terça-feira, 9 de abril de 2024

Recordando Velhas Canções (Disparada)


 Composição: Geraldo Vandré

Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar

Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo
A morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar
Eu vivo pra consertar

Na boiada já fui boi
Mas um dia me montei
Não por um motivo meu
Ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse
Porém por necessidade
Do dono de uma boiada
Cujo vaqueiro morreu

Boiadeiro muito tempo
Laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente
Pela vida segurei
Seguia como num sonho
E boiadeiro era um rei

Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E nos sonhos
Que fui sonhando
As visões se clareando
As visões se clareando
Até que um dia acordei

Então não pude seguir
Valente em lugar tenente
E dono de gado e gente
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente

Se você não concordar
Não posso me desculpar
Não canto pra enganar
Vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado
Vou cantar noutro lugar

Na boiada já fui boi
Boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém
Que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse
Por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu
Querer ir mais longe
Do que eu

Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte
Num reino que não tem rei

Na boiada já fui boi
Boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém
Que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse
Por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu
Querer ir mais longe
Do que eu

Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte
Num reino que não tem rei
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Jornada de Um Homem Sertanejo e a Reflexão Sobre Liberdade

A música 'Disparada', composta por Geraldo Vandré, é uma das obras mais emblemáticas da música popular brasileira, especialmente por sua associação com o período da ditadura militar no Brasil. A canção, que se tornou um hino de resistência, traz uma narrativa que se desdobra em metáforas sobre a vida, a liberdade e a condição humana, utilizando o universo do sertão e da boiada como pano de fundo para suas reflexões.

O eu lírico começa contando que vem do sertão e que pode não agradar a todos com suas palavras. Essa introdução serve como um aviso de que o que será dito é fruto de uma experiência de vida árdua e realista, marcada pela necessidade de dizer 'não' e pela familiaridade com a morte. A repetição da frase 'Eu venho lá do sertão' reforça a identidade do narrador e a origem de suas vivências. A menção à morte e ao destino 'fora do lugar' sugere um mundo desordenado, que o narrador sente a necessidade de 'consertar', indicando um desejo de mudança e justiça.

A segunda parte da música descreve a transformação do narrador de boi para boiadeiro e, posteriormente, para cavaleiro. Essa progressão simboliza uma jornada de autoconhecimento e emponderamento. O narrador deixa de ser parte da boiada, passivo e submisso, para se tornar alguém que guia e tem controle sobre seu destino. A frase 'Mas com gente é diferente' destaca a consciência do narrador sobre a complexidade das relações humanas em contraste com a simplicidade do trato com o gado. A música termina com uma declaração de independência, onde o narrador, agora cavaleiro, reconhece que não há rei em seu reino, uma metáfora para a liberdade e a igualdade entre as pessoas.

'Disparada' é uma canção que fala sobre a busca pela liberdade e a recusa em ser dominado ou manipulado, seja por outros indivíduos ou por sistemas opressores. Geraldo Vandré, com sua poesia carregada de simbolismo e crítica social, convida o ouvinte a refletir sobre a própria vida e as estruturas de poder que nos cercam, fazendo desta música um clássico atemporal da música brasileira.

Aparecido Raimundo de Souza (Era só um buraco na camada de ozônio)

NAQUELE MOMENTO, o céu lá no sempiterno não ia além de uma neblina densa e chata –, dessas que parecem esconder segredos cabeludos e distorcer as realidades deixando o que está quieto e calmo numa espécie de alteração desenfreada. Apesar disso, saí e iniciei a minha caminhada de todas as manhãs. De repente, assim do nada, um espanto atarantado me deixou boquiaberto. Me deparei com um relógio grudado em um painel em frente à entrada de um prédio de uns dez andares. Até aquele momento, não me lembro de tê-lo visto. Será que a idade está me deixando pirado, a ponto de ver coisas que não existem? Não importa. O mostrador marcava oito e meia. Lembro que as oito horas em ponto, havia saído de casa. Decidira empreender um passeio, uma caminhada simples objetivando espairecer as ideias. Uma jornada breve, de passos curtos, sem rumo definido. Apenas seguindo os rastros da névoa que se entrelaçavam com meus devaneios e pensamentos meio que conturbados. Apesar do prédio e do relógio, me pus adiante. Me embrenhei sem rumo certo. 

Passei por vielas estreitas, onde as casas com grandes janelas de várias cores e formatos me davam a impressão de fundidos umas às outras, como se fossem espelhos gigantescos que refletiam infinitamente imagens de uma centena de parques de diversões. Logo, ruas à frente, árvores sussurravam segredos em línguas estranhas. Pássaros voavam em círculos, assim como se dançassem irmanados numa coreografia invisivelmente inexistente. Foi então que ao cruzar com a igreja e mudar de uma calçada para outra, me deparei com uma porta de madeira antiga na entrada de uma loja onde uma tabuleta indicava, em letras garrafais, a comercialização de “roupas femininas.” Uma entrada a meu entendimento, de cútis carrancuda, me espiou da cabeça aos pés com olhos arregalados e as feições convexas. Esse acesso construído em madeira antiga, se fartava com entalhes intricados que pareciam contar histórias de outros tempos que não os meus. Não havia maçaneta para as mãos. Apenas um espelho em formato de coração embutido, como se alguém o tivesse colocado ali por algum motivo sem uma meta definida. 

Pombas! Do lado de fora? – Inquiri com meus botões!  Esquisito, ou melhor, intrigante. Quem teria a maluca ideia de colocar um espelho ao relento e na escadaria de um comércio de roupas íntimas? Estanquei. Ao sofrear os passos, percebi os meus reflexos reproduzidos olhando escancaradamente para mim. Eles me sondavam com butucas de olhos esbugalhados curiosos, como se também quisessem desvendar algum secreto existente em um oculto que eu carregasse invisível. Extremamente abelhudo, sem hesitar em seguir meu plano traçado, empurrei a pesadona e entrei. Do lado de dentro, não havia chão. Apenas um buraco enorme. Como se estimulado por mãos invisíveis, caí nele, ou sei lá, flutuei, não lembro. O tempo, a partir desse passo, e da minha intromissão, foi como se alguém poderoso tivesse desfeito as minhas vontades e tomado conta total dos meus controles. Vi-me em um espaço separado. Um recinto, ou um mundo insondado e impróprio, meio que extravagante. Para me deixar mais intrigado, havia um jardim e no meio dele, muitas árvores. 

Elas tinham raízes de fogo e os pássaros que voejavam, centelhavam um encantamento inexplicável. Uma fascinação embevecida de luzes as mais variadas cores, brincavam com a claridade do dia mavioso. As flores cantavam canções antigas e os pequenos fios de água corrente lembravam trilhas de estrelas. Assim, do nada, me flagrei parte integrante desse cenário, tipo uma criatura híbrida repleta de sonhos e realidades. Saídos de algum espaço ainda não vislumbrado, encontrei outros viajantes. Seres iguais a mim que também haviam, obviamente, cruzado a porta com o espelho. Após os cumprimentos, conversamos (desconheço como) em línguas duvidosas. Compartilhamos histórias e memórias que não eram nossas. Não havia passado nem futuro, apenas o presente. E esse presente se fazia eterno. À medida que explorávamos esse universo, percebi que o espelho não tinha o condão de apenas ser uma mera passagem. Ele se distendia além e se abria numa metáfora. Como tal, refletia nossos desejos mais profundos, sopesava nossos medos mais obscuros. 

De repente, viramos fragmentos de um mesmo sonho dançando na borda do real e do imaginário. Foi magnânimo! Assim, nesse lugar sem tempo –, aprendi, ou melhor –, compreendi que a realidade que nos atravanca os passos, nada mais é que apenas uma ilusão. O surreal, por sua vez, é especificamente o cubículo onde habitamos. O espelho nos mostrou que somos feitos de luzes e sombras, de mistérios e encantos. Quando finalmente voltamos para a saída, encaminhei o nariz para minha casa. Não sei o tempo dos demais. Apenas registrei que o meu relógio de pulso marcava oito e meia. Entretanto, o relógio na entrada da porta do prédio de dez andares, não marcava coisa alguma. Novamente dei uma esticada para o espelho e tornei a rever meu reflexo sorrindo. Ele sabia o que eu havia sem querer, descoberto: e o que, de fato, eu harmonizara nessa breve saída do meu habitat natural?  Fácil o entendimento. Em conclusão, aprendi que a vida é uma jornada insana e longa dentro de uma porta com um espelho. Nesse espelho existe um labirinto de outras entradas e lacunas, de desvãos, e águas-furtadas, onde o oculto nos espera para rodopios em formas de danças em seus braços mágicos. 

O resto... bem, o resto são apenas corriqueiras intimidações e sobressaltos. Contemplações benfazejas com pequenas rusgas, ou simpáticos dissabores fáceis de serem suportados. Esses contratempos, esses infortúnios são brandos. Trazem pitadas de atemorizações e intimidações –, todavia, nenhuma tristeza ou enfermidade, tampouco resquícios de situações que possam nos fazer um mal que não consigamos suportar. ou seja, em resumo, nada sério, ou fora de um propósito coerente. Tem um Ser Superior no controle. Nada considerado profundo e penoso que nos desvirtue dos trilhos do “Amor Sublime,” ou nos leve à deriva, à uma loucura descabida –, ou dito de forma mais objetiva: nenhum contratempo que nos desvie da complexidade de estarmos vivos e respirando as boas coisas que nos foram legadas pelo Pai Maior. O Deus piedoso que nos contempla sorrindo lá do mais alto com a sua infinita e perpétua “Graça Celestial.” 

Fonte> Texto enviado pelo autor 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “12”

 

Mensagem na Garrafa = 110 =

Renato Frata 
(Paranavaí/PR)

Simples recados

Quando se dispuser a algo, esqueça o ontem e se repagine ao presente: o amanhã não saiu da prancheta, é projeto ainda que você construirá.

Procure surpreender a quem o espera, como faz surpresa a brisa fria no rosto, sentida ao abrir a janela. Seja suave como ela, e agradável como o bailar que a impulsiona, e exuberante como a pequena flor recém-aberta profusa ao sol que, mesmo simples, dá à vida o valor que tem. Dê-se por inteiro e venha.

Presenteie a quem o espera com a modéstia da areia varrida e deixe que o carinho de seu olhar tempere a chegada, regando-a com o fio gelado da água do ribeiro.

Cause, com o íntimo aberto, sem pretextos, profusões ou prosopopeias, e dê a essa chegada o caráter solene do ficar, eis que quem assim chega traz o todo consigo, a mala cheia de paixão vertida pelas beiradas a dizer quão boa é a vida. E fique. Bem. Só esse propósito valerá a chegada e o dia.

Para fazer do chão pedregoso o solo arável que aninha semente e faz dela árvore frondosa. Fique, não se ressinta com possíveis insetos ou calores, eles serão desconfortos passageiros que o ajudarão a se manter firme.

E sendo chão, procure ser macio a infinitas solas que possivelmente o pisarão. Não as maltrate, serão passos de caminhantes à procura do bem viver, assim como você. Ajude-as com sua maciez, massageie-as com brandura e esses passos sobre si nem serão sentidos. Enraíze-se em amores, muitos, infinitos e os trance com seus gestos de gratidão, ação e palavra, e lhes dê o conforto da meia-sombra, da umidade necessária e do sossego. Permita-lhes o belo, resplandecente e vigoroso crescimento e florescência. Só um chão fértil sabe o bem que tem dentro de si. E sabe da força interna que tem. 

E ficando, mostre-se por inteiro com seus defeitos e carências, feiura e beleza, com a sua humanidade e até com os desgastes que a vida na sua passagem proporcionou. Ninguém é imaculado como uma folha em branco. Aliás, o passado, como o ontem, mesmo belo ou fracassado, se foi, e o hoje merece ser bem vivido, por isso o amolde, modele-o com o canivete da franqueza.

Tire-lhe a aspereza, o enrugamento, as partes podres. O fraco só se torna forte com a persistência, com a resiliência. a confiança, não há outro remédio. Então, persista!

Deixe que seus olhos procurem o horizonte e suas pernas saiam em sua busca, mas volte. Sim, e transforme seu ficar em um extenso e intenso intervalo, em um presente contínuo talhado a cada minuto pela faca do agora compartilhando sentimentos e aprendizagem, dando e recebendo na reciprocidade que o amor afivela e, se amanhã tiver que partir em definitivo, que suas pegadas sejam seu testemunho, que seus rastros que o tempo não conseguirá apagar sejam sua história escrita minuto a minuto, em definitivo, e nunca apenas um rascunho, desses que rabiscamos para desprezar no cesto.

Fonte> Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Olavo Bilac (Poesias para crianças) – 2


A AVÓ

A avó, que tem oitenta anos,
Está tão fraca e velhinha! . . .
Teve tantos desenganos!
Ficou branquinha, branquinha,
Com os desgostos humanos.

Hoje, na sua cadeira,
Repousa, pálida e fria,
Depois de tanta canseira:
E cochila todo o dia,
E cochila a noite inteira.

Às vezes, porém, o bando
Dos netos invade a sala . . .
Entram rindo e papagueando:
Este briga, aquele fala,
Aquele dança, pulando . . .

A velha acorda sorrindo,
E a alegria a transfigura;
Seu rosto fica mais lindo,
Vendo tanta travessura,
E tanto barulho ouvindo.

Chama os netos adorados,
Beija-os, e, tremulamente,
Passa os dedos engelhados*,
Lentamente, lentamente,
Por seus cabelos, dourados.

Fica mais moça, e palpita,
E recupera a memória,
Quando um dos netinhos grita:
"Ó vovó! conte uma história!
Conte uma história bonita!"

Então, com frases pausadas,
Conta historias de quimeras,
Em que há palácios de fadas,
E feiticeiras, e feras,
E princesas encantadas . . .

E os netinhos estremecem,
Os contos acompanhando,
E as travessuras esquecem,
— Até que, a fronte inclinando
Sobre o seu colo, adormecem . . .
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
* Engelhados = enrugados
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

OS POBRES

Aí vêm pelos caminhos,
Descalços, de pés no chão,
Os pobres que andam sozinhos,
Implorando compaixão.

Vivem sem cama e sem teto,
Na fome e na solidão:
Pedem um pouco de afeto,
Pedem um pouco de pão.

São tímidos? São covardes?
Têm pejo? Têm confusão?
Parai quando os encontrardes,
E dai-lhes a vossa mão!

Guiai-lhe os tristes passos!
Dai-lhes, sem hesitação,
O apoio do vossos braços,
Metade de vosso pão!

Não receieis que, algum dia,
Vos assalte a ingratidão:
O prêmio está na alegria
Que tereis no coração.

Protegei os desgraçados,
Órfãos de toda a afeição:
E sereis abençoados
Por um pedaço de pão . . .
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

JUNHO

Coro de crianças:

Passem os meses desfilando!
Venha cada um por sua vez!
Dancemos todos, escutando
O que nos conta cada mês!

Junho:

Em chamas alvissareiras,
Ardem, crepitam fogueiras . . .
— E os balões de S. João
Vão luzir, entre as neblinas,
Como estrelas pequeninas,
Entre as outras, na amplidão.

Não há casinha modesta
Que não se atavie, em festa,
Nestas noites, a brilhar:
Não se recordam tristezas . . .
Estalam bichas chinesas,
Estouram foguetes no ar.

Fogos alegres, pistolas,
Bombas! ao som das violas,
Ardei! cantai! crepitai!
Num largo e claro sorriso.
Seja a terra um paraíso!
Folgai, crianças, folgai!

Coro de crianças:

Aí vem Julho, o mês do frio . . .
Vamos os corpos aquecer,
Acelerando o rodopio . . .
— Pode outro mês aparecer!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

O RIO

Da mata no seio umbroso,
No verde seio da serra,
Nasce o rio generoso,
Que é a providência da terra.

Nasce humilde; e, pequenino,
Foge ao sol abrasador;
É um fio d'água, tão fino,
Que desliza sem rumor.

Entre as pedras se insinua,
Ganha corpo, abre caminho,
Já canta, já tumultua,
Num alegre burburinho.

Agora ao sol, que o prateia,
Todo se entrega, a sorrir;
Avança, as rochas ladeia,
Some-se, torna a surgir.

Recebe outras águas, desce
As encostas de uma em uma,
Engrossa as vagas, e cresce,
Galga os penedos, e espuma.

Agora, indômito e ousado,
Transpõe furnas e grotões,
Vence abismos, despenhado
Em saltos e cachoeirões.

E corre, galopa, cheio
De força; de vaga em vaga,
Chega ao vale, alarga o seio,
Cava a terra, o campo alaga . . .

Expande-se, abre-se, ingente,
Por cem léguas, a cantar,
Até que cai finalmente,
No seio vasto do mar . . .

Mas na triunfal majestade
Dessa marcha vitoriosa,
Quanto amor, quanta bondade
Na sua alma generosa!

A cada passo que dava
O nobre rio, feliz
Mais uma árvore criava,
Dando vida a uma raiz.

Quantas dádivas e quantas
Esmolas pelos caminhos!
Matava a sede das plantas
E a sede dos passarinhos . . .

Fonte de força e fartura,
Foi bem, foi saúde e pão:
Dava às cidades frescura,
Fecundidade ao sertão . . .

E um nobre exemplo sadio
Nas suas águas se encerra;
Devemos ser como o rio,
Que é a providência da terra:

Bendito aquele que é forte,
E desconhece o rancor,
E, em vez de servir a morte,
Ama a vida, e serve o Amor!

Fonte> Olavo Bilac. Poesias Infantis. RJ: Francisco Alves. 1929.

Coelho Neto (As formigas)

À sombra de uma faia, no parque, enquanto o príncipe, que era um menino, corria perseguindo as borboletas, abriu o velho preceptor o seu Virgílio e esqueceu-se de tudo, enlevado na harmonia dos versos admiráveis.

Os melros cantavam nos ramos, as libélulas esvoaçavam nos ares e ele não ouvia as vozes das aves nem dava pelos insetos: se levantava os olhos do livro era para repetir, com entusiasmo, um hexâmetro sonoro.

Saiu, porém, o príncipe a interrompê-lo com um comentário pueril sobre as pequeninas formigas que tanto se afadigavam conduzindo uma folhinha seca. Disse:

— Deus devia tê-las feito maiores. São tão pequeninas que cem delas não bastam para arrastar aquela folha que eu levanto da terra e atiro longe com um sopro.

O preceptor, que não perdia ensejo de educar o seu imperial discípulo, aproveitando as lições e os exemplos da natureza, disse-lhe:

— Lamenta V. A. que sejam tão pequeninas as formigas... Ah! meu príncipe, tudo é pequeno na vida: a união é que faz a grandeza. Que é a eternidade? Um conjunto de minutos. Os minutos são as formigas do Tempo. São rápidos e a rapidez com que passam fá-los parecer pequeninos. São eles, entretanto, que, reunidos, formam as horas, as horas fazem os dias, os dias compõem as semanas, as semanas completam os meses, os meses perfazem os anos, e os anos, Alteza, são os elos dos séculos.

“Que é um grão de areia? Terra; uma gota d'agua? Oceano; uma centelha? Chama; um grão de trigo? Seara; uma formiguinha? Força. Quem dá atenção à passagem de um minuto? É uma respiração, um olhar, um sorriso, uma lágrima, um gemido; juntai, porém, muitos minutos e tereis a vida.

“Ali vai um rio a correr — as águas passam aceleradas, ninguém as olha. Que fazem elas na corrida? Regam, refrescam, dessedentam, brilham, cantam e lá vão, mais ligeiras que os minutos. 

“Quereis saber o valor de um minuto, disso que não sentis, como não avaliais a força da formiga? Entrai do mergulho na água e tende-vos no fundo — todo o vosso organismo, antes que passe um minuto, estará protestando, a pedir o ar que lhe falta. Ora! O ar de um minuto, que é isso? direis. É a vida, Alteza.

“Vedes a formiguinha que vai e vem procurando migalhas na terra — se a encontra e pode carreá-la leva-a; se é superior à sua própria força, recorre à companheira que passa; outras chegam, ajuntam-se em chusma e ei-las fazendo com facilidade o trabalho que seria impossível a uma só.

“Se a formiga desanimasse nunca iria provisão ao formigueiro. Assim vós, meu Príncipe, pretendeis um conhecimento, ides ao livro que o contém e inclinais-vos sobre ele. No primeiro instante tudo vos parece obscuro; desanimais, aborreceis-vos. Se lançardes de vós o livro ficareis sempre em ignorância, mas se persistirdes, apelando para todas as forças do vosso engenho, pouco a pouco ireis removendo as dificuldades e chegareis ao caminho franco da certeza.

“Assim é em tudo na vida. O que pretende governar deve ver o trabalho da formiga, porque é um ensinamento. Não pôde o príncipe alhanar um embaraço só com o seu juízo, chama a conselho os homens de mais experiência e tino, ouve-os, delibera com eles e, juntos, facilmente arredam o que, no princípio, parecia imóvel. Tudo é proporcional na vida. Deus não fez o insuperável. O “Impossível” é uma expressão inventada pelos fracos.

“O que é para a formiga um carreto, voa com o sopro débil de uma criança; o que é para o homem empecilho as águas levam de roldão; onde não pode a força de um braço supre-a o instrumento e, se ainda o embargo se obstina, então o homem apela para o homem como a formiga reclama a companheira e, conjuntamente, afastam o pesado entrave.

“Se eu vos pudesse levar ao labirinto, que é o reino subterrâneo das formigas, veríeis a perfeita ordem que nele há, a disciplina que o compõe, a harmonia que o rege e se cá fora pudesse ser aplicada a lei que regula a sociedade dos insetos exemplares fácil vos seria governar o povo porque todos os homens dar-se-iam por felizes nos seus postos, não haveria inveja nem ambição, males que tanto malsinam as sociedades.

“Qual é a força da formiguinha? É pouca para um grão de açúcar, entretanto, a formiga pode mudar montanhas se o formigueiro se ajunta em esforço solidário. Que é uma gota de orvalho? Um nada para o calor de um raio de sol, lançai-a ao mar, entrará na vaga concorrendo para o soçobro das maiores naus de guerra.

“Quereis ver a força da formiga, procurai-a no formigueiro, que é a união.” 

Assim falou o preceptor. E, como passasse uma borboleta azul e o príncipe saísse a persegui-la, abriu, de novo, o seu Virgílio e continuou, delicadamente, a leitura interrompida.

Fonte> Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Bandeira Branca)


Composição de Laércio Alves / Max Nunes

Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz

Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz

Saudade, mal de amor, de amor
Saudade, dor que dói demais
Vem, meu amor
Bandeira branca, eu peço paz

Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz

Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz

Saudade, mal de amor, de amor
Saudade, dor que dói demais
Vem, meu amor
Bandeira branca, eu peço paz

(Pela saudade que me invade)
(Eu peço paz)

Saudade, mal de amor, de amor
Saudade, dor que dói demais
Vem, meu amor
Bandeira branca, eu peço paz

Bandeira branca, amor
Bandeira branca, amor
Não posso mais, não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz

Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

O Apelo Emocional de 'Bandeira Branca'
A música 'Bandeira Branca', interpretada pela icônica Dalva de Oliveira, é um clássico da música brasileira que aborda o tema universal do amor e da saudade. A letra da canção é um apelo emocional de alguém que se encontra em um estado de profunda tristeza e nostalgia, causado pela ausência de um amor. A expressão 'bandeira branca' é tradicionalmente um símbolo de rendição, paz e trégua, e no contexto da música, representa o desejo de reconciliação e o fim do sofrimento causado pela separação.

A repetição do verso 'Bandeira branca, amor, não posso mais' enfatiza a intensidade da saudade sentida pelo eu lírico, que chega a um ponto insuportável, onde a única solução parece ser pedir paz, ou seja, buscar uma resolução para a dor emocional. A saudade é descrita como um 'mal de amor', uma 'dor que dói demais', o que reforça a ideia de que o sentimento é quase uma doença, um mal-estar que precisa ser curado. A canção transmite a mensagem de que, em face do amor e da dor que ele pode causar, às vezes é necessário baixar as defesas e buscar a reconciliação.

Dalva de Oliveira, com sua voz poderosa e interpretação emotiva, consegue transmitir a profundidade do sentimento de saudade e a urgência do pedido de paz. A música se tornou um hino para aqueles que já sentiram a dor da saudade e a esperança de um reencontro amoroso. 'Bandeira Branca' é um exemplo da capacidade da música popular brasileira de capturar emoções complexas e universais, tornando-se atemporal e relevante em diferentes gerações.

Samuel da Costa (A epístola de Cassilda: Calibor, o doutor sono!)

Camilla, minha querida irmã! Digo que fiquei alarmada, mas não surpresa, com a tua última carta, eu bem queria te responder de outra forma, tamanha a minha aflição. Mas, por fim, uma carta é a melhor forma para nós duas, pelo menos no momento atual.

Infelizmente, a praga que você mencionou também chegou até aqui! Tu bem sabes, que por aqui a vida e o tempo se arrastam de forma lenta e com poucas mudanças. E, hoje, tenho saudades do bom tempo em que as nossas únicas preocupações sobre violências eram com os poucos roubos de bicicletas e de passarinhos furtados. 

Li e reli a última carta, que tu me enviaste e não pude fazer certas ligações com casos isolados, que ocorreram por aqui, as nossas pequenas tragédias. Lembras do Sebastião? O nosso velho Tião, da nossa meninice, sempre bêbado e sempre andando e caindo pelas ruas da cidade? Inofensivo, pedindo dinheiro para mais um trago, pois bem, depois de muitos tragos o velho Tião, um dia ao final da tarde, ele cai no meio da rua. Pois bem, pensamos que por fim tinha morrido, mas não morreu e a história é um pouco estranha. Um policial que fazia a ronda na praça da cidade, que o viu caindo no chão, verificou os sinais vitais e percebeu que o Sebastião ainda estava vivo, e o policial chamou uma ambulância. E assim foi o maltrapilho e barbudo Tião parar no hospital, na cidade vizinha. Camila, minha irmã, foi um fato trágico, embora mais que esperado. E poucos deram mais atenção ao fato em si. E outra tragédia veio para abalar a nossa calmaria, longe dos grandes centros.

Camilla, tu te lembras do Luide? O nosso bom amigo de meninices faceiras! Pois bem, tu bem sabes dos problemas mentais que ele teve quando era mais moço, andando sem rumo pelas ruas da cidade e indo e vindo pelas cidades vizinhas, até ser reconhecido por alguém e o levarem de volta para casa. Ele sempre falava sozinho, interagindo com gente e coisas que não existem. Pois um dia ele ficou mais agitado, gritava, chorava, ria, esbraveja, se encolhia em desespero e por fim era um pouco agressivo. Até que por fim, ele também caiu no meio da rua, no mesmo lugar e na mesma hora que Tião caiu. Também foi socorrido, os socorristas notaram que estava desacordado, e mais uma vez, mais um dos nossos foi socorrido ao hospital.

Essas duas tragédias, em três dias de diferença, não chamaram a atenção de ninguém com muita profundidade, e Camilla, nem o jornal e o rádio de nossa cidade mencionaram os dois casos. O padre, da nossa paróquia, na missa de domingo pediu para rezarmos pelos nossos irmãos convalescidos. E, também, nas pequenas igrejas neopentecostais e protestantes, os pastores pediram orações pelas duas pobres almas.

Camilla, o mais trágico vem depois, Arthur, que tu não conheceste bem, era filho da Glória, a nossa amiga de escola, tu bem sabes que ela era minha amiga, éramos inseparáveis. Se lembra dela estudando? A Glorinha, sempre na nossa casa e às vezes, ela dormia na nossa casa! E o papai nunca deixava eu dormir na casa dela, era sempre uma briga com papai e mamãe e eu a Glorinha sempre chorávamos, quando ouvíamos o não de papai.

Pois bem irmã, tu bem sabes que eu dou aulas de inglês, português e literatura na escola que Glorinha era diretora. A mesma escola, que a gente estudou e nos formamos. Pois, minha querida Camilla, por Deus, Camilla, fui eu que escolhi o nome do primeiro e único filho dela, Arthur. Sempre adorei as lendas do rei Arthur como bem sabes, Camila. Por Deus, Camilla, não se sabe como e nem por quais circunstâncias, o nosso jovem Arthur, o nosso doce Arthur, professor de literatura, muito querido por todos e todas, sempre calmo, estudioso e bem comportado, estava andando pelas ruas da cidade. Estava encharcado de sangue, balbuciando palavras ininteligíveis, era um idioma estranho que ninguém entendia. E ele caiu inconsciente, no mesmo lugar, por Deus, Camilla, foi no mesmo lugar, na mesma hora, no final da tarde. Em um espaço de três dias.

Assim como os outros casos, ele caiu desacordado e mais uma vez foi socorrido por uma ambulância e levado ao hospital. E te confesso que não tive coragem de avisar a minha amiga querida, a minha irmã de coração. Por Deus, Camilla, me contaram depois que a nossa Glorinha não estava mais viva, Arthur a tinha matado. Pensei em uma briga entre os dois, pois era sempre assim quando Arthur perguntava pelo pai dele, quem eram, se estava vivo e onde vivia. Eu mesmo nunca soube e nem perguntei quem era o pai de Arthur. Mas os vizinhos não ouviram nada, pois os dois sempre que brigavam faziam muito barulho. Mas naquele sábado, ninguém percebeu nada e somente um estranho silêncio reinava na casa.

Pois bem, Camilla, soube mais tarde que Arthur estava desacordado no hospital. Os três casos, em um intervalo de três dias. E nesta hora, que tu passas os olhos nesta carta, você deve estar se perguntando porque você, de nada ficou sabendo. Pois bem, você tinha acabado de sair daqui, para dar as tuas aulas de música e em meu amor infinito por ti, não imaginava você voltando para casa e não era justo para contigo. Aqui se repetiu o mesmo silêncio que acontece por aqui, um hiato inexplicável.

O que aconteceu depois, minha querida Camilla, algo muito estranho, para além das estranhas tragédias que abalaram a nossa calmaria interiorana. Uma equipe médica, veio ver os três pacientes. Você sabe que poucas coisas escapam de um universo tão pequeno como o daqui. Uma aeronave descendo em uma fazenda por aqui não passou despercebida. E quando sai de dentro da aeronave uma equipe médica, na luz do dia, fica muito difícil de se esconder. Desembarcaram aqui e depois foram para o hospital na cidade vizinha.

E um nome começou a circular pela cidade, Calibor, o doutor sono. Só depois fiquei sabendo que ele era um neurologista estrangeiro, reconhecido no mundo da medicina. Eu gostaria de não o ter conhecido, mas tive o desprazer de o conhecer, pois este homem era tudo, menos o que se espera de um médico mundialmente renomado. Soubemos de muitas coisas, porque muitos médicos, médicas, enfermeiras e enfermeiras que trabalham no hospital, vieram viver por aqui na zona rural. Gente de fora que veio trabalhar no hospital.

Pois bem, Camilla, este sujeito passou por aqui, na nossa cidade, neste fim de mundo. Vi este homem de pele escura, sem um fio de cabelo na cabeça, rosto fino, um cavanhaque, parecia um egípcio. Não usava um jaleco branco como os médicos e o povo da saúde usam, ele estava usando um jaleco amarelo pálido.

E lá estava ele, analisando o local onde os três tinham caído, ele e seu séquito, homens e mulheres bem alinhados, e mais o diretor do hospital onde estavam os internados os infelizes cidadãos de nossa cidade.

Camilla, eu não queria ter visto, mas vi, pois do alvoroço da cena que tinha mobilizado a cidade, eu não escapei do canto da sereia. Eu vi quando o doutor tirou os óculos escuros e redondos de aro de tartaruga, as lentes eram espelhadas, vi os olhos dele, Camilla, os olhos não eram frios, e nem exalavam maldade, eram olhos blasfemos. Eram profundos, abissais e álgidos! Depois eles foram embora, como se nada fossemos, pois nem mesmo os políticos locais conseguiram convencer aquele homem estranho a ficar mais tempo na nossa cidade. Foram embora em uma limusine, levantando poeira.

Camilla, que cena, horrível ver aquele homem ali, eu senti na minha alma, eu bem sabia que algo de ruim estava por vir e veio. E o que passo a pensar que começou aqui, na nossa cidade, Camilla, vi nascer aqui a tempestade que te assola aí no litoral. É um sentimento meu, que guardo para mim e agora divido contigo. 

Da tua irmã Cassilda.

Fonte> Fragmento do livro Sono paradoxal, de Samuel da Costa. Enviado pelo autor.

domingo, 7 de abril de 2024

Trova ao Vento – 010

 

Beatrix Potter (O Conto de Jemima Pato)


Que visão engraçada é ver uma ninhada de patinhos com uma galinha!

— Ouça a história de Jemima Pato, que estava chateada porque a esposa do fazendeiro não a deixava chocar seus próprios ovos.

Sua cunhada, a Sra. Rebeccah Pato, estava perfeitamente disposta a deixar a incubação para outra pessoa – “Não tenho paciência para sentar em um ninho por vinte e oito dias; e você também não, Jemima . Você os deixaria esfriar; você sabe que sim!”

“Quero chocar meus próprios ovos; vou chocá-los sozinha”, grasnou Jemima Pato.

Ela tentou esconder seus ovos; mas eles sempre foram encontrados e levados.

Jemima Pato ficou bastante desesperada. Ela decidiu fazer um ninho longe da fazenda.

Ela partiu em uma bela tarde de primavera ao longo da estrada de carroças que sobe a colina.

Ela estava usando um xale e um gorro.

Quando chegou ao topo da colina, viu um bosque ao longe.

Ela pensou que parecia um local seguro e tranquilo.

Jemima Pato não tinha o hábito de voar. Ela correu morro abaixo alguns metros agitando o xale e então saltou no ar.

Ela voou lindamente quando teve uma boa largada.

Ela deslizou sobre as copas das árvores até ver um lugar aberto no meio da floresta, onde as árvores e os arbustos haviam sido derrubados.

Jemima pousou pesadamente e começou a gingar em busca de um local de nidificação conveniente e seco. Ela imaginou um toco de árvore entre vegetação alta.

Mas, sentada no toco, ela se surpreendeu ao encontrar um cavalheiro elegantemente vestido lendo um jornal.

Ele tinha orelhas pretas eretas e bigodes cor de areia.

“Quack?” disse Jemima Pato, com a cabeça e o gorro de lado – “Quack?”

O cavalheiro levantou os olhos acima do jornal e olhou curiosamente para Jemima.

“Senhora, você se perdeu?” disse ele. Ele tinha uma cauda longa e espessa sobre a qual estava sentado, pois o toco estava um pouco úmido.

Jemima o achava muito educado e bonito. Ela explicou que não havia se perdido, mas que estava tentando encontrar um local seco e conveniente para se aninhar.

“Ah! é mesmo? de fato!” disse o cavalheiro de bigodes cor de areia, olhando curiosamente para Jemima. Ele dobrou o jornal e colocou-o no bolso do paletó.

Jemima reclamou da galinha supérflua.

“De fato! Que interessante! Eu gostaria de poder encontrar aquela ave. Eu a ensinaria a cuidar da própria vida!”

“Mas quanto a um ninho – não há dificuldade: tenho um saco cheio de penas em meu depósito de lenha. Não, minha cara senhora, você não atrapalhará ninguém. Pode ficar sentada lá o tempo que quiser”, disse o cavalheiro de cauda longa e espessa.

Ele liderou o caminho para uma casa muito aposentada e de aparência sombria entre as árvores.

Era feito de lenha e turfa, e havia dois baldes quebrados, um em cima do outro, perto de uma chaminé.

“Esta é minha residência de verão; você não acharia minha terra – minha casa de inverno – tão conveniente”, disse o hospitaleiro cavalheiro.

Nos fundos da casa havia um galpão caindo aos pedaços, feito de velhas saboneteiras. O cavalheiro abriu a porta e conduziu Jemima para dentro.

O galpão estava quase cheio de penas – era quase sufocante; mas era confortável e muito macio.

Jemima Pato ficou bastante surpresa ao encontrar uma quantidade tão grande de penas. Mas era muito confortável; e ela fez um ninho sem nenhum problema.

Quando ela saiu, o cavalheiro de bigodes cor de areia estava sentado em um tronco lendo o jornal – pelo menos ele o havia aberto, mas estava olhando por cima.

Ele foi tão educado que parecia quase arrependido por deixar Jemima ir para casa passar a noite. Ele prometeu cuidar muito bem de seu ninho até que ela voltasse no dia seguinte.

Ele disse que adorava ovos e patinhos; ele deveria se orgulhar de ver um belo ninho em seu galpão de madeira.

Jemima Pato vinha todas as tardes; ela pôs nove ovos no ninho. Eles eram brancos esverdeados e muito grandes. O cavalheiro astuto os admirou imensamente. Ele costumava virá-los e contá-los quando Jemima não estava presente.

Por fim, Jemima disse a ele que pretendia começar a sentar no dia seguinte – “e trarei um saco de milho comigo, para que nunca precise deixar meu ninho até que os ovos choquem. Eles podem pegar um resfriado”, disse o consciencioso Jemina.

“Madame, imploro que não se incomode com um saco; vou providenciar aveia. Mas antes de começar sua tediosa sessão, pretendo lhe dar uma guloseima. Vamos fazer um jantar só para nós!

“Posso pedir-lhe para trazer algumas ervas do jardim da fazenda para fazer uma omelete saborosa? Sálvia e tomilho, e hortelã e duas cebolas, e um pouco de salsa. Vou providenciar banha para o material – banha para a omelete”, disse o cavalheiro hospitaleiro de bigodes cor de areia.

Jemima Pato era uma simplória: nem mesmo a menção de sálvia e cebola a deixava desconfiada.

Percorreu a horta mordiscando pedacinhos de todas as espécies de ervas que servem para rechear o pato assado.

E ela foi até a cozinha e tirou duas cebolas de uma cesta.

O cão collie Kep a encontrou saindo: “O que você está fazendo com essas cebolas? Aonde você vai todas as tardes sozinha, Jemima Pato?”

Jemima estava bastante impressionada com o collie; ela contou-lhe toda a história.

O collie escutou, com sua cabeça sábia de lado; ele sorriu quando ela descreveu o cavalheiro educado com bigodes cor de areia.

Ele fez várias perguntas sobre a madeira e sobre a posição exata da casa e do galpão.

Então ele saiu e trotou pela aldeia. Ele foi procurar dois filhotes de cães de raposa que estavam passeando com o açougueiro.

Jemima Pato subiu pela última vez a estrada das carroças, numa tarde ensolarada. Ela estava bastante sobrecarregada com molhos de ervas e duas cebolas em um saco.

Ela voou sobre a floresta e pousou em frente à casa do cavalheiro de cauda longa.

Ele estava sentado em um tronco; ele cheirou o ar e continuou olhando inquieto ao redor da madeira. Quando Jemima desceu, ele pulou.

“Entre em casa assim que você olhar seus ovos. Dê-me as ervas para a omelete. Seja rápida!”

Ele foi bastante abrupto. Jemima Pato nunca o tinha ouvido falar assim.

Ela se sentiu surpresa e desconfortável.

Enquanto ela estava lá dentro, ela ouviu pés batendo na parte de trás do galpão. Alguém com um nariz preto cheirou a parte inferior da porta e depois a trancou.

Jemima ficou muito alarmada.

Um momento depois, houve os ruídos mais terríveis – latidos, latidos, rosnados e uivos, guinchos e gemidos.

E nada mais foi visto daquele cavalheiro de suíças de raposa.

Logo Kep abriu a porta do galpão e soltou Jemima Pato.

Infelizmente, os filhotes correram e comeram todos os ovos antes que ele pudesse detê-los.

Ele tinha uma mordida na orelha e os dois filhotes estavam mancando.

Jemima Pato foi escoltada para casa em lágrimas por causa daqueles ovos.

Ela pôs mais alguns em junho e teve permissão para ficar com eles, mas apenas quatro deles nasceram.

Jemima Pato disse que era por causa de seus nervos; mas ela sempre foi uma péssima babá.

Fonte: Beatrix Potter (escritora e ilustradora). O conto de Jemima Pato. Publicado originalmente em 1908 como The Tale of Jemima Puddle-Duck. Disponível em Domínio Público]