para que nunca tenham pressa. 

Tenho amigos para saber quem eu sou, pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão boba e estéril.

Antonio Brás Constante (As brigas conjugais através de um jogo de xadrez)

 
Se para alguns o casamento é um jogo de cartas marcadas, poderíamos descrever as brigas conjugais como os movimentos das peças de um jogo de xadrez. As desavenças podem ter seu princípio quando uma rainha resolve atacar o rei (algumas vezes se referindo a problemas envolvendo um cheque ou o contra-cheque), ou ainda por causa de um rei egocêntrico, que gosta de se achar a peça mais importante da partida, sacrificando a felicidade da própria rainha em nome de seu bem-estar egoísta.

As brigas têm etapas de certa forma definidas, mas pouco definitivas. Podem começar com um silêncio ensurdecedor. Os jogadores (marido e mulher) quase nem se olham nos olhos. Ficam esperando o melhor momento para dar o lance inicial, até que um deles resolve mover o primeiro peão da troca de palavras, numa tentativa de avançar rumo à guerra ou de se chegar a um ponto de paz.

Logo se armam as torres, como muralhas de ódio entre os dois, e cuja visão que só enxerga em linha reta. Um ataque direto. Cego para as nuances em sua volta. A função da torre nas brigas é impedir qualquer aproximação, esconder sentimentos, isolando os amantes em casulos de solidão.

A partir deste estágio surgem os cavalos, dando coices e patadas mortais em qualquer relacionamento. A discussão assume um andar torpe, que ataca pulando por cima de qualquer chance de proteção, lançando-se de forma suicida feito um animal ensandecido. Os cavalos deveriam ser chamados de cobras, pois parecem sempre prontos para dar o bote. Esmagando e pisoteando qualquer tentativa de dialogo. Movendo-se como peças loucas pelo tabuleiro da vida.

O jogo vai piorando a cada instante. Então surgem os bispos, correndo de lado, fulminando com olhares atravessados, em seus movimentos eternamente separados, sem se tocar. Eles transpassam todas as defesas, e sem qualquer sinal de piedade, buscam atingir sempre o coração. Muitas vezes, tudo termina em meio ao movimentar intransigente destas peças, deslocadas através do rancor, dúvidas e decepção.

Mas é quando a poeira baixa e todas as demais peças caem, que enfim podem ficar frente-a-frente rei e rainha, faces opostas de uma mesma moeda. Neste momento, se o amor falar mais forte que o desafeto, talvez ambos percebam o quanto estavam errados ao tentar tomar o espaço do outro no tabuleiro. Quem sabe até entendam que não são rivais mortais, e sim parceiros em busca de um mesmo objetivo. A partir deste momento um novo jogo tem início, agora com o rei e sua rainha andando lado-a-lado, cercados de outras regras, forjadas com promessas repletas de felicidade. Assim a partida termina e a união recomeça, selada com um beijo declarando a vitória no empate. XEQUE-MATE.