sábado, 21 de junho de 2025

Asas da Poesia * 40 *

 

Poema de 
WASHINGTON DANIEL GOROSITO PÉREZ
Irapuato, Guanajuato, México

Pesadelo

Luz plana,
você espalha sua sombra contida,
pedaços de jornais,
junta marés de objetos inúteis
que o vento recicla amorosamente.
Intrincado labirinto urbano.

É noite,
está ficando tarde,
as pessoas se dispersam.

Os prédios se fortalecem,
grandes formas caminham em direção ao céu,
cobertas pela enorme escuridão.

O tempo desliza
no silêncio da noite.

Lá, onde a eternidade afunda
sem deixar rastros,
apenas fragmentos de imagens.

Cascos de navios emergem da névoa turva,
naufragados sem terra.

Grandes luas e
céus nublados passarão.

Sóis com olhos insones,
não despertarão o homem
do pesadelo de caminhar
à deriva.

(tradução do espanhol por José Feldman)
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Trova de
JOSÉ TAVARES DE LIMA
Juiz de Fora/MG

Nosso motel não tem cama,
mas tem rede ... Vão topar?
E o jovem casal exclama:
- Nós não viemos pescar...
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Soneto de
GUILHERME DE ALMEIDA
Campinas/SP, 1890-1969, São Paulo/SP

Felicidade

Ela veio bater à minha porta
e falou-me, a sorrir, subindo a escada:
"Bom dia, árvore velha e desfolhada!"
E eu respondi: "Bom dia, folha morta!"

Entrou: e nunca mais me disse nada...
Até que um dia (quando, pouco importa!)
houve canções na ramaria torta
e houve bandos de noivos pela estrada...

Então, chamou-me e disse: "Vou-me embora!
Sou a Felicidade! Vive agora
da lembrança do muito que te fiz!"

E foi assim que, em plena primavera,
só quando ela partiu, contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!
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Trova Premiada  de
WANDA DE PAULA MOURTHÉ 
Belo Horizonte/MG

Que bom seria um enlace
entre a mente e o coração:
o que a gente desejasse
também quisesse a razão!
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Poema de
LUIZ EDUARDO CAMINHA
Florianópolis/SC, 1951 – 2015, Blumenau/SC

Imprecisões

Quem sou eu,
este ser inerme,
que faz da voz,
arma contusa?

Quem sou eu,
este ser inerte,
que mexe, remexe,
látego impiedoso?

Quem sou, afinal,
este ser sereno,
que num ímpeto se faz,
irascível mordaz.

Oh, cruel, inominado e controverso ser,
Verso, reverso, homo erraticus et perdidit!

Acaso uma criatura?
Erro da Criação,
insigne animal,
pedestal de areia?

Quiçá um dia,
de tanto me procurar,
alcance, almejo,
lugar pra descansar.

Desta busca infindável,
deste contínuo rebuscar.
Neste dia, quiçá, porvir,
Deus se ponha a me perdoar.
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Haicai de
MÁRIO ZAMATARO
Curitiba/PR

Lua

Perto do horizonte,
a grande lua amarela…
e o vento parado.
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Poema de
ANTÓNIO BOTTO
Concavada/Abrantes/Portugal, 1897 – 1959, Rio de Janeiro/RJ

A Julieta do Beco das Cruzes 

Aos arrancos, lá vai ela 
Despedir-se do amante 
Nesta manhã de Janeiro! 
Coitada, morre por ele! 
- Foi o seu primeiro amor 
E será o derradeiro. 
Todas as tardes, risonha, 
Ela falava com ele 
Num beco escuro de Alfama. 
Era ali que ela morava; 
- Até que uma noite foram 
Pernoitar na mesma cama. 
Estou a vê-la!, cingida 
Ao corpo delgado e quente 
Desse esbelto carpinteiro! 
E vejo-a, dias depois, 
nervosa, afastar-se dele 
Chamando-lhe: trapaceiro. 
Mais tarde ia procurá-lo 
À oficina e chorosa 
Seguia-o sem que ele a visse; 
E naquela perdição 
Adoeceu porque um dia 
Com outra o viu, - mas, sorriu-se... 
Soube-lhe bem ser «mulher» 
Do homem que apenas teve 
Um desejo passageiro! 
Mas, agora, - cruel preço! 
Dos olhos fez duas fontes
E do amor um cativeiro. 
Adoeceu gravemente. 
Nunca mais saiu à rua, 
Sempre a tossir e a sofrer... 
E era a mãe que, mendigando, 
De porta em porta arranjava 
Qualquer coisa pra viver. 
Hoje, constou-lhe que a Guerra 
O chamara para as linhas 
Do combate, - e combalida, 
Vai ao embarque levar-lhe 
No silêncio de um olhar 
Os restos da sua vida.
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Poema de
DIOGO BERNARDES
Ponte da Barca/Portugal, 1530 – c.1605, Lisboa/Portugal

Já não posso ser contente

Já não posso ser contente,
Tenho a esperança perdida,
Ando perdido entre a gente,
Nem morro, nem tenho vida.
Prazeres que tenho visto
Onde se foram, que é deles,
Fora-se a vida com eles
Não me a vira agora nisto,
Vejo-me andar entre a gente
Como coisa esquecida,
Eu triste, outrem contente,
Eu sem vida, outrem com vida.
Vieram os desenganos,
Acabaram os receios;
Agora choro meus danos,
E mais choro bens alheios;
Passou o tempo contente,
E passou tão de corrida,
Que me deixou entre a gente
Sem esperança de vida.
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Aldravia de
FLÁVIA GUIOMAR FERREIRA DA SILVA ROHDT
Anastácio/MS

chamou-me
lua
desde
então
tenho
fases
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Soneto de
MIGUEL RUSSOWSKY
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC

Soneto alexandrino

Se queres praticar soneto alexandrino,
esquece do relógio em primeiro lugar.
É uma composição, que por não ser vulgar
põe rimas de cetim em versos de ouro fino.

Elegância ao dizer… Luzir de sol a pino…
Sonoras locuções num alto patamar…
Um verso a colorir o verbo “conjugar”
usando tons sutis, de beijos sem destino.

Quando ele escolhe “amor” por núcleo do poema,
“saudade” passa a ser um mero estratagema
que o engenho em si dispõe para aquecer as almas.

E, sendo alexandrino, adquire um tal conceito,
que a nossa língua o faz artístico e perfeito.
Para um soneto assim… até Deus bate palmas!…
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Trova de
WAGNER MARQUES LOPES
Pedro Leopoldo/MG

A Natureza retrata
seus pendores imanentes:
no verde calmo da mata,
na limpidez das correntes.
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Spina de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

Intuição 

Enquanto meu eco
levita com sutileza
sobre os corrimões,

ouço sons, talvez meras ilusões 
que emaranhados entre os vãos, 
tentam livrar-se de seus grilhões.
Fitando um soalho bem cuidado,
sinto vida em outras dimensões.
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Sextilha de
DELCY CANALLES
Osório/RS, 1931 –  ????, Porto Alegre/RS

O amor,  em verdade, encerra
 o  verdadeiro  viver!
 Quem ama e se faz amado,
 sabe, ao outro, compreender
 e  vive  uma  vida plena,
 num contínuo  renascer!
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Soneto de
MARTINS FONTES
Santos/SP, 1884 – 1937

Beijos no Ar

No silêncio da noite, alta e deserta,
inebriante, férvido sintoma,
uma fragrância feminina assoma
e tentadoramente me desperta.

Entrou-me, em ondas, a janela aberta,
como se se quebrara uma redoma,
da qual fugira o delirante aroma,
que o mistério do amor assim me oferta.

De que dama-da-noite ou jasmineiro,
de que magnólia em flor, em fevereiro,
se exala esse cálido desejo?

Ela sonha comigo: esse perfume
vem da sua saudade, que presume,
embora em sonho, ter-me dado um beijo!
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Haicai do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Longe dos meus campos,
das outonais primaveras,
não há pirilampos! 
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Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Sinto o sangue gelar-se-me nas veias
(Verso de José Barreto)

Sinto o sangue gelar-se-me nas veias
Quando no peito morre uma esperança
Ou se solta um cabelo de uma trança
Onde o ouro brilhava sem ter peias;

E quando a luz que havia nas ideias
Se extingue sem deixar qualquer herança
Que no futuro seja uma lembrança
Dos povos que cantaram epopeias.

E o meu corpo minado pelo frio
Ganha a dureza gélida de um rio
A que os polos dão alma de glaciar.

Sou branca massa de água deslizando
Que sobre um mar de mágoa abominando
Onde eu não sou capaz de me afogar.
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Soneto de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

Spinoza

Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante ideia.

E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranquilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.
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Poema de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/SP

Espera

É na tua ausência que desfolho tristezas
e  acaricio lembranças.
É nas horas de solidão
que  ganho asas, te bebo e te navego.
Nos meus sonhos te encontro rarefeito,
envolto  na volátil  presença da noite que te engole.
O sonho passa, mas meu corpo refeito
é  um profundo oceano à espera das tuas redes.
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Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

Aceitação

É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas,
nem as formas do mar, nem tu.
Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.
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Poema de
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 
Itabira/MG, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ

Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e mal amar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.
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Soneto de
LAÉRCIO BORSATO
Poços de Caldas/MG

A orquídea

Na entrada da casa, a orquídea abriu
Seu vasto sorriso, lilás e amarelo.
O verde das folhas também aderiu,
Esbanjando um quadro, nobre e mui belo!

Da sacada eu contemplo de perfil
Essa obra que Deus. De modo singelo,
Mormente nos recantos de meu Brasil,
Faz da graça e da beleza um forte elo!

Quem passar por ali sentirá a candura
Dessa flor, que com delicadeza pura,
Indelével toca o coração humano...

Nesse meditar a minha alma cogita.
Meu ser acende, se rende e acredita,
Isso só é possível, com o toque soberano!
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Havia à noite um poema:
as luzinhas em cardumes...
Hoje sequer no cinema
pisca-piscam vaga-lumes.
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Quadra Popular
AUTOR ANÔNIMO

Saudade consumidora,
eterna sócia de amor,
serás minha companheira,
irás comigo onde eu for.
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Soneto de
PATATIVA DO ASSARÉ
(Antonio Gonçalves da Silva)
Assaré/CE, 1909 – 2002

O burro

Vai ele a trote, pelo chão da serra,
Com a vista espantada e penetrante,
E ninguém nota em seu marchar volante,
A estupidez que este animal encerra.

Muitas vezes, manhoso, ele se emperra,
Sem dar uma passada para diante,
Outras vezes, pinota, revoltante,
E sacode o seu dono sobre a terra.

Mas contudo! Este bruto sem noção,
Que é capaz de fazer uma traição,
A quem quer que lhe venha na defesa,

É mais manso e tem mais inteligência
Do que o sábio que trata de ciência
E não crê no Senhor da Natureza.
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Trova de
ANTONIO JURACI SIQUEIRA 
Belém/PA

Perdão no amor que se apruma
sem guardar mágoas, constrói.
É flor que enfeita e perfuma 
as mãos de quem o destrói.

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Décima de
ÚRSULA A. VAIRO MAIA
Belo Horizonte/MG

Mulher-peixe

Um segredo quero contar
Muitos pensam em mim
Como uma habitante plena do mar
Sou mulher-peixe a suspirar
Durante o dia me ponho a nadar
Ao cair da noite, me banho ao luar
Tenho a lua e o mar como habitat
Sou do dia, sou da noite
Sou do mar ,  sou do luar
Sou de quem, em sonhos , me desejar
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Poema de
BENJÚNIOR
(Benevides Garcia Barbosa Júnior)
Porto União/SC

Canção guerreira

Quero fazer uma canção triste
que seja como vento ligeiro...
Uma canção para o povo
como um canto de esperança!
Quero fazer uma canção guerreira
que luta para que voltem à vida
aqueles que declararam sua guerra!
Quero fazer uma canção para
animar os que caem...
Quero fazer uma canção de amor
que seja a de todos os tempos
e para sempre...

E que todos se levantem
e levantem suas bandeiras,
acima de seus corpos e cabeças;
levando todos os sonhos,
a todos os povos da terra
que vivem, amam e sofrem
e ainda esperam
uma canção guerreira…
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Paz 

Vem de dentro para fora
caminho seguro de pés descalços
imune aos cardos crescendo descontrolados
Sábio silêncio do homem que não cala a voz
isolado de guerras inúteis 
ecos de palavras ocas 
Nobre missão em cruzada atemporal
na luta sem decreto nem cartel
contra o inimigo invisível e cruel
Tecida pelos mais alvos fios solidários
jardim cultivo de amor e justiça, onde
nardos de esperança florescem no mais pleno viço
Só na presença da tua asa suprema
se tranquiliza da desordem o meu coração.
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Glosa* de
ANTÓNIO ALEIXO
Vila Real de Santo António/Portugal, 1899 — 1949, Loulé/Portugal

Onde nasceu a ciência e o juízo

MOTE
Onde nasceu a ciência?…
Onde nasceu o juízo?…
Calculo que ninguém tem
Tudo quanto lhe é preciso!

GLOSA
Onde nasceu o autor
Com forças pra trabalhar
E fazer a terra dar
As plantas de toda a cor?
Onde nasceu tal valor?…
Seria uma força imensa
E há muita gente que pensa
Que o poder nos vem de Cristo;
Mas antes de tudo isto,
Onde nasceu a ciência?…

De onde nasceu o saber?…
Do homem, naturalmente.
Mas quem gerou tal vivente
Sem no mundo nada haver?
Gostava de conhecer
Quem é que formou o piso
Que a todos nós é preciso
Até o mundo ter fim…
Não há quem me diga a mim
Onde nasceu o juízo?…

Sei que há homens educados
Que tiveram muito estudo.
Mas esses não sabem tudo,
Também vivem enganados;
Depois dos dias contados
Morrem quando a morte vem.
Há muito quem se entretém
A ler um bom dicionário…
Mas tudo o que é necessário
Calculo que ninguém tem.

Ao primeiro homem sabido,
Quem foi que lhe deu lições
Pra ter habilitações
E ser assim instruído?…
Quem não estiver convencido
Concorde com este aviso:
— Eu nunca desvalorizo
Aquele que saber não tem,
Porque não nasceu ninguém
Com tudo quanto é preciso!
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* Glosa, estrofe onde é recuperado e explicado um determinado tema apresentado num mote que é colocado no início do poema e do qual pode repetir um ou mais versos em posição certa, como um refrão.

A glosa prolifera como estrutura formal da poesia lírica do séc. XV, designando as estrofes da poesia obrigada a mote, que desenvolviam o tema proposto por este. Inicialmente fazia parte de composições poéticas breves, como o vilancete, que apresentava uma ou mais glosas de sete versos, ou como a cantiga, que apresentava uma glosa de oito ou dez versos. O verso utilizado era o heptassílabo e, menos frequentemente, o pentassílabo. No entanto, segundo Le Gentil, progressivamente, a glosa deixou de ser exclusivamente composta a partir de um mote de dois ou três versos, podendo retomar uma cantiga, um vilancete inteiro. 

O poeta devia repetir e explicar sucessivamente cada verso de uma destas composições, criando um novo poema de tamanho variável. Em cada estrofe da nova composição poética, podiam reaparecer um ou dois desses versos, colocados em qualquer posição, com a condição desse local permanecer fixo até ao seu final. Normalmente, citavam-se dois versos por estrofe, um no meio e outro no fim, podendo existir outras combinações, como por exemplo, um verso no princípio e outro no meio, ou os dois no fim. Quando apenas um verso era retomado, podia surgir em qualquer posição da estrofe, embora fosse mais usual o seu reaparecimento no final. Deste modo, a extensão da glosa dependia do modelo selecionado pelo poeta e do número de versos da composição glosada.

O hábito de realizar glosas implementou-se em todas as cortes do ocidente latino europeu, constituindo um dos principais passatempos dos serões do paço onde praticamente todos os participantes eram simultaneamente produtores e ouvintes deste tipo de composições sujeitas a um mote. Os temas abordados eram essencialmente de sentido amoroso ou satírico, visando geralmente pessoas conhecidas por todos. A improvisação e o amadorismo dos seus intervenientes tornaram algumas destas composições artificiais e dignas de pouco interesse, sendo frequente a repetição exaustiva de ideias, vocábulos e rimas

A glosa continuou a sofrer transformações durante a Renascença, começando a ser constituída por um mote de quatro versos que lhe servia de introdução e quatro estrofes de dez versos cujo último verso era a repetição de cada um dos versos do mote inicial, mantendo a medida velha. Mais tarde, especialmente em Espanha, durante o Século de Ouro, a glosa continuou a ser uma forma poética bastante utilizada, através da qual os poetas demonstravam grande perícia intelectual e verbal, combinando conceitos subtis e figuras de retórica .

Tendo sido ignorada pelo Romantismo, esta forma de discorrer sobre um determinado tema acabou por chegar até aos nossos dias, continuando alguns poetas populares a glosar diversos assuntos. 
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Renato Benvindo Frata (Um quintal, um mundo)


Quando se é criança, a dimensão das coisas como as vemos se agigantam aos nossos olhos, em relação ao nosso próprio tamanho. Tudo é grande, alto, comprido, gordo, balofo.

Minha mãe era alta, espadaúda, ligeira e silente. Pisava manso enquanto cantava com os cochichos a si própria, hinos sacros à Santa Maria. Ligava-se o rádio em casa apenas para notícias e novelas.

Ela assoprava o ferro a brasa com as músicas saídas de seu íntimo e eu a olhava sem a distrair. Admirava-a e permanecia ao redor de seus pés.

Na sala e, envolto com búricas e papéis, assistia aos movimentos de braços, e aos chiados do ferro quente sobre o pano respingado de água, que se sobrepunha à peça de roupa sendo passada.

Quando me ponho a lembrar, ainda o escuto e, se bem apurar o olfato, saberia distinguir o cheiro peculiar do tecido ao ser secado à força pelo ferro quente, até que a fumaça fosse bambeada pra aqui e pra li pelo vento da janela.

Nosso quintal de esquina era enorme e tomado por pés de chuchu, bucha, horta, galinheiro, araticum, santa bárbara frondosa e um enorme forno a lenha, onde ela assava os pães. Embaixo dele, achas de lenhas, gravetos e até ninho de galinha.

Nesse quintal eu era o Zorro. Eu era o Tarzan. Eu era o Randoph Scott, o mais rápido no gatilho, e vivia meu mundo de moleque magrelo e barrigudo, a cavalgar um cabo de vassoura com rédeas de trapo, cuja montaria tanto poderia ser o ‘Stardust’ do Randolph, ou o ‘Silver’ do Zorro. E tudo era tiros, gritos de “mãos ao alto” e relhadas sob estalos imaginados.

Os caroços de Santa Bárbara enchiam-me os bolsos a fazerem do meu estilingue o revolver o mais certeiro, e o quintal se transformava nas pradarias replicadas do Grand Canyon, das matinés dos domingos, tendo o mocinho a dominar índios e bandidos. E eu gritava.

Lá pelas tantas, minha mãe chegava e, sem muito falar, tomava-me pela mão para o banho. A passada de bucha nos encardidos doía, o mercúrio cromo nas machucaduras amenizava, para terminar com um beijo na testa roupa limpa e uma tapinha na bunda.

Não sei se cresci ou se meus olhos perderam aquela extensão que avolumava as coisas, mas minha mãe envelheceu e ficou menor, arcada, lenta e calada. 

Seus braços, antes fortes, já não aguentavam o ferro agora elétrico, pequeno, leve e nem tanto quente, e de sua boca não saíam mais os cânticos religiosos, mas sim pedidos também em forma de assoprares.

Sopros entrecortados pelo esforço de seus olhos em me reconhecendo, se comunicarem pedindo: - eu quero minha casa, a minha casa…
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Eduardo Martínez (Dona Irene e a cachaça em Poços de Caldas

 
Numa madrugada de 2012, a Dona Irene e eu estávamos saindo de São José do Rio Pardo-SP, onde fomos deixar uma linda cadelinha da raça Dogue de Bordeaux. Antes de irmos embora, perguntamos para a dona da cachorrinha se havia alguma cidade interessante perto dali para conhecermos. Ela disse que Poços de Caldas-MG era bonita e ficava a uns 60 quilômetros. A Dona Irene, que nessa época era minha namorada, olhou para mim e sorriu aquele sorriso mais lindo do mundo. Isso, para quem não sabe, é o sim da minha hoje esposa e, então, entramos no carro e voltamos para a estrada.

  Como nessa época viajávamos com um antigo mapa de papel, fomos muito atentos para não errarmos o caminho. Não sei exatamente quanto tempo levamos para chegar à cidade mineira, mas lembro do motel em que dormimos. É que havia uma espécie de jardim de inverno ao lado da cama, com uma porta de vidro quebrada e o céu como teto. Isso mesmo, apesar de haver uma cobertura no quarto, isso não acontecia com a parte do jardim de inverno. Além do mais, fazia um frio tão intenso, que, se estou escrevendo estas linhas hoje,  é porque fui salvo pelo doce calor emanado do corpo da Dona Irene.

  Fomos despertados com o sol batendo na nossa cara. Ainda tentamos cobrir o rosto com o fino lençol, até que a minha amada disse que estava com fome. Levantamos e fomos procurar alguma coisa para preencher o estômago da minha namorada, já que aquele motel não servia café da manhã. 

    Assim que entramos no carro, percebemos que o motel ficava perto do centro. Paramos em uma cafeteria, onde a Dona Irene fez seu desjejum, enquanto eu, como sempre faço pela manhã, tomei meu café preto. Sem açúcar, pois, de doce, já basta a vida. 

   Não sei se você conhece Poços de Caldas, mas vou lhe dizer assim mesmo. Das inúmeras cidades que conheço em Minas Gerais, é a mais agradável. E olha que já passei por várias outras muito legais também. 

    Logo que saímos da cafeteria, fomos dar uma volta para apreciar melhor o local, quando, de repente, um simpático senhor em uma charrete nos convidou para darmos um passeio, ao custo de não sei quanto, mas que não achei caro na época. Seja como for, o passeio estava extremamente agradável, quando, sem avisar, o condutor parou a charrete e nos convidou para conhecermos uma loja de cachaça e queijos. 

  Para falar a verdade, achei aquilo meio esquisito, pois eu queria mesmo é continuar naquele clima bucólico ao lado da minha namorada. Todavia, antes que eu pudesse continuar nessa divagação rabugenta, eis que me chega alguém com uma dose de cachaça e uns pedaços de queijo. Eu não bebo e, pela manhã, é difícil descer algo sólido para o bucho. 

    Agradeci, mas, antes que esse alguém saísse da minha frente, a Dona Irene não se fez de rogada e já foi entornando a cachaça para dentro do estômago, como se aquilo fosse água mineral da fonte mais pura. Para rebater, ela pegou um pedacinho daquele queijo tão cheiroso.

    Depois disso, fiquei compelido a comprar uma garrafa de cachaça e um queijo naquela loja, mas o homem da charrete nos puxou pelo braço e disse que tínhamos que ir. De volta ao passeio bucólico, até comecei a apreciar novamente aquele balançar gostoso ao som dos cascos do cavalo, que soube se chamar Tufão. No entanto, o condutor parou novamente justamente em frente a uma nova loja, também de cachaça e queijo. Descemos, entramos no tal comércio, alguém me ofereceu cachaça e queijo, educadamente recusei, enquanto a Dona Irene botou tudo para dentro. 

   Pois bem, para encurtar a história, que já está muito mais longa que o costumeiro, voltamos para a bendita charrete antes que pudéssemos comprar qualquer coisa. Depois paramos em não sei quantos novos estabelecimentos, eu recusei tudo o que me ofereceram, ao contrário da minha namorada, que, àquela altura, aceitaria até mesmo sopa de pedra. 

    Finalmente o passeio terminou, quando já era perto da hora do almoço. Tive que auxiliar a minha amada a descer da charrete, pois ela estava tão trôpega, que mal conseguia se lembrar de onde estávamos. Aliás, essa parte estou escrevendo aqui em casa com a Dona Irene me olhando torto e sentada no sofá aqui da sala.

    Procuramos um local para deitarmos, justamente sob a copa de uma árvore. Acabamos adormecendo por algumas horas. Fui despertado pelas cutucadas da minha amada, que, pasmem, estava nova como folha. Ela se levantou numa agilidade improvável para alguém que havia ingerido tanto álcool e, então, me fez o seguinte convite: "Quero conhecer o ET! Será que Varginha fica muito longe?”
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Sammis Reachers (Nau de Versos) – 1


NA MORTE EM QUE FUI MANOEL BANDEIRA

Brincando de cabra-cega 

Nas ruas de Tróia
Expus meu coração à intempérie:

Sakura solar, nênia de plástico, 
Lótus anárquica
Encontrei-a e a perdi 
Num (p)único mês

Que outro (re)curso contra aquele lábio, 
Aquele olhar eluardiano?

Meu pétreo ódio pela poesia
Essa maldição dos tísicos
Ei-lo no pódio-coração litografado: 
Tatuagem interna, 
Tebas de Anfíon, Chuva de flechas, 
Heitor despedaçado.
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RIO BONITO

A vida, inclemente, flui compromissada 
E calma, o poeta e o demônio em seu bojo.

Num repente, numa das curvas do pequeno centro 
Um casarão antigo, um quintal fundeado:

Era a Melancolia me roubando um beijo.
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A ORDEM

Seja forte, não importa quantas vezes o caos

Sustenha a alegria, não importa
Vezes quantas o caos

Compartilhe e ampare com a sua coragem, 
Não importa quantas vezes o caos
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CAQUI

Pomo de outono
Dulçor em revolução
Fruto proibido do mandarim 
Pelo mundo em lusas naus 
Disseminado

Coisa de explodir contra o dentro das bocas 
Ente todo-fruta, carcaça de mel
Beijo tenro, rublo rio
Cio, cicio, vício paradisíaco
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REINAÇÕES

Era outubro, mês revel, mas um outubro setembrino, 
com seu ar veloz, feliz

Obriguei-me, numa quina de rua
ao simulacro ou pretensão de liberdade de um poema

Um poema!, veja você
obriguei-me a um poema
ao invés de deitar-me no chão ou seguir minha vida
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NÃO É UM POEMA SOBRE GÊNEROS

o Ódio é um país
limitado a Norte, Sul,
Leste e Oeste 
pelo Ódio.

o Amor é cisfronteira:
um pé na porta, uma flor na lapela 
um disparate uma parteira
nascido
um minuto antes de nascer o Universo
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OS LÍRIOS DE KIERKEGAARD

Tu, ex-refém da urgência competitiva
cujas células agora se esparramam sem controle 
deserda os leitos e jardins cuidados e restritos 
vai às flores do campo,
abandonadas na rusticidade,
virgens de mãos de jardineiro

Funda teu acampamento e observa-as,
a sol e chuva, a suportarem o tempo em cumplicidade 
vá, citadino, até que a luz
tenha parto e teus olhos tenham cura,
e possas entender – a tempo, isso
que a todo tempo finda –
que elas têm um Jardineiro
feito de sempres e de serenidades

Entrega, enfim, teus dias em Suas mãos, 
e furta irmandade às flores
                                              e à eternidade
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DISCIPULADO

Incapazes de desvendá-lo, 
o tomamos como fruição:
e é sempre o mar que nos desvenda.
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KAFKA

Naquele dia, não foi o seu castelo que desabou. 
Eram aqueles tijolos, as peças do quebra-cabeça 
Finalmente se encaixando.
Você nunca foi (aquelas) paredes.
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ZERO A ZERO

Ei, e aí?
Você já fez a soma 
daqueles que 
nunca somaram?
Não sabe a fórmula? 
Decomponha
              perdoe2 
                              subtraia.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Sammis Reachers Cristence Silva nasceu em 1978, em Niterói/RJ, mas desde sempre morador de São Gonçalo/RJ, ambos municípios fluminenses. Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Membro da Confraria Brasileira de Letras. Licenciado em Geografia atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É autor de dez livros de poesia, três de contos/crônicas e um romance, e organizador de mais de cinquenta antologias.  Aos 16 anos inicia seus escritos e logo edita fanzines, participando do assim chamado circuito alternativo da poesia brasileira, com presença em jornais e informativos culturais. Possui contos e poemas premiados em concursos do Brasil, bem como textos publicados em antologias e renomadas revistas de literatura.

Fontes:
Sammis Reachers. Primeiressências. São Gonçalo/RJ: Edição do autor, 2025.. Enviado pelo poeta.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Os Mukashi banashi (contos antigos) da literatura japonesa – Parte II, final

texto da Profª Drª Márcia Hitomi Namekata*


PARTICULARIDADES DOS MUKASHI BANASHI JAPONESES

A despeito de minha ascendência japonesa, desde cedo as diferenças entre os enredos dos mukashi banashi japoneses e dos contos maravilhosos ocidentais chamaram-me a atenção. O que, primeiramente, saltava-me aos olhos, era a extensão da história: eu gostava muito daquelas que apresentavam uma narrativa longa e descrições detalhadas, e os contos japoneses, em sua maioria, são bastante concisos e faltam detalhes acerca dos cenários e das personagens.

Outra questão diz respeito ao desfecho da história, quase sempre feliz no caso dos contos do Ocidente, ao contrário dos japoneses. Além disso, percebemos nestes traços de violência – por exemplo, os maus-tratos aplicados a um animal que, para uma criança, normalmente consiste em algo inaceitável; temos, também, contos onde uma personagem inocente morre no meio da história. No caso dos contos ocidentais, a morte é algo que ocorre normalmente ao antagonista (vilão). É interessante notar que, nos mukashi banashi e nas histórias japonesas de modo geral, dificilmente o vilão é morto no desfecho da narrativa; o mais comum é que seja afugentado. Podemos a isso relacionar o pensamento japonês de que a preferência por afugentar, ao invés de matar, baseia-se na ideia de que é melhor podermos escapar ao mal, uma vez que não podemos erradicá-lo. Isso porque o Mal, enquanto entidade, nunca será abolido. Mesmo porque, sem a existência do Mal, o Bem não teria sua razão de ser. Na realidade, este não é um pensamento característico apenas dos japoneses, mas do povo oriental como um todo, conforme veremos mais à frente.

Há ainda o maniqueísmo das personagens. Nos contos de fadas ocidentais, normalmente elas aparecem divididas entre “heróis” e “vilões”; nos mukashi banashi japoneses, em especial aqueles mais antigos, os limites entre “Bem” e “Mal” não ficam claramente delineados.

Relaciono aqui um exemplo conhecido entre os descendentes de japoneses: a versão infantil do mukashi banashi Urashima Tarô (“Urashima Tarô”), cujo protagonista, um pescador, salva uma tartaruga que estava sendo maltratada por um grupo de crianças. Dias depois, enquanto pescava, Tarô escuta uma voz lhe chamando: era a mesma tartaruga, que o convidava para um passeio ao reino do fundo do mar, como recompensa pela sua boa ação. Chegando ao local, Tarô é recebido pela princesa do Palácio do Dragão, e lá permanece por vários dias, sendo tratado com todas as honrarias. No entanto, certo dia Tarô diz à princesa que desejava voltar à sua terra, pois estava preocupado com seus pais. Ela lamenta, mas concorda com o visitante, oferecendo-lhe como presente uma caixa que, no entanto, não poderia ser aberta. Tarô retorna à sua aldeia, mas nota que tudo está diferente, desde as casas até as pessoas e suas vestimentas. Decide então perguntar por sua família, e um ancião lhe diz que seu avô lhe contara a história de um pescador de nome Urashima Tarô, que havia saído para pescar e nunca mais voltara, e que o fato acontecera trezentos anos antes. Conscientizando-se da diferença de dimensão temporal entre o reino do fundo do mar e sua realidade, ele toma conhecimento da morte de seus pais e, desolado, esquece-se da recomendação da princesa do Palácio do Dragão e abre a caixa: no mesmo instante, de dentro dela, uma fumaça branca se levanta e Tarô transforma-se em um velho.

De modo geral, em todas as lembranças de descendentes de japoneses que conhecem a história, ela suscita certa indignação: por que um homem de “sentimentos nobres” como Tarô, que salva um animal – sendo por isso recompensado – é, ao final, “castigado” dessa forma? A princesa acaba, para muitos, assumindo o papel de “vilã”, na medida em que oferece um presente que não poderia ser aberto; há quem diga que ela, revoltada com o desejo de Tarô de retornar à sua terra, manipula sua curiosidade (proibição de abrir a caixa) através do presente que lhe oferece.

Na classificação de Yanagita Kunio, Urashima Tarô aparece como um densetsu (lenda). No entanto, considerando-se suas versões mais antigas, há um detalhe significativo que foi alterado no decorrer do tempo: nas versões do conto que surgem até o século XV, a princesa do Palácio do Dragão e a tartaruga que Urashima salvara eram o mesmo ser, e o pescador se casa com ela. Dessa forma, é passível de ser classificado também segundo a subcategoria 2.2. (narrativas sobre casamentos) – com o acréscimo de ser uma narrativa sobre casamentos entre seres diferentes (irui kon’in no mukashi banashi).

UM FINAL INFELIZ?

No que se refere ao final da narrativa, frustrante para muitos, é importante considerar que estamos aqui diante de uma questão cultural. Isso se refere também à questão do maniqueísmo das personagens. Já nos referimos anteriormente à impossibilidade de se erradicar o Mal; no pensamento oriental, essa ideia está relacionada à filosofia do Yin-Yang:

(…) Yin e Yang são dois opostos que, juntos, formam uma unidade. Um depende do outro e são realidade somente em união com seu polo oposto. O símbolo que conhecemos de Yin e Yang representa a lei universal da eterna transformação. Significa que um deles, quando chega ao seu apogeu, transforma-se no outro.(…) Isso sugere, portanto, que não há nada que seja apenas Yin ou Yang, negro ou branco, feminino ou masculino, magnético ou elétrico, passivo ou ativo, bom ou mau, escuro ou claro. Significa que as mulheres também têm características masculinas e os homens, qualidades femininas, que uma maldade pode ter algo de bom e um ato de bondade pode transformar-se em seu oposto.(…)

A cultura ocidental tende, ao contrário, a pensar em conceitos absolutos. Nossa educação nos ensina a diferenciar claramente entre o bem e o mal.(…) O símbolo de Yin e Yang descreve outra visão da realidade: nem Yin nem Yang podem ser considerados maus ou bons.(…) Expressa que os opostos se atraem, que se condicionam mutuamente, e que cada coisa e cada processo se converte cedo ou tarde em seu contrário.”  (in ECKERT, Achim. O Tao da Cura, p.16-17)

Do ponto de vista ocidental, Urashima Tarô tem um final considerado infeliz – o fato de Tarô se transformar em um velho e não poder mais encontrar seus pais. Mas, se pensarmos a partir de um viés oriental, talvez o fato se coloque da seguinte maneira: se Tarô não abrisse a caixa, permaneceria eternamente jovem; ou seja, não conheceria a morte e, consequentemente, não passaria a outro patamar espiritual de existência (no caso, o além-morte ou, ainda, uma “outra vida”). Isso talvez explique os tão “polêmicos” – do ponto de vista ocidental – finais de obras literárias japoneses, e mesmo novelas e animes que, muitas vezes, ou não têm um final definido, ou apresentam um desfecho que contraria a preferência ocidental do “felizes para sempre”.

Cabe afirmar que, em alguns mukashi banashi, esses finais “abertos” não ocorrem, visto que em narrativas como Issunbôshi o protagonista segue uma trajetória muito próxima à dos heróis dos contos ocidentais, desde as suas primeiras versões (a primeira versão deste mukashi banashi encontra-se no Otogizôshi, “Coletânea de Contos Maravilhosos”, datada do século XVI).

Independentemente de suas características, mesmo na contemporaneidade os mukashi banashi mantêm o seu encanto, assim como os contos de fadas ocidentais. Seja em forma de livros ilustrados, animações e em outras formas de transmissão, principalmente aquelas direcionadas às crianças.

Uma modalidade de contação de histórias que tem conquistado espaço nos últimos anos é o kamishibai que, literalmente, pode ser traduzida por “teatro de papel”. Trata-se de histórias que são narradas através de lâminas ilustradas, acomodadas em uma espécie de caixa-palco. Pode-se dizer que praticamente qualquer tipo de narrativa pode ser adaptada ao kamishibai; no entanto, os mukashi banashi são bastante adequados para isso, na medida em que, por não apresentarem uma extensão demasiadamente longa, cabem na quantidade média de lâminas propostas para o gênero, que é de doze.

Considerando-se os países onde a cultura japonesa se consolidou através dos imigrantes, diversos mukashi banashi tornaram-se conhecidos entre os descendentes de japoneses que, fossem crianças ou idosos, muitas vezes travaram contato com essas histórias através da transmissão oral, contadas por seus pais ou avós em sua infância – muito embora, na modernidade, esse traço de disseminação cultural tenda a se tornar mais raro. Por outro lado, em diversos países da Europa e nos Estados Unidos, onde a presença de imigrantes japoneses não é relevante, o kamishibai tem se difundido principalmente nas escolas de educação infantil, como meio de se desenvolver habilidades orais e escritas.

Podemos dizer, então, que a difusão desta modalidade narrativa se apresenta, na atualidade, como uma forma de se manter viva a tradição através destas histórias, que não só retratam o universo japonês através do tempo mas, também, que trazem em sua essência o modo de pensar de seu povo.
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* Márcia Hitomi Namekata nasceu em São Paulo/SP e mora em Curitiba/PR, possui graduação em Letras (Língua, Literatura e Cultura Japonesa) pela Universidade de São Paulo (USP) (1993), mestrado em Letras na USP (1999), doutorado em Letras na USP (2011) e pós-doutorado em Letras (Língua, Literatura e Cultura Japonesa) na USP (2019). Tem experiência nas áreas de Literatura e Cultura Japonesas, e Teoria Literária e Literatura Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas: mukashi banashi (contos antigos japoneses); folclore; literatura japonesa clássica e moderna; literatura japonesa contemporânea, com ênfase em Haruki Murakami; aspectos míticos da literatura japonesa. Atualmente é professora doutora na área de Língua e Literatura Japonesa da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e professora colaboradora na pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo (USP).

Fontes:
Currículo Lattes = https://www.escavador.com/sobre/592814/marcia-hitomi-namekata
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Tainá Rios (Por que investir na divulgação de seus livros nas redes sociais?)


As redes sociais, seja Instagram, Facebook, TikTok ou YouTube, são consideradas como vitrines virtuais. São nesses locais que grandes marcas e pequenos empreendedores disputam um pouco da atenção do público em troca de curtidas, interações e, claro, a concretização da venda. Atualmente, esse espaço também é um local de divulgação de obras literárias.

Para Paula Simas, autora de e-books de romance hot, o Instagram é a principal vitrine de divulgação dos seus livros. Ela argumenta que o perfil online é um portal de vendas e precisa ser tão atraente quanto as suas próprias histórias. "Posts e reels que despertem a curiosidade do leitor, uma sinopse envolvente e uma capa chamativa fazem toda a diferença. No fim, é a soma desses fatores que levará alguém a escolher o seu livro entre tantos outros", explica.

Vilto Reis, escritor, roteirista de quadrinhos, professor de escrita criativa e RPGista, também acredita no potencial das redes sociais. E explica: "Se você for um autor de não-ficção, isso é ainda mais importante, pois você ganha autoridade e se posiciona dentro do nicho com o qual quer se comunicar". Além do Instagram, Vilto também investe na produção de conteúdos em vídeos para o YouTube e no formato de podcast. Apesar da constante mudança das regras dos algoritmos, essa ferramenta possibilita que os conteúdos literários cheguem a mais pessoas, conectando o livro com os autores. "Quando conversamos sobre assuntos que interessam o público, que também pode ser o potencial comprador dos nossos livros, fazemos com que o algoritmo entenda que nosso conteúdo pode se conectar com essas pessoas", explica.

Outro ganho é a identificação do mercado literário com os novos autores. Vilto relembra o convite que recebeu para participar como palestrante na Semana dos Escritores de Chapecó. "Encontraram meu trabalho no Instagram, avaliaram como interessante e me chamaram. Então, há um ganho geral, que nem sempre está diretamente ligado a vendas", afirma.

A romancista e poetisa Wlange Keindé vê as redes sociais como um meio de comunicação entre as pessoas. Para ela, esse caminho é o mais fácil para alcançar o público. "A maioria dos leitores espera encontrar por lá tanto os escritores, cujo trabalho eles já conhecem, quanto novas possibilidades de leitura. Por isso, acredito que, enquanto escritores, a divulgação dos nossos trabalhos nas redes sociais é essencial para que possamos alcançar mais gente", explica.

AS TÉCNICAS DE MARKETING DIGITAL PARA AUTORES

Desde o início de 2025, Wlange trabalha na divulgação do seu último lançamento, "O abraço morno dos muros". Para essa divulgação, ela contou com a ajuda de uma agência de marketing digital, que desenvolveu uma estratégia de funil de vendas. "Eu nunca tinha feito uma estratégia de marketing tão pensada, e estou aprendendo muito com essa experiência", ressalta.

A romancista também já aplicou a técnica de marketing de conteúdo nos seus perfis de redes sociais. De acordo com a sua experiência, o público leitor pesquisa o nome dos autores em buscadores online para conhecer um pouco mais antes da compra. "As pessoas que seguem um escritor numa rede social querem saber o que o conteúdo produzido por esse escritor pode agregar na vida delas", afirma.

Vilto também investe em estratégia de divulgação. Ele aplica a jornada de compra e o funil de vendas. "A jornada de compra funciona como um funil. Primeiro, você atrai um público amplo; depois, parte desse público se relaciona com seu conteúdo; por fim, uma parcela dessas pessoas se torna compradora dos seus livros", explica. O recomendado ao aplicar essas técnicas é criar conteúdos voltados para cada etapa do funil de vendas. Por exemplo, a cada dez conteúdos disponíveis, é interessante dividir entre: atração de novos seguidores, conexão com o público e vendas.

O roteirista de quadrinhos alerta : criar conteúdo sem clareza pode atrapalhar o desempenho de qualquer escritor. E enviar mensagens diretas oferecendo o livro também. Ele aposta na criação de conteúdos relevantes que alcancem os leitores certos e, assim, aumentam as chances de sucesso na divulgação. "O ideal é destacar os aspectos mais interessantes do livro. Se você escreve ficção, pense nos temas centrais e na jornada dos personagens. Se escreve sobre um assunto técnico ou acadêmico, encontre os pontos que podem gerar curiosidade ou resolver dúvidas do público", explica.

A autora de e-books aposta na constância de conteúdos para a divulgação das suas obras. Ela investe em produções de reels e posts para que o perfil no Instagram seja atualizado diariamente.

AS FERRAMENTAS DIGITAIS PARA DIVULGAÇÃO DE LIVROS

Entre as ferramentas digitais mais populares e usadas na divulgação dos livros nas redes sociais estão o tráfego pago, a parceria com os influenciadores literários, a produção de infoprodutos, como podcasts, e o apoio dos bookstans.

Paula Simas usa o recurso de tráfego pago para atrair novas leitoras. Pela sua experiência, essa é a ferramenta que gera mais resultados. "Isso porque alcança um público maior e entrega o conteúdo para pessoas com interesses semelhantes. Quando utilizado de forma otimizada, pode trazer resultados surpreendentes", afirma.

O escritor e professor Marcelo Spalding acredita que, para determinado tipo de livro e grupos de autores, essa estratégia pode ajudar, sim. "É preciso que o autor se envolva com a rede e participe dela. Dessa maneira, o anúncio irá funcionar como um impulsionamento mesmo", explica.

Wlange Keindé gosta de aplicar a parceira com influenciadores literários, pois se iguala a um boca a boca, porém da nova geração. Além disso, é uma maneira de produzir conteúdo sobre um livro e o autor na rede social, que podem virar resultados de pesquisas na internet. "Os seguidores de um influenciador literário confiam nas opiniões e nos gostos dele, tendo assim uma boa chance de se interessarem por um livro divulgado por ele", declara.

Por fim, a ferramenta de apoio bookstan. O termo ficou mais conhecido após a pandemia de Covid-19, mas a prática existe desde 2018 entre os produtores de vídeo no YouTube, que usam o nome de comunidade booktube, e são especialistas em conteúdos para leitores. Em tradução livre significa fã de livros, pois é a junção das palavras "book" (livro, em inglês) e "stan" (termo da cultura pop que se refere a um fã).

A escritora Paula utiliza bastante esse recurso e aconselha: "Antes de fechar a parceria, é importante verificar se o gênero do seu livro se alinha às leituras normalmente divulgadas no perfil, garantindo que o público se identifique com a sua obra". Ou seja, não arrisque divulgar uma comédia romântica em um perfil focado nos gêneros literários fantasia ou dark.

Os profissionais bookstans são conhecidos por acompanhar todos os lançamentos de um autor ou saga, conhecer todos os detalhes de uma história, aprender as línguas criadas para as adaptações de uma série literária e participar ativamente de comunidades online de leitura. E tem como missão principal seguir e engajar com autores, editoras e criadores de conteúdo literário em todas as redes sociais.

OS BENEFÍCIOS DA DIVULGAÇÃO NAS REDES SOCIAIS

No Brasil, o Instagram é a terceira rede social mais usada pelos produtores de conteúdo. E tem muito potencial para entregar os conteúdos a novas pessoas, inclusive leitores. De acordo com os três entrevistados, a plataforma tem diversos recursos que apoiam a trajetória do autor, que são: possibilidade de criar conteúdo em diversos formatos, construção de comunidade, investimento em anúncios pagos, e possibilidade de divulgação de links de vendas.

"O Instagram possibilita diferentes estratégias: os reels para atrair, o feed para criar relacionamento e os stories para engajar os leitores. O último passo dessa jornada, que é a venda de livros, pode acontecer por meio de posts no feed ou anúncios patrocinados. Mas o ideal é que o processo ocorra de forma orgânica: primeiro, os leitores descobrem o autor, depois se relacionam com ele e, por fim, adquirem seus livros", explica Vilto Reis.

Apesar do potencial do Instagram, os entrevistados elegeram o YouTube como a plataforma que traz mais benefícios às divulgações de livros e conteúdos literários. Wlange possui canais na plataforma há bastante tempo e afirma que possui uma comunidade fiel de seguidores. Para a poetisa, o público que acessa o canal no YouTube consegue ver com mais facilidade todos os vídeos postados desde a criação do canal até o conteúdo mais recente. Essa facilidade não existe em redes como Instagram e TikTok. "Uso muito o YouTube, já que é a rede principal em que produzo conteúdo, no canal Ficçomos. Eu divulgo meus livros no YouTube porque já tenho uma comunidade por lá, e essa é uma rede social muito boa para a criação de comunidade", afirma.

Marcelo Spalding, que está à frente do canal Formação de Escritores, também vê na rede social um caminho para a divulgação das obras literárias. "A pessoa que se dispõe a ter um canal sobre determinado tema pode conseguir novos leitores e compradores para seu livro, se o tema do livro for semelhante ao do canal. Então uma pessoa que pretenda publicar um livro de literatura fantástica poderia ter um canal falando sobre livros do gênero, filmes, seriados, e com isso, ao publicar seu próprio livro, esse público teria mais potencial de interesse", explica.

Diversos benefícios e técnicas foram apresentados para responder à pergunta do título: por que investir na divulgação de livros nas redes sociais? Fato é que as plataformas online apoiam os autores na busca por leitores, na venda dos livros e, o mais importante, na promoção do nome como figura pública.

Por fim, o conselho para construir um bom planejamento na rede social escolhida pelos entrevistados, o YouTube. É necessário conhecer bem o seu nicho, qual história os seus leitores gostam de assistir e quais os perfis de youtubers mais dialogam com o seu público. "É importante entrar em contato para entender os custos dessa divulgação e a forma como ela é feita. Enviar dezenas de exemplares de livros a diversos youtubers sem que eles confirmem o interesse pela obra é um desperdício", explica Spalding.
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Tainá Rios é jornalista, especialista em Cultura Digital e Redes Sociais e aluna do Curso Formação de Escritores pela Metamorfose. Começou a escrever ainda na adolescência, enviando cartas aos amigos e familiares. Já atuou como colunista de cotidiano e apresentadora no Diário de Viamão. Desde 2019, comando o podcast Me Conta Sua História?, disponível nas plataformas de streaming.

Fontes:
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